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Uma das grandes alegrias de ter um blogue é termos a sorte de encontrar óptimos leitores. Felizmente, eles não têm faltado ao Pais de Quatro, e só tenho pena de não poder trazer mais comentários para a main page. A propósito deste post, escreveu o leitor intitulado Livros e Outras Manias (é também nome de um blogue, de autor anónimo):
Os contos tradicionais, mesmo os do século XIX, são fruto também dum tempo muito mais violento do que o nosso, ao contrário do que possa parecer aos mais desatentos. (Há um livro de Steven Pinker, muito recente, sobre isto: The Better Angels of Our Nature.)
A menor violência em filmes e séries direccionadas para crianças pode ser um reflexo dessa menor violência nas nossas sociedades e da menor tolerância a essa violência por parte das sociedades aburguesadas que somos. Alguns vêem nisto apenas mediocridade, mas também há um apagamento dessas arestas violentas e mais feias da sociedade. É menos interessante? Talvez, mas será que queríamos voltar a tempos bem mais agrestes para as nossas crianças?
Depois, é também importante que as crianças não naturalizem a violência como algo comum. Obviamente, não devem estar numa redoma. Mas basta ver televisão e a redoma desfaz-se logo.
Já agora, em termos pessoais, não me parece que faça mal ver filmes um pouco mais violentos. Absolutamente nada contra. Parece-me apenas que esta "infantilização" tem como causa uma menor tolerância da violência.
É uma óptima perspectiva, embora me pareça que a questão da naturalização da violência seja, aí sim, mais uma questão do adulto do que da criança, para a qual a violência é, em geral, mera encenação (como brincar aos índios e aos cowboys). Mas a verdade é que eu tenho o livro The Better Angels of Our Nature na minha estante há demasiado tempo. Comprei-o em versão hardcover, segundo a Amazon (que vigia todos os nossos passos), a 15 de Setembro de 2012. Nunca o li. Suponho que seja mais do que tempo para o resgatar da estante.
Um outro leitor, o André, não concorda totalmente com aquilo que escrevi:
Olá JMT, é realmente um debate interessante, deixo algumas notas:
a)"mas aos olhos de uma criança significa a destruição definitiva do mal. O lobo que só foge com o rabo queimado, pelo contrário, está apenas ferido e pode muito bem regressar.";
isto parece-me ser muito mais uma visão de um adulto do que de uma criança, o adulto é que "racionaliza" que o Lobo pode voltar, se nós acabarmos a história com um "e o lobo desapareceu para sempre" imagino que muitas crianças aceitem facilmente a premissa (além da visão punitiva e irremediável da coisa)
b)"Os contos tradicionais, oriundos de uma oralidade perdida na noite dos tempos, tinham essa função bem definida";
os contos tradicionais evoluem muito ao longo dos séculos, e tenho dúvidas sobre se em vez de visão "educativa" não devíamos falar de dimensão "moralista" (associada aos tais conceitos de punição), na evolução destes. Além de que se pensarmos na versão moderna dos 'folk tales' (as lendas e mitos urbanos), muitas vezes também encontramos neles uma necessidade de controlo e advertência aos "perigos do mundo". Eles acabam por educar as crianças, é verdade, mas para que tipo de mundividência? (acho que esta é uma das questões essenciais).
Além de que os contos tradicionais, na sua origem, nunca foram só para crianças, portanto quando eles são 'adaptados' para um público mais infantil, numa sociedade menos supersticiosa e mais avançada, é natural que sejam suavizados. Estar a argumentar que esta "suavização" pode afectar o compasso moral dos mais novos, parece-me altamente discutível, ao nível de dizer que as pessoas precisam da religião para serem boas.
Apenas um esclarecimento adicional da minha parte. Como eu tentei explicar, não acho propriamente mal que se proceda a uma suavização dos contos tradicionais. Acho apenas errado que essa suavização se torne um discurso mais ou menos exclusivo, ao ponto de qualquer leitura alternativa ser considerada "demasiado violenta" e, portanto, "desaconselhável".
O meu ponto central é este: a infantilização tem a ver com um determinado discurso açucarado que se vai aos poucos afirmando como o único possível. É a isso que me parece importante resistir, até como defesa da diversidade dos imaginários. Por isso elogio tanto Hayao Miyazaki (ou Neil Gaiman, ou o próprio Tim Burton) e insisto tanto para que os meus filhos o vejam - é uma maneira radicalmente diferente de contar histórias, e isso é extremamente enriquecedor.
Todo o trabalho dos estúdios Ghibli vai, aliás, nesse sentido, e se por aí houver alguém que já tenha visto um filme chamado O Túmulo dos Pirilampos, do Isao Takahata, perceberá com certeza o que significa o respeito pela inteligência das crianças, a exigência colocada naquilo que devem ver e a fé no que conseguem aguentar. Nunca na minha vida devo ter chorado tanto a ver um filme. E aquilo é suposto ser para miúdos.