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A polémica do "corpo perfeito"

por João Miguel Tavares, em 05.11.14

Como por esta altura já toda a gente sabe, houve um furacão de protestos a cair sobre a Victoria's Secret por causa desta campanha publicitária:

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O problema não está na exibição do corpo destas dez belas moças (entre as quais a portuguesa Sara Sampaio), mas no facto de a Victoria's Secret se ter atrevido a classificar aqueles dez corpos, todos eles muito semelhantes e magricelas, como "perfeitos".

 

Deixo-vos dois artigos dos jornais Público e Observador, que explicam bem o que está em causa.

 

Eu acho a polémica particularmente curiosa, porque ela me parece, sobretudo, isto: uma óptima luta que está a ser travada com péssimos argumentos.

 

Por um lado, e como já escrevi abundantemente no PD4, eu acho não só que as pessoas se devem sentir orgulhosas e confortáveis com os seus corpos, como acredito que, aos poucos, com a ajuda de marcas mais arrojadas e imaginativas no seu marketing, há formas alternativas de beleza feminina que se estão a impor.

 

O Henrique Raposo tem escrito abundantemente sobre isso, e eu concordo com ele. Ainda recentemente, a propósito do inacreditável caso Jessica Athaíde, o Henrique escreveu um elogio às mulheres fellinianas, onde constava uma afirmação provocatória que eu acredito ter um fundo de verdade:

 

Não é possível continuarmos a viver num mundo onde o ideal de beleza feminino é ditado por estilistas gays. Eles não fazem por mal, atenção. Como não gostam da mulher enquanto fêmea, eles têm a tendência natural para escolher garotitas raquíticas que são a negação da sensualidade feminina. Não é defeito, é feitio. Mas a verdade é que a indústria da moda "deserotizou" a mulher, aboliu as formas curvilíneas, ilegalizou a mulher felliniana.

 

Há, de facto, uma excessiva androgenia nas passerelles, e demasiadas modelos femininas têm menos curvas do que eu.

 

E no entanto - e este é o "por outro lado" -, parece-me haver uma diferença subtancial entre protestar contra uma ideia de beleza semi-anoréctica, e defender assanhadamente esta tese:

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Eu percebo o desejo de reagir - mas esta é, de facto, uma reacção com maus argumentos, que podemos sintetizar no hashtag #iamperfect (“eu sou perfeita”), criado no Twitter como forma de protesto.

 

Não, aqueles corpos em baixo não são perfeitos. E não são perfeitos porque, apesar de tudo, não podemos atirar pela janela milénios de história de arte, e ignorar a existência de um ideal grego de beleza que marcou para sempre a nossa cultura, de Fídias a Miguel Ângelo, e que resiste até aos nossos dias - até as estátuas gordas de Botero existem como oposição a esse ideal, mantendo-o como referente.

 

Ou seja, eu posso perfeitamente dizer que me sinto bem com o meu corpo e que uma mulher pode ser altamente sexy com mais de 80 quilos, sem ter necessariamente de colocar um carimbo de censura por cima da palavra "perfeito" ou erguer a bandeira do "perfeitos somos todos nós", que é uma variação do politicamente correcto aplicado à estética corporal.

 

Sem dúvida que existe uma importante luta da ditadura estética das passerelles para travar - mas não com os argumentos de uma obsessão individualista que parece não saber gerir o conceito de imperfeição. Quando a publicidade da Victoria's Secret afirmou explicitamente "elas são perfeitas", milhões de mulheres sentiram que estavam a ser explicitamente acusadas de serem imperfeitas - e aparentemente foi isso que não suportaram.

 

Ora, isso não é uma valorização da identidade e das diferenças de cada um - a tal luta que merece, e muito, ser travada -, mas sim uma negação das próprias imperfeições. E, por isso, uma negação das evidências.

 

Como é óbvio, 99% das pessoas não têm corpos perfeitos - tal como não sabem jogar à bola como Cristiano Ronaldo ou escrever como Philip Roth.

 

Há uma diferença radical entre dizer "acho super-sexy essa tua barriguinha" ou fingir que essa barriguinha não existe. A graça está em abraçar a realidade como ela é, e não em inventar uma realidade paralela em que todos somos magníficos, perfeitos e infinitamente desejáveis. Isso é optar pela mentira. Uma mentira diferente daquela que nos quer impor a Sara Sampaio como ideal único de beleza feminina. Mas uma mentira, ainda assim.

 

 

 

publicado às 09:25


1 comentário

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De Ana a 09.11.2014 às 15:10

Esta história toda à volta das gordas e magras é de uma hipocrisia descomunal. As gordas que criticam estas campanhas acabam por fazer exactamente o mesmo que aqueles que estão a criticar. De repente, só as mulheres mais gordas e sem um único ossinho à vista é que tem um corpo perfeito e todas as outras são anoréticas que não comem e parecem esqueletos. Então e as magras que o são por motivos genéticos? Então e aquelas que podem passar dias e dias só a comer hamburgers e batatas fritas e não engordam absolutamente nada? Eu sempre fui naturalmente magra, sempre estive abaixo do peso desejável para a minha altura e não consigo engordar por mais porcaria que coma. Estamos a passar de "as magras são bonitas e as gordas não" para "quem é magro é um esqueleto e não é bonito". A segunda imagem, com mulheres mais gordinhas que as da primeira imagem esqueceu-se que nem todas as magras o são por opção, tal como a primeira imagem também falha por incluir apenas mulheres magras. Não defendo nem uma, nem outra. Detesto ver campanhas que ora classificam as gordas como belas, ora as magras. A primeira imagem descrimina as gordas. A segunda imagem descrimina pessoas como eu. Já não há paciência para isto. Todas são belas, desde que saudáveis. O que é belo para mim pode ser horroroso para os outros e vice-versa. Cada um é como é e quem não gosta, não olhe. Ao estarmos a caminhar na direcção de valorizar as mulheres com mais peso e condenar-mos tudo o que é magro "porque são esqueletos e não comem e não é saudável e porque a mulher real tem curvas", estamos a fazer a mesma porcaria de só valorizarmos os magros. Haja paciência.

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