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Voltemos, então, à história da infantilização das crianças (posts anteriores aqui e aqui), e em particular às razões por que eu acho que o Henrique Raposo foi demasiado generoso para com o senhor Walt Disney no seu texto original no Expresso.
Não me entendam mal: eu adoro uma vasta pilha de filmes da Disney, e sobre todos os assuntos há sempre perspectivas muito diferentes. Aliás, a propósito de filmes muito recentes (da Disney e não só), a Ana Markl deixou no meu Facebook um link para um texto interessante, que tem uma perspectiva absolutamente contrária àquela que está a ser adoptada aqui sobre os filmes de animação, defendendo que algumas das mais recentes longa-metragens animadas estão mais adultas.
Ou seja, não me custa admitir a existência de picos de negrura, digamos assim, e que um Frozen ou um Entrelaçados sejam, apesar de tudo, menos infantis e mais negros do que um Winnie the Pooh ou um Chicken Little. Não será propriamente por acaso, já que tanto Frozen como Entrelaçados nascem do desejo da Disney em regressar aos contos tradicionais: o primeiro é inspirado no conto de Hans Christian Andersen A Rainha do Gelo e o segundo no Rapunzel dos irmãos Grimm. E quanto mais tradicional, mais negro.
Ainda assim, o que me parece é que a Disney se impôs precisamente através da domesticação dos contos tradicionais, retirando-lhes os seus factores de perturbação, limando-lhes as arestas, açucarando-os. Mesmo aquilo que para a minha geração continuava a ser o momento mais traumático dos filmes para crianças - a morte da mãe no filme Bambi (baseado numa novela austríaca de 1923, e não num conto tradicional) - nunca chega a ser visto. A morte da mãe de Bambi ocorre num belíssimo e pungente fora de campo. Não retira em nada a sua força, mas não deixa de ser uma elipse, que afasta o olhar da criança da contemplação directa da morte.
Não há aqui nenhum desejo da minha parte de andar a atirar o horror e o sofrimento à cara das crianças. O Bambi já é suficientemente assustador assim. Mas veja-se, por exemplo, Os Três Porquinhos, em que se deixa que o lobo mau se escape apenas com o rabo queimado, quando no conto original ele morre na panela de água a ferver e é comido pelos porcos.
O problema está em que se começa a deixar fugir o lobo apenas com o rabo queimado e se acaba a cantar, 80 anos depois, "atirei o peixe ao gato/ mas o gato não comeu", como contava a leitora Cris num comentário ao primeiro post (02.01.2014 às 12:44), num alastramento do politicamente correcto e de uma hiper-protecção que é completamente contraproducente.
E contrapoducente porquê? Porque a morte do lobo e a sua ingestão pelos porcos pode ser vista como uma crueldade horrível, mas aos olhos de uma criança significa a destruição definitiva do mal. O lobo que só foge com o rabo queimado, pelo contrário, está apenas ferido e pode muito bem regressar.
O que quero dizer com isto é que a ausência de confronto das crianças com aspectos mais tenebrosos da vida não me parece que seja necessariamente mais educativa para elas. A injustiça e o mal continuam a pairar, porque pairam sempre, é impossível criá-los numa redoma, e depois falta-lhes instrumentos que enquadrem esse mal, que o aprisionem e o tornem controlável. Os contos tradicionais, oriundos de uma oralidade perdida na noite dos tempos, tinham essa função bem definida.
Uma nota, bem sublinhadinha, para quem gosta muito de ver o mundo a preto e branco: eu não estou a dizer que os filmes da Disney são maus. Os meus filhos vão vê-los sempre, mal acabam de estrear. O que eu digo é que eles estabeleceram uma fórmula adocicada de sucesso planetário, e não devem ser a única coisa que eles vêem. É como se os estivéssemos a alimentar apenas a chocolate. Não é bom. O imaginário, como a barriga, merece e precisa de outras variedades.
Mais uma vez este post já vai longo, e falei apenas de cinema. Se fôssemos para os domínios da música, a situação é bastante mais pobre. E em relação aos livros infantis, passa-se um outro fenómeno, também ligeiramente pernicioso, que vale a pena abordar numa próxima oportunidade: a "adultização" das histórias para crianças. Fica prometido.