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Sobre a infantilização das crianças #3

por João Miguel Tavares, em 06.01.14

Voltemos, então, à história da infantilização das crianças (posts anteriores aqui e aqui), e em particular às razões por que eu acho que o Henrique Raposo foi demasiado generoso para com o senhor Walt Disney no seu texto original no Expresso.

 

Não me entendam mal: eu adoro uma vasta pilha de filmes da Disney, e sobre todos os assuntos há sempre perspectivas muito diferentes. Aliás, a propósito de filmes muito recentes (da Disney e não só), a Ana Markl deixou no meu Facebook um link para um texto interessante, que tem uma perspectiva absolutamente contrária àquela que está a ser adoptada aqui sobre os filmes de animação, defendendo que algumas das mais recentes longa-metragens animadas estão mais adultas.

 

Ou seja, não me custa admitir a existência de picos de negrura, digamos assim, e que um Frozen ou um Entrelaçados sejam, apesar de tudo, menos infantis e mais negros do que um Winnie the Pooh ou um Chicken Little. Não será propriamente por acaso, já que tanto Frozen como Entrelaçados nascem do desejo da Disney em regressar aos contos tradicionais: o primeiro é inspirado no conto de Hans Christian Andersen A Rainha do Gelo e o segundo no Rapunzel dos irmãos Grimm. E quanto mais tradicional, mais negro.

 

Ainda assim, o que me parece é que a Disney se impôs precisamente através da domesticação dos contos tradicionais, retirando-lhes os seus factores de perturbação, limando-lhes as arestas, açucarando-os. Mesmo aquilo que para a minha geração continuava a ser o momento mais traumático dos filmes para crianças - a morte da mãe no filme Bambi (baseado numa novela austríaca de 1923, e não num conto tradicional) - nunca chega a ser visto. A morte da mãe de Bambi ocorre num belíssimo e pungente fora de campo. Não retira em nada a sua força, mas não deixa de ser uma elipse, que afasta o olhar da criança da contemplação directa da morte.

 

 

Não há aqui nenhum desejo da minha parte de andar a atirar o horror e o sofrimento à cara das crianças. O Bambi já é suficientemente assustador assim. Mas veja-se, por exemplo, Os Três Porquinhos, em que se deixa que o lobo mau se escape apenas com o rabo queimado, quando no conto original ele morre na panela de água a ferver e é comido pelos porcos.

 

O problema está em que se começa a deixar fugir o lobo apenas com o rabo queimado e se acaba a cantar, 80 anos depois, "atirei o peixe ao gato/ mas o gato não comeu", como contava a leitora Cris num comentário ao primeiro post (02.01.2014 às 12:44), num alastramento do politicamente correcto e de uma hiper-protecção que é completamente contraproducente.

 

 

E contrapoducente porquê? Porque a morte do lobo e a sua ingestão pelos porcos pode ser vista como uma crueldade horrível, mas aos olhos de uma criança significa a destruição definitiva do mal. O lobo que só foge com o rabo queimado, pelo contrário, está apenas ferido e pode muito bem regressar.

 

O que quero dizer com isto é que a ausência de confronto das crianças com aspectos mais tenebrosos da vida não me parece que seja necessariamente mais educativa para elas. A injustiça e o mal continuam a pairar, porque pairam sempre, é impossível criá-los numa redoma, e depois falta-lhes instrumentos que enquadrem esse mal, que o aprisionem e o tornem controlável. Os contos tradicionais, oriundos de uma oralidade perdida na noite dos tempos, tinham essa função bem definida.

 

Uma nota, bem sublinhadinha, para quem gosta muito de ver o mundo a preto e branco: eu não estou a dizer que os filmes da Disney são maus. Os meus filhos vão vê-los sempre, mal acabam de estrear. O que eu digo é que eles estabeleceram uma fórmula adocicada de sucesso planetário, e não devem ser a única coisa que eles vêem. É como se os estivéssemos a alimentar apenas a chocolate. Não é bom. O imaginário, como a barriga, merece e precisa de outras variedades.

 

Mais uma vez este post já vai longo, e falei apenas de cinema. Se fôssemos para os domínios da música, a situação é bastante mais pobre. E em relação aos livros infantis, passa-se um outro fenómeno, também ligeiramente pernicioso, que vale a pena abordar numa próxima oportunidade: a "adultização" das histórias para crianças. Fica prometido.

publicado às 10:06


8 comentários

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De Teresa Power a 06.01.2014 às 21:50

Fico à espera do post sobre "adultização" dos livros para crianças... Sim, é cada vez mais difícil encontrar um bom livro para crianças, sem termos de lidar com os problemas dos adultos com tendência para a psicanálise. Enfim, cá em casa vemos pouquíssimo cinema, mas lemos muitíssimo, e o grande herói dos meus filhos - todos - é Roald Dahl. Quando o pai lhes lê um capítulo, depois de jantar, até eu páro a meio do corredor para ouvir o final da frase...
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De Ana Cunha a 06.01.2014 às 16:17

Quando era criança adorava que me contassem as histórias chamadas "de faça e alguidar". Falavam de coisas e de pessoas estranhas, de outros tempos, impressionavam e metiam medo... Mas eu adorava! Quem mas contava eram as empregadas do meu avô que vinham das aldeias do Gerês e que me encantavam sempre com histórias novas contadas à noite antes de ir dormir.
Agora, quando penso em algumas parecem-me tenebrosas... mas se o meu filho gostar também lhas contarei um dia!
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De sofia slotboom a 06.01.2014 às 15:26

Concordo inteiramente com o seu post. Adoro os filmes da Disney mas acho que as crianças não devem crescer numa redoma. Precisam de saber que nem tudo são rosas, e através dos contos vai-se introduzindo a noção do Mal de uma forma mais controlada e, a meu ver, saudável...
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De André a 06.01.2014 às 13:21

Olá JMT, é realmente um debate interessante, deixo algumas notas:

a)"mas aos olhos de uma criança significa a destruição definitiva do mal. O lobo que só foge com o rabo queimado, pelo contrário, está apenas ferido e pode muito bem regressar.";

isto parece-me ser muito mais uma visão de um adulto do que de uma criança, o adulto é que "racionaliza" que o Lobo pode voltar, se nós acabarmos a história com um "e o lobo desapareceu para sempre" imagino que muitas crianças aceitem facilmente a premissa (além da visão punitiva e irremediável da coisa)

b)"Os contos tradicionais, oriundos de uma oralidade perdida na noite dos tempos, tinham essa função bem definida";

os contos tradicionais evoluem muito ao longo dos séculos, e tenho dúvidas sobre se em vez de visão "educativa" não devíamos falar de dimensão "moralista" (associada aos tais conceitos de punição), na evolução destes. Além de que se pensarmos na versão moderna dos 'folk tales' (as lendas e mitos urbanos), muitas vezes também encontramos neles uma necessidade de controlo e advertência aos "perigos do mundo". Eles acabam por educar as crianças, é verdade, mas para que tipo de mundividência? (acho que esta é uma das questões essenciais).

Além de que os contos tradicionais, na sua origem, nunca foram só para crianças, portanto quando eles são 'adaptados' para um publico mais infantil, numa sociedade menos supersticiosa e mais avançada, é natural que sejam suavizados. Estar a argumentar que esta "suavização" pode afectar o compasso moral dos mais novos, parece-me altamente discutível, ao nível de dizer que as pessoas precisam da religião para serem boas.
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De Marco Neves a 06.01.2014 às 17:23

Os contos tradicionais, mesmo os do século XIX, são fruto também dum tempo muito mais violento do que o nosso, ao contrário do que possa parecer aos mais desatentos. (Há um livro de Steven Pinker, muito recente, sobre isto: The Better Angels of Our Nature.)

A menor violência em filmes e séries direccionadas para crianças pode ser um reflexo dessa menor violência nas nossas sociedades e da menor tolerância a essa violência por parte das sociedades aburguesadas que somos. Alguns vêem nisto apenas mediocridade, mas também há um apagamento dessas arestas violentas e mais feias da sociedade. É menos interessante? Talvez, mas será que queríamos voltar a tempos bem mais agrestes para as nossas crianças?

Depois, é também importante que as crianças não naturalizem a violência como algo comum. Obviamente, não devem estar numa redoma. Mas basta ver televisão e a redoma desfaz-se logo.

Já agora, em termos pessoais, não me parece que faça mal ver filmes um pouco mais violentos. Absolutamente nada contra. Parece-me apenas que esta "infantilização" tem como causa uma menor tolerância da violência.
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De Simplesmente Ana a 06.01.2014 às 12:55

Respondendo ao primeiro comentário, eu ainda hoje vejo o Dumbo a ser embalado pela sua mãe presa com lágrimas nos olhos.

Mas voltando ao post, especificamente na parte que refere a história dos Três Porquinhos. Se o lobo, hoje em dia, se escapa apenas com um rabo queimado, isso não será uma forma de as crianças interiorizarem que os maus também podem aprender a serem bons /a arrependerem-se? Ou que devemos dar uma segunda oportunidade a todos? Eu vejo assim, muito embora tenha crescido com a versão mais sombria e não me tenha chocado, digamos assim.

E, já agora, há alguma teoria que explique o facto de matarem quase sempre as mães? Há vários exemplos: Cinderela, A Bela e o Monstro, Nemo, A Branca de Neve, Bambi, Pocahontas, A Pequena Sereia e por aí fora.
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De Bruxa Mimi a 06.01.2014 às 21:56

Teorias fundamentadas não conheço, mas a minha teoria é que, em muitos casos, tinham de matar as mães para darem lugar às madrastas! Em muitas das histórias matam também os pais, mais tarde, para "equilibrar"...
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De Daniela Teixeira a 06.01.2014 às 12:33

Nasci em 1989 e o Bambi foi um dos filmes mais marcantes da minha infância, exatamente por causa da morte da mãe. Vi o filme repetidas vezes e chorava sempre nessa parte. Ainda hoje, quando me lembro dessa passagem fico com um grande nó na garganta, por incrível que pareça. No entanto, a "moral" da história, é, na minha opinião, belíssima. Apesar das agruras da sua vida, o Bambi faz amizade com os animais da floresta, apaixona-se e aprende a viver por si.

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