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Sobre a infantilização das crianças #2

por João Miguel Tavares, em 03.01.14

Bom, este tema dá pano para infindáveis mangas, e há queixas de alguns leitores que nem sequer partilho pessoalmente. Por exemplo, o facto de a atenção das crianças ser hoje mais reduzida do que antigamente. Não sinto isso nos meus filhos.

 

Fico sempre espantado quando alguém se queixa que o seu filho não aguenta uma longa-metragem do princípio ao fim. Os meus começaram invariavelmente a ir ao cinema antes dos dois anos, e nunca tive problemas com eles. Talvez seja sorte minha. Mas, quando olhamos para os tijolos harrypotterianos que eles digerem com enorme enlevo, por exemplo, não me parece que a incapacidade de concentração possa ser considerada um problema generalizado. Na escola, também nunca tive essas queixas.

 

Aliás, a escola é um bom campo para certas ideias feitas que urge desmontar, como, por exemplo, a do facilitismo. O programa do ensino básico é hoje muito mais exigente do que era no meu tempo - os nossos filhos têm tudo para virem a ser mais cultos, melhor formados e mais exigentes consigo próprios do que nós algum dia fomos. Mas isso é outro tema, para uma outra altura.

 

O que é verdade, no entanto, é que a velocidade dos desenhos animados e dos filmes é muitíssimo superior hoje do que era há 30 anos. Mas aí, diria que há um muito irritante frenesim da montagem herdado dos videoclips, do cinema de acção e dos jogos de computador, potenciado na animação por questões económicas, já que as mudanças constantes de plano permitem esconder a falta de movimento dentro dos próprios planos, que é o que custa mais €€€€.

 

Nesse sentido, considero que a qualidade da animação televisiva, em termos não tanto de argumento (porque há desenhos animados bem divertidos) mas da própria animação, é muito mais pobre do que na nossa juventude. Posso garantir por experiência própria que não é necessariamente o mercado a responder às novas exigências dos consumidores - os meus filhos adoram o Conan, o Tom Sawyer, o Dartacão (este já mais pobre). São eles, enquanto pequenos consumidores, que têm de se adaptar à oferta do mercado.

 

"Conan, o Rapaz do Futuro", de Hayao Miyazaki 

 

E este é o ponto central. Existe, na minha opinião, bastante falta de arrojo no cinema de animação (e nos blockbusters, já agora) actuais. Na televisão, há alguma imaginação mas falta dinheiro para fazer melhor. No cinema, há muito dinheiro mas a imaginação já viu melhores dias.

 

Há quem fale da Pixar, e a Pixar, de facto, foi uma impressionante fábrica de obras-primas. Mas isso acabou com Toy Story 3, e os últimos filmes já são um morder da própria cauda. A Disney, essa, é sempre inatacável em termos técnicos, mas está, na minha opinião, numa encruzilhada criativa, da qual nem John Lasseter a conseguiu resgatar. Estúdios como a DreamWorks ou a Blue Sky têm laivos pontuais de inspiração, e depois há uma miríade de pequenos estúdios que cresceram à sombra do digital e que, de um modo geral, só fazem lixo.

 

Depois, como em tudo, existem excepções. A maior de todas é aquele que, para mim (e para quase toda a gente, na verdade), é o maior realizador de filmes de animação de todos os tempos: o japonês Hayao Miyazaki. Aliás, há novo filme em 2014 (ele diz que será o seu último, mas não é a primeira vez que o diz), e já estou a salivar por antecipação. Em tempos, falei um bocadinho sobre Miyazaki e sobre o Totoró neste blogue, uma paixão que se renova a cada visionamento dos seus filmes. É um campeonato totalmente à parte, uma forma de olhar para o mundo das crianças com óculos orientais, que são muito diferentes dos nossos, e por isso de uma riqueza que urge aproveitar.

 

"Totoró", de Hayao Miyazaki 

 

Mas claro, há excepções nos países francófonos, e mesmo em Inglaterra (a Aardman, que hoje em dia também já dá cartas na animação televisiva, com a deliciosa Ovelha Choné) e nos Estados Unidos, com as abordagens mais góticas de Tim Burton e de Henry Selick, responsável por um filme que eu adoro, que mete muito medo e que não é The Nightmare Before Christmas/O Estranho Mundo de Jack: chama-se Coraline, é feito a partir de um argumento de Neil Gaiman e deu origem a protestos nas salas portuguesas em 2009, por supostamente assustar excessivamente as criancinhas, coitadinhas.

 

Coraline e a sua falsa mãe, com botões em vez de olhos 

 

Bom, como vêem, eu gosto mesmo muito de falar disto, mas este post já vai demasiado longo. Mais coisas sobre a Disney, a utilidade de assustar as crianças e a necessidade de lhes contar boas histórias dentro em breve.

publicado às 09:50


7 comentários

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De Filipe Ladeira a 04.01.2014 às 11:23

Excelente artigo/opinião!
Concordo inteiramente com tudo o que foi dito e partilho a opinião acerca dos filmes e séries comentados.
Podem-nos chamar saudosistas e até pode acontecer daqui a 20 ou 30 anos, as crianças de hoje em dia, nessa altura adultos, estarem a fazer um artigo de opinião relevando o Dragonball, Winx e afins referindo-se a boa animação quando eram crianças mas o que é um facto é que a animação hoje em dia é muito pobre em quase todos os aspectos.

Muito por causa também de muitas concepções sobre pedagogia e educação que dizem que a violência na TV e desenhos animados leva a violência nas crianças... ora bem... Eu cresci a ver Warner Brothers com Daffy Duck, Bugs Bunny e as famosas cenas violentas do "Bic-Bic", Tom & Jerry (muito pacifico e amoroso certo!?!), e outras mas não é por isso que ando aos tiros ou à pancada com outras pessoas.

Muitas vezes dou por mim a ligar para Cartoon Network e TCM para relembrar exactamente o Tom & Jerry, Warner Brothers, Ren & Stimpy, Cow and Chicken, além de ter algumas "colecções" dos clássicos japoneses/franceses: Dartacão, Conan, Lendas da Floresta Verde, Tom Sawyer, David o Gnomo e outros... As viagens de Chihiro é uma obra de arte!

Enfim... umas fadas que um dia estão debaixo de água outras em escolas, umas vampiras fofas, ou uns superheróis disformes (leia-se Gormiti) é algo que me custa a entranhar mas que admito que provoca fascinio nas crianças hoje em dia... Mas será por conhecerem apenas essa realidade? Se os expusermos aos "bons" desenhos animados/filmes será que vão-se aperceber da qualidade?
A minha sobrinha adora os Marretas mas porque foi exposta a tal desde cedo. Se mostrar o Conan será que vai gostar? ou será que tem pouco 3D e cores?

Marretas voltem!
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De emiliasilva a 03.01.2014 às 18:59

Concordo totalmente com JMT , nem os programas são mais fáceis nem os miúdos perderam capacidades, existe sim por parte de muitos adultos que interagem com as crianças falta de tempo e espaço mental para os acompanhar. Vivemos numa sociedade em que os miúdos estão expostos a muita informação mas onde não existe tempo para a tratar e isto não dá bons resultados.
Quando tive o privilegio de ver novamente o mundo através dos olhos de uma criança (porque fui mãe)e fiquei espantada com a quantidade de bons produtos culturais que as bibliotecas públicas oferecem, desde os livros os vídeos e os DVds até aos espaços preparados para receber os miúdos e as famílias e a programação continuada com teatrinhos, leitura de contos etc.
Como mãe pouco abonada fui assídua frequentadora destes espaços que a minha filha agora continua a frequentar. Está uma tarde de chuva ou muito sol, vai-se a um espaço climatizado e simpático lê-se um livro e trazemos mais para casa.
Recomendo as bibliotecas públicas às famílias.
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De parislasvegas a 03.01.2014 às 15:29

Caro João, permita-me uma sugestão (se é que ainda não conhece) francófona: Michel Ocelot. Os filmes sobre o pequeno herói de uma aldeia africana (Kirikou) e sobre as aventuras de dois "irmãos" de cores diferentes em cenário Árabe (Azur e Azmar) são um festim para os olhos e uma lição de diversidade cultural para toda a família!
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De parislasvegas a 03.01.2014 às 15:36

E já me esquecia: o meu mais velho só tem seis anos, mas já lhe comprei a edição Delux do "Sandman" do Neil Gaiman para quando ele fizer 18 :-) (belas desculpas que a mãe inventa...).
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De João Miguel Tavares a 03.01.2014 às 15:37

Conheço, sim. Os meus filhos gostam muito do "Azur e Azmar".
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De Hugo Barreira a 03.01.2014 às 14:33

Caro JMT,

À semelhança do que acontecia no post anterior sobre o mesmo tema, também aqui concordo consigo. Há muito a desmontar, muito mito (bom e mau), mas também muita inércia. Mais do que apontar o que é mau e pairar sobre ele, será útil, como o fez, apontar o que há de bom e recomendável, e tentar aprender a valorizar o que existe.
Sobre a animação, há um aspeto que, a não ser que me tenha escapado, não foi aqui, nestes dois posts, referido. A animação nos seus primórdios não foi feita especificamente para crianças, como aliás o atestam as diversas Silly Symphonies, Merry Melodies, Talkatoons, etc. O conceito de filmes "para crianças", é bem mais recente que a Disney, a Warner, ou os Hanna Barbera. E Miyazaki recorda-nos isso magistralmente.
Contudo, tal como qualquer outro produto cultural, a animação, especialmente a dos grandes e mais antigos estúdios, tem que gerir um legado (estético/artístico, cultural, histórico, nacional... ) e adaptar-se aos novos tempos, reinventando-se, atualizando-se, mas mantendo a sua imagem. O resultado, mesmo na animação digital, é um repositório de características comuns entre as diversas produções, que se traduz, num plano estético mais imediato, num "ar de família" que nos permite, sem grande dificuldade, dizer: isto é Disney, isto era Warner (Looney Tunes), isto era Hanna Barbera (desde o Tom & Jerry e derivados, até aos Flinstones, Jetsons, etc. Com as diversas alterações técnicas e culturais que entre estes dois períodos ocorreram). Isto é bem visível nas criaturas da Disney, tal como o é no Miyasaki. Ironicamente, isso acarreta que, em termos latos, um filme como Fantasia (Disney, 1940) fosse acusado, na época, de empobrecer e popularizar (no sentido negativo) a alta cultura (Bach, Beethoven, etc.), e, atualmente, seja considerado insuportavelmente aborrecido para a maioria das crianças, e mesmo para muitos adultos. Mas a nossa falta de contextualização não nos permite separar os Looney Tunes ou a Disney dos anos 30, 40 e 50 (iniciais), do advento da animação dirigida a diferentes idades ou públicos. Está tudo nessa grande caldeirão de "entretenimento familiar" e, no caso de produtos que alguém considere "mais artísticos", estarão na panelinha dos filmes "alternativos"...
É importante, acima de tudo, fazer e ver bons filmes. E, ainda mais importante, falar sobre eles! Apreciar os seus aspetos de entretenimento, artísticos, técnicos, mas também saber vê-los como produto de uma cultura da qual fazemos parte e a qual somos convidados a construir. Foi o reconhecimento dessas qualidades que fez a Disney afirmar-se, ou que nos faz valorizar o Miyasaki. E, tal como o JMT referiu, ele permite-nos entrar no universo das crianças, mas não "infantiliza", não trunca, não reduz, antes convoca e converte(-nos)... Saímos sempre mais ricos de um bocadinho com a obra de Miyasaki, mas saímos também a conhecermo-nos melhor e a recordar melhor a criança que fomos (e somos). Com o cinema não há diferença, a criança do cinema dos anos 30, em que a cor e o som eram novidade, ainda existe hoje, mas, à semelhança do que acontece com o resto das experiências que a vida nos dá, não aproveitamos... Assim, mais do que censurar, criticar facilmente e apontar defeitos, porque não apreciar qualidades no que existe e, sobretudo, tentar desenvolver um espírito crítico, que falece a crianças e adultos...
A animação, além de possível causa, é sobretudo sintoma, não dos problemas das crianças, mas dos problemas da cultura em que elas, e nós, crescemos.
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De João Méndez Fernandes a 03.01.2014 às 13:59

Caro João Miguel Tavares,

Concordo com o que afirmou neste texto só tenho que acrescentar que o cinema de animação espanhol também também alguma qualidade nomeadamente com o filmes: A Floresta Mágica, mas sobretudo com Nocturna - A Noite Mágica.

Como em tudo na vida existem coisas boas e menos boas. A questão que se deve fazer é se os pais estão ao corrente do universo dos filhos, nomeadamente através dos filmes, dos livros e dos videojogos. Sugiro que os pais antes de oferecerem alguma coisa aos seus filhos, vejam primeiro, e desfrutem-nas como se fossem para eles.

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