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Foto de Filipe Ferreira 

 

Boa parte do dinheirinho que a minha mamã e o meu papá me deram pelos anos foi dirietinha para comprar um camarote de cinco no Coliseu de Lisboa, onde esta noite me vou instalar com a excelentíssima esposa e os excelentíssimos três filhos mais velhos para apreciar o espectáculo "Deixem o Pimba em Paz", uma ideia do Bruno Nogueira maravilhosamente concretizada pelo próprio, com a preciosa ajuda da Manuela Azevedo, do grande Filipe Melo, do mestre arranjador Nuno Rafael e do contrabaixista Nelson Cascais. Só a Ritinha é que fica de fora desta aventura em família, para grande pena dela, que adora o "Ninguém, Ninguém" do Marco Paulo.

 

Quer dizer: a Ritinha não adora o "Ninguém, Ninguém" do Marco Paulo. O que ela adora é o "Ninguém, Ninguém" do "Deixem o Pimba em Paz", uma extraordinária porta de entrada no mundo da música pimba, que tem o gigantesco mérito de sublinhar a amarelo fluorescente as suas qualidades e enterrar bem fundo os seus defeitos. Isto é o maior serviço feito ao pimba deste a famosa reportagem televisiva (foi na TVI?) que em meados dos anos 90 transformou a famosa canção de Emanuel em sinédoque de todo um género musical.

 

O meu interesse pelo pimba tem um lado nostálgico - afinal, sou um rapaz de Portalegre que se arrastou durante muitos anos (coisa que então odiava, diga-se) pelos bailaricos da aldeia por causa dos papás -, mas também tem um lado literato, porque o bom pimba é sempre um festim da língua portuguesa. Os trocadilhos malandros, os achados das letras de Quim Barreiros, a borrasca de innuendo, tudo isso compõe uma celebração da língua, tanto no sentido carnal como intelectual do termo. Há mais génio artístico em

 

Qual é o melhor dia p'ra casar

Sem sofrer nenhum desgosto

O trinta e um de Julho

Porque depois entra Agosto  

 

do que em muitas dezenas de romances portugueses.

 

Há mais habilidade literária em

 

E porque a couve tem talo

E o bacalhau tem rabo

Se o feijão verde tem fio

Porque não tem talo o nabo?

 

do que em 95% da música pop portuguesa.

 

Aquilo que o Bruno Nogueira veio fazer (para mais, cantando com uma competência e uma ginga desconhecidas) foi precisamente sublinhar o lado artístico e literário da música pimba, sem nunca a apoucar. Bem pelo contrário: ao embrulhá-la em competentíssimas arranjos, trouxe o bom gosto harmónico a um material que é muito pujante em termos melódicos, mas que quase sempre soçobra na produção e nas interpretações. A música pimba é frequentemente como uma mulher gira que se veste e se pinta muito mal. O que Bruno Nogueira e companhia fizeram foi colocar roupa de luxo em cima dos melhores corpinhos do género - e o resultado, na minha modesta opinião, é notável.

 

Embora aquilo que mais me diverte no projecto sejam as canções maliciosas como o genial "Porque Não Tem Talo o Nabo", nada ali é tão impressionante quanto o trabalho do grupo sobre duas canções de Ágata, "Sozinha" e "Comunhão de Bens". A primeira é transformada num tango fortíssimo que poderia fazer parte, sem retoques, do reportório de qualquer fadista atrevida ou intérprete do dito bom gosto. A segunda é elevada aos píncaros por Manuela Azevedo, com uma interpretação de tal forma pungente, dramática e sentida que parece que está a recitar Shakespeare.

 

Ora, foi tudo isto, todas estas canções, que dominaram o nosso Verão familiar: eu escutei o disco "Deixem o Pimba em Paz" aproximadamente 364 vezes no carro, até à beira do colapso. A forma como as crianças ficaram hipnotizadas pelas canções - todas elas - é deveras impressionante, e a mim serviu-me para lhes dar umas aulinhas de português, tentando explicar-lhes porque é que "podes ficar com o resto e dizer que eu não presto" é um excelente achado (porque não é uma rima óbvia, porque é uma rima rica, que emparelha um substantivo com um verbo, porque é uma rima que surge com grande naturalidade e grande força musical) ou porque é que rimar "tens" com "comunhão de bens" é absolutamente horrível.

 

Claro que o disco tem um problema: os putos estão proibidíssimos de cantar em público metade daquelas canções. Mesmo que não percebam a letra - ou, sobretudo, quando não percebem a letra. A Carolina teve de recorrer a uma prima dois anos mais velha para lhe explicar o significado de "A Garagem da Vizinha" (embora nenhuma delas tenha chegado a qualquer conclusão sobre o significado dos versos "o meu carro fica dentro/ os cocos ficam de fora", o que é bom sinal), e claro que a semântica de "Porque Não Tem Talo o Nabo" permanece um mistério. Eu prometi-lhe que lhe explicava porque é que o público se ri tanto se ela tivesse sete cincos no quinto ano.

 

Enquanto isso não chega, lá estaremos esta noite no Coliseu, em família, para celebrar o pimba em coro. Embora seja uma quinta-feira (deveria ser uma sexta ou um sábado), a festa vai com certeza ser em grande. E viva o povo.

 

 

Nota final: O Bruno Nogueira dá hoje uma entrevista ao Gonçalo Forta, no Público, sobre o projecto. Podem lê-la aqui. Tenho imensa pena que a maior parte da crítica tenha passado completamente ao lado do disco. Não me lembro de o ver criticado nos jornais nem nas revistas de referência. É lamentável que a desatenção e os preconceitos da crítica portuguesa não tenham contribuído para dar o devido valor a um trabalho profundamente original e meritório. Ainda assim, silenciado ele não foi, e vai certamente fazer o seu caminho.

 

publicado às 10:50



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