Devo dizer-vos que fiquei impressionado com a quantidade de comentários ao meu
post burguês, mas suponho que quando raspamos um bocadinho o verniz social tudo se resume às velhas dicotomias medievais, porque elas são essenciais para a nossa limitada cabecinha funcionar: bom/mau, feio/bonito, verdadeiro/falso, e se calhar em tempos de economês suponho que lhe possamos acrescentar o rico/pobre.
Mas se trouxe esse assunto para aqui é porque eu também sou sensível a ele, e hoje em dia não há acusação que faça mais recorrentemente à Carolina do que ela estar a transformar-se numa menina queque, em que acha que tudo lhe cai do céu. Eu e a Teresa somos ambos filhos da típica classe média de funcionários públicos do interior de Portugal, o que significa que nunca nos faltou nada, mas também nunca tivemos nada em excesso, julgo eu. Aquilo que de mais precioso os nossos pais no deram foi a nossa educação, e felizmente eu e a Teresa saímo-nos bem. Somando isso à melhoria geral do nível de vida até à crise, isso significa que os nossos filhos têm hoje acesso a milhentas coisas que nós nunca tivemos.
Se eles entram numa livraria compram um livro. Se eles vão comigo ao quiosque comprar jornais recebem três ou quatro carteiras de cromos. Se eu passo pelo El Corte Inglés para comprar uma prenda para o aniversário de um amiguinho e vejo uma coisa de que eles também vão gostar, sou capaz de trazer uma coisinha para cada um e inventar uma razão qualquer para lhes oferecer (porque estiveram em casa com febre, porque tiveram um Satisfaz Muito Bem num teste, sei lá eu).
Isso significa que aquilo que para mim era altamente negociado com os meus pais - por exemplo, uma prenda fora da época de Natal ou de um dia de anos -, para eles é um dado adquirido. Na minha vida, só me lembro de ter completado uma caderneta de cromos (da Abelha Maia) - eles já completaram 15 ou 20, e nem sequer parecem ligar-lhes por aí além. Ou seja, tudo é mais fácil para eles, embora, paradoxalmente, isso tenha um enorme vantagem: são mais desligados das coisas do que eu era. Como tinha muito menos quando era pequeno, para mim emprestar um livro a um miúdo ou um brinquedo era assim como arrancarem-me as unhas a sangue frio. Ainda hoje me custa emprestar um livro ou um disco de que gosto muito a alguém (também porque nesta terra as pessoas, em geral, não têm o menor cuidado em devolver as coisas dos outros). As crianças cá de casa não, felizmente - estendem as coisas e está a andar.
Dito isto, assusta-me muito a facilidade com que os meus filhos se arrogam no direito de pedir isto e aquilo. E tenho medo sobretudo que a Carolina, que é mais velha e tem uma certa tendência para o show-off e para mandar nos outros, comece a ter excesso de orgulho naquilo que tem e na família mais ou menos conhecida. Se um dia eu descubro que ela usa isso como argumento para se impor socialmente, estaria capaz de a pendurar do estendal pelos cabelos. Nesse sentido, ela precisa de começar rapidamente a compreender o que são as dificuldades, a pobreza e a solidão - não no sentido de saber que existem, mas no sentido de perceber realmente o que são - para começar a dar valor àquilo que tem. Chama-se a isso acção social, e acho extremamente importante que ela o faça.
Em relação a este blogue e à crítica clássica da exibição da riqueza em tempos de pobreza, também queria acrescentar mais um par de coisas, mas este post já vai longo, e portanto, um novo post há-de surgir sobre esse assunto, entre hoje à noite e amanhã. Mas até lá espero que os leitores mais ou menos burgueses deste blogue digam coisas.