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Nem imaginam o que a excelentíssima esposa me tem chateado nos últimos tempos por causa disto:
Isto, para quem não sabe, é uma série de banda desenhada chamada Buddy Longway. Em tempos foram publicados os sete primeiros volumes em Portugal, e eu sempre gostei da série, como costumo gostar de quase tudo o que tem a ver com o oeste americano (efeitos de ter passado a infância a brincar aos índios e aos cowboys). Depois, como é habitual nas séries de BD publicadas nesta terra, a edição das aventuras de Buddy Longway ficou pelo caminho, apesar de o seu autor, o suíço Derib, ter continuado a desenhá-la até 2006, assinando um total de 20 volumes, que eu acabei por comprar há não muito tempo nas excelentes edições integrais da Lombard.
O que se passa - e o que interessa para aqui - é que eu decidi ler toda a série à noite, antes de deitar, à Carolina. Os sete primeiros livros ela leu sozinha em português, mas a partir daí há 13 álbuns em francês (mais um epílogo), que ela ainda não consegue ler, e por isso pediu-me ajuda. O meu francês é um bocado manhoso, mas com a ajuda de um dicionário para palavras mais difíceis, passámos numerosos serões a ler as aventuras de Buddy Longway, da sua esposa índia Chinook, e dos seus dois filhos, Jeremiah e Kathleen.
O problema está em que a série não tem nada a ver com o Astérix, o Tintin ou o Lucky Luke, onde o tempo passa mas a cada episódio é como se não passasse - eles têm sempre a mesma idade e estão sempre a começar tudo de novo. Derib criou Buddy Longway em 1974 e desenhou-o ininterruptamente até 1987. Depois, retomou-o em 2002 e foi até 2006, para os últimos quatro episódios. E os anos passam na própria série - os miúdos crescem, as personagens envelhecem e - eis o pior - os livros vão-se tornando cada vez mais negros.
O que começou por ser uma série de aventuras juvenil e animada sobre um caçador de peles no oeste selvagem que se apaixona por uma jovem squaw,
transforma-se aos poucos numa obra madura sobre a separação, a violência, a dor e o envelhecimento.
Isso significa que Buddy Longway se vai tornando cada vez mais negro: Jeremiah, o filho mais velho, morre num dos episódios, e Buddy e Chinook também têm um trágico desaparecimento.
Tudo isto a Carolina viveu com o máximo de intensidade, ao longo de quase 1000 páginas de BD. E consequentemente, houve aqui e ali umas sessões de choro, que a Teresa apreciava pouco, sobretudo porque a seguir vinham as sessões de pesadelos.
"Demorei duas horas a adormecer a tua filha!", protestou a Teresa há umas semanas, após a leitura de uma história especialmente emotiva.
Eu compreeendo a excelentíssima esposa, e os seus instintos proteccionistas, mas eu olho para as lágrimas da Carolina e para os seus pesadelos de um modo inteiramente diferente. Sinto-me orgulhoso das suas lágrimas, porque acho comovente a capacidade que ela já tem de imergir dentro de uma história feita apenas de papel e tinta, sinto-me orgulhoso da intensidade que consegue colocar na leitura de um livro e da sua capacidade de entrega, que qualquer obra de arte exige por parte de quem a lê ou vê. Nas lágrimas onde a Teresa vê tristeza, eu vejo a alegria de uma pequena leitora que descobre o magnífico poder de uma história.
E quanto aos pesadelos... Bom, os pesadelos existirão sempre, com ou sem Buddy Longway. É verdade que ela sonha com o livro, como sonha com o Harry Potter ou com as cenas assustadoras do Indiana Jones. Mas se não fosse com isso, sonhava com cães, lobos, cobras ou gente, e era com eles que se assustaria. Nós temos influência no combustível que colocamos dentro da cabeça das crianças, mas o motor do medo e do pesadelo existirá sempre, e se não se alimentar disto irá alimentar-se daquilo.
Portanto, cara esposa, peço desculpas antecipadas por todos os pesadelos que continuarei a provocar nos nossos filhos. Mas sempre que puder vou definitivamente mergulhá-los no mundo das histórias, umas mais negras, outras menos negras, mas todas elas, quando bem executadas, fonte de um enorme consolo - o consolo da imaginação e da ficção, que até hoje me proporcionou alguns dos momentos mais felizes da minha vida.
E, diante disso, não há pesadelo que me assuste.