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Buddy Longway e os pesadelos

por João Miguel Tavares, em 14.11.13

Nem imaginam o que a excelentíssima esposa me tem chateado nos últimos tempos por causa disto:

 

 

Isto, para quem não sabe, é uma série de banda desenhada chamada Buddy Longway. Em tempos foram publicados os sete primeiros volumes em Portugal, e eu sempre gostei da série, como costumo gostar de quase tudo o que tem a ver com o oeste americano (efeitos de ter passado a infância a brincar aos índios e aos cowboys). Depois, como é habitual nas séries de BD publicadas nesta terra, a edição das aventuras de Buddy Longway ficou pelo caminho, apesar de o seu autor, o suíço Derib, ter continuado a desenhá-la até 2006, assinando um total de 20 volumes, que eu acabei por comprar há não muito tempo nas excelentes edições integrais da Lombard.

 

O que se passa - e o que interessa para aqui - é que eu decidi ler toda a série à noite, antes de deitar, à Carolina. Os sete primeiros livros ela leu sozinha em português, mas a partir daí há 13 álbuns em francês (mais um epílogo), que ela ainda não consegue ler, e por isso pediu-me ajuda. O meu francês é um bocado manhoso, mas com a ajuda de um dicionário para palavras mais difíceis, passámos numerosos serões a ler as aventuras de Buddy Longway, da sua esposa índia Chinook, e dos seus dois filhos, Jeremiah e Kathleen.

 

O problema está em que a série não tem nada a ver com o Astérix, o Tintin ou o Lucky Luke, onde o tempo passa mas a cada episódio é como se não passasse - eles têm sempre a mesma idade e estão sempre a começar tudo de novo. Derib criou Buddy Longway em 1974 e desenhou-o ininterruptamente até 1987. Depois, retomou-o em 2002 e foi até 2006, para os últimos quatro episódios. E os anos passam na própria série - os miúdos crescem, as personagens envelhecem e - eis o pior - os livros vão-se tornando cada vez mais negros.

 

O que começou por ser uma série de aventuras juvenil e animada sobre um caçador de peles no oeste selvagem que se apaixona por uma jovem squaw,

 

 

transforma-se aos poucos numa obra madura sobre a separação, a violência, a dor e o envelhecimento.

 

 

Isso significa que Buddy Longway se vai tornando cada vez mais negro: Jeremiah, o filho mais velho, morre num dos episódios, e Buddy e Chinook também têm um trágico desaparecimento.

 

Tudo isto a Carolina viveu com o máximo de intensidade, ao longo de quase 1000 páginas de BD. E consequentemente, houve aqui e ali umas sessões de choro, que a Teresa apreciava pouco, sobretudo porque a seguir vinham as sessões de pesadelos.

 

"Demorei duas horas a adormecer a tua filha!", protestou a Teresa há umas semanas, após a leitura de uma história especialmente emotiva.

 

Eu compreeendo a excelentíssima esposa, e os seus instintos proteccionistas, mas eu olho para as lágrimas da Carolina e para os seus pesadelos de um modo inteiramente diferente. Sinto-me orgulhoso das suas lágrimas, porque acho comovente a capacidade que ela já tem de imergir dentro de uma história feita apenas de papel e tinta, sinto-me orgulhoso da intensidade que consegue colocar na leitura de um livro e da sua capacidade de entrega, que qualquer obra de arte exige por parte de quem a lê ou vê. Nas lágrimas onde a Teresa vê tristeza, eu vejo a alegria de uma pequena leitora que descobre o magnífico poder de uma história.

 

E quanto aos pesadelos... Bom, os pesadelos existirão sempre, com ou sem Buddy Longway. É verdade que ela sonha com o livro, como sonha com o Harry Potter ou com as cenas assustadoras do Indiana Jones. Mas se não fosse com isso, sonhava com cães, lobos, cobras ou gente, e era com eles que se assustaria. Nós temos influência no combustível que colocamos dentro da cabeça das crianças, mas o motor do medo e do pesadelo existirá sempre, e se não se alimentar disto irá alimentar-se daquilo.

 

Portanto, cara esposa, peço desculpas antecipadas por todos os pesadelos que continuarei a provocar nos nossos filhos. Mas sempre que puder vou definitivamente mergulhá-los no mundo das histórias, umas mais negras, outras menos negras, mas todas elas, quando bem executadas, fonte de um enorme consolo - o consolo da imaginação e da ficção, que até hoje me proporcionou alguns dos momentos mais felizes da minha vida.

 

E, diante disso, não há pesadelo que me assuste.

 

publicado às 15:49


7 comentários

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De Daniela a 31.10.2014 às 14:26

Olá João!

Pode-me dizer onde comprou os livros em português?
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De João Miguel Tavares a 31.10.2014 às 15:23

Os livros em português estão esgotadíssimos, Daniela. Os primeiros são ainda da Bertrand. Mas deve encontrar alguns volumes na OLX ou no Coisas.
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De Anónima a 18.11.2013 às 12:50

De facto, a leitura é um prazer!
No meu caso, o agradável é ver a minha filha (que frequenta o 4º ano) ler, especialmente à noite, para o irmão. Simplesmente, reconfortante.
E concordo, os medos sempre existirão... o que importa é descobrirem a leitura e a sua capacidade de se envolverem.
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De Maria C. a 15.11.2013 às 14:53

Sempre gostei muito de ler e faço-o sempre que posso (ando sempre com um livro "atrás de mim"). Por vezes a m/ filha dá comigo a chorar enquanto leio - o que eu chorei a ler "A Pérola"! - e farta-se de gozar comigo pois não consegue compreender como é que uma história de um livro, com personagens imaginados, me faz chorar.
Infelizmente, não consegui "passar" para qualquer dos meus filhos (tenho 2) o prazer pela leitura - bem tentei, experimentando diversos tipos de livros, desde BD, aventuras, crónicas... À semelhança de grande parte dos jovens, ler, para eles, é um castigo; em regra, na escola que eles frequentam, na disciplina de Português, têm de fazer a apresentação de um livro (à escolha deles mas validado pelo/a professor/a) - para além do dito, a leitura de livros é muitos escassa... Para grande tristeza minha, que acho que ler nos enriquece a todos os níveis...
Por isso, fiquei emocionada com a reação da Carolina que revela, de facto, uma capacidade muito grande de se envolver nas histórias e nas emoções dos personagens, ainda que imaginados.
Os pesadelos... bem vistas as coisas, a história do Capuchinho Vermelho também pode ser traumatizante - não lembra ao diabo, embora tenha lembrado a um autor de contos infantis, pôr um lobo a comer uma amorosa avózinha e um caçador a abrir a barriga do dito, para sacar de lá a velhinha... :)
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De Inês a 15.11.2013 às 10:53

Bom dia Pais de Quatro,
Eu sei que foi o João que escreveu o post mas não posso, nem quero, falar para um sem incluir o outro.
Ora, assim começando, vamos ao que interessa: OBRIGADA!
Pelos posts divertidos, pela partilha, pela família grande, pelas histórias e por me trazerem agora o Buddy Longway! Antes ainda de ler o post, identifiquei de imediato a história pelas imagens. Soube tão bem.
Beijinhos para todos.
Inês
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De Anónimo a 15.11.2013 às 09:48

Bom dia João.
Não faz ideia do quão emocionada fique ao ler este post.
Tenho 38 anos e infelizmente tenho muitas dificuldades na interpretação de textos e na leitura de livros. Por vezes chego até a ter vergonha de falar com medo de não me saber expressar.
Tenho um filhote com 3 a nos e meio e como não gostaria que sofresse o mesmo que eu tenho desde muito cedo lido histórias para ele. O problema é não saber que livros escolher.
Sendo o João e a Teresa pais de quatro não me poderia ajudar nesse sentido?

Obrigada
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De Bruxa Mimi a 02.01.2014 às 22:35

Talvez não venha a tempo, mas recomendo este blogue sobre livros infantis que é de uma educadora de infância:
http://martaeoslivrosinfantis.blogspot.pt/

Boas leituras!

P.S. - Já agora, como professora e mãe de três, acrescento que um bom livro para crianças agrada também aos pais. Se não agradar, não deve ser grande coisa... Pode usar esse critério na escolha, ou então ir a uma biblioteca e pedir conselho a um funcionário. Neste caso tem a vantagem de poder requisitar o livro, lê-lo à criança e não gastar dinheiro na experiência...

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