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Hesitei durante bastante tempo se haveria de escrever este texto, por me parecer um assunto demasiado íntimo para trazer aqui para o blogue, mas a Teresa achou que sim, que eu deveria, e no caso em apreço a palavra da Teresa é quase tudo. Além disso, a escrita obriga-nos a verbalizar o que muitas vezes fica esquecido dentro de nós, e pode ser que essa emersão de sentimentos sirva pelo menos de algum consolo para quem sofreu muito mais do que merecia.

 

Após uma longa luta de cinco anos contra a PAF (uma forma de paramiloidose conhecida em Portugal como a "doença dos pezinhos", um nome estupidamente infantil para uma doença degenerativa absolutamente devastadora), a Armanda, esposa do meu único irmão, e mãe dos meus sobrinhos Catarina e João Bernardo, faleceu em Lisboa no dia 24 de Dezembro, com apenas 44 anos.

 

Durante o seu último e prolongado internamento no Hospital Curry Cabral, a Armanda passou os fins-de-semana em nossa casa, e esta é uma das suas últimas fotos, tirada pelo meu irmão no seu quarto, junto com a Ritinha. Adoro que a Armanda se esteja a rir. Os nossos filhos gostavam muito da tia, e na sua invejável ingenuidade andavam contentíssimos por ela passar sábados e domingos cá em casa.  

 

 

A Armanda está a rir-se, e este meu texto pretende respeitar o seu sorriso. Não é difícil imaginar - embora seja impossível sentir - o que significa para uma menina de 11 anos e para um adolescente de 15 perder a mãe na véspera de Natal.

 

Este é um daqueles momentos em que é muito fácil soçobrar perante o peso da morte e o absurdo da existência. Mas deixar que o desânimo sem esperança se abatesse sobre nós seria um profundo desrespeito pela memória de uma mãe que sempre procurou manter os filhos à porta da sua dor. O Natal é a época por excelência da família, e o que todos tivemos de fazer foi ser mais família do que nunca, cada um - incluindo o Gui, o Tomás, a Carolina e a Rita - fazendo o seu papel para aliviar a dor de quem mais estava a sofrer.

 

O sofrimento nunca se deseja, mas saber aceitá-lo - e partilhá-lo - é um dom inestimável: em vez de uma dor estéril, que nos isola, aprofundamos os laços que nos unem uns aos outros. Canalizamos a dor para o amor. O que podemos fazer quando uma mãe tão jovem morre numa tarde de véspera de Natal? Não desistir, não adiar: antes celebrar o Natal em sua honra, e em honra do maravilhoso dom da vida que concedeu ao João e à Catarina.

 

Foi isso que fizemos. Todos juntos, em nossa casa. Conversámos, partilhámos, e a sobremesa dessa noite foi preparada com um doce de abóbora que a própria Armanda tinha feito e nos tinha oferecido há algum tempo. Os nosso filhos, por vezes tão esquisitos na hora da sobremesa, comeram o doce de abóbora sem pestanejar (incluindo a Rita, que lambeu a colher), no que foi um verdadeiro milagre de Natal e um pequeno, mas muito sentido, gesto de amor pela sua tia. E quando chegou a hora de trocar as prendas, a própria Ritinha soube fazer a sua parte, animando-nos com uma incrível toilette natalícia.

 

 

No seu último disco ao vivo, gravado em Londres em 2009, Leonard Cohen - um homem que eu escuto com a devoção de um profeta, e que me parece ter alcançado um outro patamar de sabedoria - faz uma introdução ao tema "Ain't no Cure for Love" onde lista com ironia todos os antidepressivos que já experimentou, acrescentando ainda que ao longo dos anos se dedicou a estudar profundamente várias filosofias e religiões. E no entanto, apesar de tudo isto, apesar de uma procura frenética e por vezes desesperada de um sentido para a vida, ele conclui: "cheerfulness kept breaking through". A alegria insistia em aparecer.

 

 

O que espanta não é, pois, a existência do sofrimento e a falta de sentido da morte - é que, apesar de tudo isto, apesar do "vale de lágrimas" e mesmo após uma dor tão profunda, a alegria insista em aparecer. Como apareceu na simultaneamente mais devastadora e mais consoladora noite de Natal dos meus 40 anos.

 

No funeral de dia 26 não se ouviu Leonard Cohen. Mas no final da missa o meu mano leu do púlpito um excerto do "Poema do Menino Jesus", de Fernando Pessoa, que a Armanda adorava, numa versão mais curta que a Maria Bethânia declamou num dos seus concertos e que termina assim: 

 

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar.

 

"Dá-me sonhos teus para eu brincar." Adoro a imagem de uma mãe entretendo-se na eternidade com os sonhos dos seus filhos. Honrar a sua memória é, por isso mesmo, sonharmos ainda mais alto do que antes, aprendendo a ser melhores filhos, melhores pais e melhores irmãos. Tanto por ela como por nós, até ao dia em que todos voltaremos a estar reunidos.

 

 

publicado às 09:40


65 comentários

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De Aires Duarte a 02.01.2014 às 10:57

Conheci a Armanda no ano de 1989. Numa sala de aula da UBI, quando nos reúnimos para a primeira aula do Curso de Sociologia. Era o de mais idade numa sala de jovens e de muita animação. E, assim, também eu fui atingido por aquela juventude e animação, rodeado de tantas colegas jovens e bonitas, de que a Armanda se destacava. Erradiava simpatia e afabilidade. Tais atributos, per nature, fizeram com que, aliados à minha franqueza e desassombro nas relações, nos tornássemos bons colegas e amigos. Coisa que nunca mais desapareceu, nem desaparecerá.
E nos anos de curso constituimos sempre grupos de trabalho que integravam também uma outra colega - a Lina Oliveira. Foi um grupo espectacular, de grande companheirismo em que prevalecia a solidariedade e a amizade.
Para ilustrar aquilo que acabo de afirmar vou vos contar um episódio que retrata a qualidade da mulher que era a Armanda.
A disciplina de Estatística não era para mim tarefa fácil. Por várias ordens de razão que agora não vêm ao caso. Certo é que não era, e, por isso, tive que adiar a sua conclusão para os exames de segunda época, em Setembro.
A Armanda sabia da minha dificuldade e disponibilizou-se no período de férias escolares a trabalhar comigo aquela disciplina. E assim foi, sacrificou parte das suas férias. Diariamente lá ia eu para casa dos pais dela fazer exercícios de Estatística. Fomos recompensados com a conclusão da disciplina e assim não deixei para trás uma cadeira que, provavelmente, se tornaria mais difícil de fazer. O meu coração ficou eternamente grato. E ela sabe isso, lá onde estiver.
Sem imagem de perfil

De Aires Duarte a 02.01.2014 às 12:03

Corrijo um erro: Irradiava

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