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O André do blogue À Paisana, escreveu um longo post, que vale muito a pena ler, sobre o tema das palmadas, respondendo aos meus argumentos. Eis o início do seu texto:
O João Miguel Tavares (JMT) resolveu voltar ao tema de bater (ou não bater) nas crianças, um clássico de audiências (imagino eu) e polarização de opiniões. Um daqueles temas recorrentes na web parental, que, infelizmente, resvala quase sempre para a opinião defensiva do “estás a dizer que sou mau pai?” (não), e argumentos do género “eu levei quando era pequeno e estou óptimo” (tens a certeza?).
O problema está muitas vezes relacionado com a forma de enquadrar a questão. E, embora tenha o JMT como um tipo culto, bem-humorado e inteligente, se há questão que ele gosta de desenquadrar é esta questão do bater nos filhos. Não me interessa saber se o JMT é bom ou mau pai, mas sim questionar o modo como defende que “[bater é] uma ferramenta educativa essencial”, um argumento que baseia numa mistura de experiência própria com uma série de postulados questionáveis sobre o facto do homem ser um animal “em processo de domesticação”.
Como disse, leiam por favor o post todo, que está argumentado de forma inteligente. Eu queria apenas comentar dois aspectos da sua argumentação.
Um aspecto é aquilo que o André classifica como "postulados questionáveis" sobre o facto de uma criança ser um "animal em processo de domesticação". De facto, eu referi que educar é também domesticar, um verbo propositadamente forte, para tentar sublinhar o quanto daquilo a que chamamos educação é um processo não-natural de imposição de regras. Tirando o peso próprio da palavra, não vejo o que seja questionável nisto: não há nada de natural em comer com um garfo na mão esquerda e uma faca na mão direita, em estar à mesa de costas direitas ou em dizer "bom dia" ao vizinho da frente. Quem não lhe quiser chamar "domesticação", que é uma provocação assumida, chame-lhe "socialização". Mas, por favor, não nos façamos de sonsos: toda a educação é uma forma de violência, no sentido em que impõe regras às crianças. Aprender o alfabeto é uma violência. Aprender a tabuada é uma violência. A maior parte das vezes é irritante, eles não gostam, lutam contra isso, gostavam de passar o dia inteiro a jogar à bola ou ao computador. Nós obrigamos os nossos filhos a fazer um milhão de coisas contra a sua vontade. E é nesse sentido que uma palmada no rabo me parece estar longe de ser a maior violência que lhes infligimos ao longo de uma vida.
Então se eu for tão picuinhas no uso da palavra "violência" como aqueles que usam a palavra "violência" para classificar uma palmada, então a violência não acaba. Se eu tiver uma discussão com a mãe à frente deles (às vezes acontece), é uma violência. Cada vez que eu digo "desaparece daqui que eu estou a trabalhar", é uma violência. Quando eu lhes tiro o canal dos desenhos animados para ver a bola, é uma violência. E se eu me divorciasse e saísse de casa, parece-vos que isso seria uma violência? Eis uma pergunta para os fundamentalistas que acham que toda a violência física sobre crianças deveria ser proibida por lei: será que existindo filhos o divórcio também deveria ser punido por lei, ou parece-vos que é menos violento do que uma palmada no rabo?
Moral da história: nós não vivemos no universo do Ruca e dos filmes da Disney, e querer transformar os nossos filhos em pequenas flores de estufa, esquecendo que a vida é feita de frustrações, erros e falhanços, é um tremendo erro. E, sobretudo, é uma hipocrisia fingir que as maiores violências não são a nível físico mas sim a nível psicológico, e que certos castigos muito friamente elaborados podem ser infinitamente mais violentos do que uma palmada na hora certa.
O segundo aspecto da argumentação do André que eu queria comentar tem a ver com esta frase sua:
O texto acaba em tom conciliatório, a apelar ao ecumenismo punitivo, dizendo que haverá tantas perspectivas válidas como o tipo de crianças diferentes. Crianças que crescem bem sem palmadas, crianças que precisam de palmadas. E, imaginamos, que nesse campo nada bate a infinita sabedoria dos pais. Há um dia em que o progenitor descobre – aliás, sabe – que este só lá vai à palmada. O outro não precisa, que é calminho. É a infabilidade do Papá.
É exactamente isso, André: é a infabilidade do Papá. Gosto muito do conceito. Não porque ele corresponda a uma realidade efectiva, porque não há obviamente papás infalíveis, mas porque é um bom conceito operativo, na medida em que as crianças têm de sentir que os pais são a coisa mais infalível que têm por perto - é exactamente isso que lhes dá segurança. Num mundo tão relativizado, o que os miúdos certamente não precisam é de papás inseguros, a vigiar cada um dos seus gestos, ou a consultar manuais de psicologia de cada vez que têm de tomar uma decisão difícil em relação aos filhos: "Aguenta só aí um bocadinho essa birra que eu vou ali à biblioteca consultar o manual do doutor Spock para saber o que devo fazer e volto já."
Significa isto que devamos ignorar o que se aprendeu ao longo dos séculos? Claro que não. Mas convém modestamente recordar o quão recente é essa coisa da pediatria e dos cuidados infantis, e o quanto as ciências educativas têm mudado ao longo dos anos. E, no entanto, há milhões e milhões de crianças sapiens sapiens a serem criadas há 200 mil anos - sem manuais por perto. É evidente que não estou aqui a fazer a apologia da ignorância. Estou apenas a tentar dar algum conforto a tantos pais que fazem da educação dos filhos um bicho de sete cabeças.
Portanto, André, é mesmo isso, com as devidas excepções (porque há sempre excepções), "nada bate a infinita sabedoria dos pais". Esse parece-me, aliás, um excelente lema para todos nós.