Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Como por esta altura já toda a gente sabe, houve um furacão de protestos a cair sobre a Victoria's Secret por causa desta campanha publicitária:
O problema não está na exibição do corpo destas dez belas moças (entre as quais a portuguesa Sara Sampaio), mas no facto de a Victoria's Secret se ter atrevido a classificar aqueles dez corpos, todos eles muito semelhantes e magricelas, como "perfeitos".
Deixo-vos dois artigos dos jornais Público e Observador, que explicam bem o que está em causa.
Eu acho a polémica particularmente curiosa, porque ela me parece, sobretudo, isto: uma óptima luta que está a ser travada com péssimos argumentos.
Por um lado, e como já escrevi abundantemente no PD4, eu acho não só que as pessoas se devem sentir orgulhosas e confortáveis com os seus corpos, como acredito que, aos poucos, com a ajuda de marcas mais arrojadas e imaginativas no seu marketing, há formas alternativas de beleza feminina que se estão a impor.
O Henrique Raposo tem escrito abundantemente sobre isso, e eu concordo com ele. Ainda recentemente, a propósito do inacreditável caso Jessica Athaíde, o Henrique escreveu um elogio às mulheres fellinianas, onde constava uma afirmação provocatória que eu acredito ter um fundo de verdade:
Não é possível continuarmos a viver num mundo onde o ideal de beleza feminino é ditado por estilistas gays. Eles não fazem por mal, atenção. Como não gostam da mulher enquanto fêmea, eles têm a tendência natural para escolher garotitas raquíticas que são a negação da sensualidade feminina. Não é defeito, é feitio. Mas a verdade é que a indústria da moda "deserotizou" a mulher, aboliu as formas curvilíneas, ilegalizou a mulher felliniana.
Há, de facto, uma excessiva androgenia nas passerelles, e demasiadas modelos femininas têm menos curvas do que eu.
E no entanto - e este é o "por outro lado" -, parece-me haver uma diferença subtancial entre protestar contra uma ideia de beleza semi-anoréctica, e defender assanhadamente esta tese:
Eu percebo o desejo de reagir - mas esta é, de facto, uma reacção com maus argumentos, que podemos sintetizar no hashtag #iamperfect (“eu sou perfeita”), criado no Twitter como forma de protesto.
Não, aqueles corpos em baixo não são perfeitos. E não são perfeitos porque, apesar de tudo, não podemos atirar pela janela milénios de história de arte, e ignorar a existência de um ideal grego de beleza que marcou para sempre a nossa cultura, de Fídias a Miguel Ângelo, e que resiste até aos nossos dias - até as estátuas gordas de Botero existem como oposição a esse ideal, mantendo-o como referente.
Ou seja, eu posso perfeitamente dizer que me sinto bem com o meu corpo e que uma mulher pode ser altamente sexy com mais de 80 quilos, sem ter necessariamente de colocar um carimbo de censura por cima da palavra "perfeito" ou erguer a bandeira do "perfeitos somos todos nós", que é uma variação do politicamente correcto aplicado à estética corporal.
Sem dúvida que existe uma importante luta da ditadura estética das passerelles para travar - mas não com os argumentos de uma obsessão individualista que parece não saber gerir o conceito de imperfeição. Quando a publicidade da Victoria's Secret afirmou explicitamente "elas são perfeitas", milhões de mulheres sentiram que estavam a ser explicitamente acusadas de serem imperfeitas - e aparentemente foi isso que não suportaram.
Ora, isso não é uma valorização da identidade e das diferenças de cada um - a tal luta que merece, e muito, ser travada -, mas sim uma negação das próprias imperfeições. E, por isso, uma negação das evidências.
Como é óbvio, 99% das pessoas não têm corpos perfeitos - tal como não sabem jogar à bola como Cristiano Ronaldo ou escrever como Philip Roth.
Há uma diferença radical entre dizer "acho super-sexy essa tua barriguinha" ou fingir que essa barriguinha não existe. A graça está em abraçar a realidade como ela é, e não em inventar uma realidade paralela em que todos somos magníficos, perfeitos e infinitamente desejáveis. Isso é optar pela mentira. Uma mentira diferente daquela que nos quer impor a Sara Sampaio como ideal único de beleza feminina. Mas uma mentira, ainda assim.