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Sobre a infantilização das crianças #4

por João Miguel Tavares, em 06.01.14

Uma das grandes alegrias de ter um blogue é termos a sorte de encontrar óptimos leitores. Felizmente, eles não têm faltado ao Pais de Quatro, e só tenho pena de não poder trazer mais comentários para a main page. A propósito deste post, escreveu o leitor intitulado Livros e Outras Manias (é também nome de um blogue, de autor anónimo):

 

Os contos tradicionais, mesmo os do século XIX, são fruto também dum tempo muito mais violento do que o nosso, ao contrário do que possa parecer aos mais desatentos. (Há um livro de Steven Pinker, muito recente, sobre isto: The Better Angels of Our Nature.)

A menor violência em filmes e séries direccionadas para crianças pode ser um reflexo dessa menor violência nas nossas sociedades e da menor tolerância a essa violência por parte das sociedades aburguesadas que somos. Alguns vêem nisto apenas mediocridade, mas também há um apagamento dessas arestas violentas e mais feias da sociedade. É menos interessante? Talvez, mas será que queríamos voltar a tempos bem mais agrestes para as nossas crianças?

Depois, é também importante que as crianças não naturalizem a violência como algo comum. Obviamente, não devem estar numa redoma. Mas basta ver televisão e a redoma desfaz-se logo.

Já agora, em termos pessoais, não me parece que faça mal ver filmes um pouco mais violentos. Absolutamente nada contra. Parece-me apenas que esta "infantilização" tem como causa uma menor tolerância da violência.

 

É uma óptima perspectiva, embora me pareça que a questão da naturalização da violência seja, aí sim, mais uma questão do adulto do que da criança, para a qual a violência é, em geral, mera encenação (como brincar aos índios e aos cowboys). Mas a verdade é que eu tenho o livro The Better Angels of Our Nature na minha estante há demasiado tempo. Comprei-o em versão hardcover, segundo a Amazon (que vigia todos os nossos passos), a 15 de Setembro de 2012. Nunca o li. Suponho que seja mais do que tempo para o resgatar da estante.

 

Um outro leitor, o André, não concorda totalmente com aquilo que escrevi:

 

Olá JMT, é realmente um debate interessante, deixo algumas notas:

a)"mas aos olhos de uma criança significa a destruição definitiva do mal. O lobo que só foge com o rabo queimado, pelo contrário, está apenas ferido e pode muito bem regressar."; 

isto parece-me ser muito mais uma visão de um adulto do que de uma criança, o adulto é que "racionaliza" que o Lobo pode voltar, se nós acabarmos a história com um "e o lobo desapareceu para sempre" imagino que muitas crianças aceitem facilmente a premissa (além da visão punitiva e irremediável da coisa)

b)"Os contos tradicionais, oriundos de uma oralidade perdida na noite dos tempos, tinham essa função bem definida"; 

os contos tradicionais evoluem muito ao longo dos séculos, e tenho dúvidas sobre se em vez de visão "educativa" não devíamos falar de dimensão "moralista" (associada aos tais conceitos de punição), na evolução destes. Além de que se pensarmos na versão moderna dos 'folk tales' (as lendas e mitos urbanos), muitas vezes também encontramos neles uma necessidade de controlo e advertência aos "perigos do mundo". Eles acabam por educar as crianças, é verdade, mas para que tipo de mundividência? (acho que esta é uma das questões essenciais).

Além de que os contos tradicionais, na sua origem, nunca foram só para crianças, portanto quando eles são 'adaptados' para um público mais infantil, numa sociedade menos supersticiosa e mais avançada, é natural que sejam suavizados. Estar a argumentar que esta "suavização" pode afectar o compasso moral dos mais novos, parece-me altamente discutível, ao nível de dizer que as pessoas precisam da religião para serem boas.

 

Apenas um esclarecimento adicional da minha parte. Como eu tentei explicar, não acho propriamente mal que se proceda a uma suavização dos contos tradicionais. Acho apenas errado que essa suavização se torne um discurso mais ou menos exclusivo, ao ponto de qualquer leitura alternativa ser considerada "demasiado violenta" e, portanto, "desaconselhável".

 

O meu ponto central é este: a infantilização tem a ver com um determinado discurso açucarado que se vai aos poucos afirmando como o único possível. É a isso que me parece importante resistir, até como defesa da diversidade dos imaginários. Por isso elogio tanto Hayao Miyazaki (ou Neil Gaiman, ou o próprio Tim Burton) e insisto tanto para que os meus filhos o vejam - é uma maneira radicalmente diferente de contar histórias, e isso é extremamente enriquecedor.

 

Todo o trabalho dos estúdios Ghibli vai, aliás, nesse sentido, e se por aí houver alguém que já tenha visto um filme chamado O Túmulo dos Pirilampos, do Isao Takahata, perceberá com certeza o que significa o respeito pela inteligência das crianças, a exigência colocada naquilo que devem ver e a fé no que conseguem aguentar. Nunca na minha vida devo ter chorado tanto a ver um filme. E aquilo é suposto ser para miúdos.

 

publicado às 22:37


16 comentários

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De emilia silva a 11.01.2014 às 15:46

Acerca dos clássicos filmes da disney
Os clássicos filmes da disney foram proscritos cá em casa, nunca foram proibidos simplesmente estiveram no lugar das coisas a não visitar porque:
- desenho e cores pouco interessantes
-histórias moralistas (e não gosto porque em nome da moral e do bem muito mal foi cometido)
-personagens maniqueístas (não gosto porque considero que nem o bem nem o mal são puros como a água destilada e o mal não morre definitivamente nem o bem é para sempre)

Mas estranhamente rimos a bom rir com algumas das histórias de Winnie de Pooh , gostávamos sobretudo da determinada toupeira que tinha objectivos e se esforçava, do louco do tigre e até mesmo do coelho cheio de princípios aos quais queria que todos se submetessem sem o conseguir. O cd "vamos brincar com o Pooh " ficou em casa embora outros tenham mudado de dono.

Animações da ovelha choné wallace and gromit e a pantera cor-de-rosa (desenhos e cores muito bom) deram e ainda dão algumas horas de prazer, mas também os filmes de jacques tati , de buster keaton e de charlie chaplin.

Foi comprado também a série "expedições de jacques cousteau " e "era uma vez um homem" uma série de dvds que embora fracos no desenho e na animação apresentam informação que considerei importante. A série de cousteau tem bons textos e as personagens bem construidas a série "era uma vez o homem" é infantiloide , as personagens maniqueístas e esquemáticas mas a informação que veicula também teve a sua utilidade.
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De André a 08.01.2014 às 10:49

"A infantilização tem a ver com um determinado discurso açucarado que se vai aos poucos afirmando como o único possível", a questão é que nada indica que isto esteja a acontecer, como já amplamente demonstrado em vários comentários - há mais diversificação, apenas isso.
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De Ana Pinto a 08.01.2014 às 10:27

Já agora... A minha filha tem 18 meses e adora o Totoro, achamos perfeitamente adequado!
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De Ana Pinto a 08.01.2014 às 10:25

Estava a decidir se ficava seguidora deste blog quando dou por mim a ler este texto que culmina na referência ao Myasaki! Fantástico!
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De Simplesmente Ana a 07.01.2014 às 17:26

Ora aí está um filme que eu preferia que a minha filha não visse tão cedo. Acho terrivelmente triste, apesar de belo.
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De Marco Neves a 07.01.2014 às 12:31

Muito obrigado pela referência. É muito bom conversar por estes lados. Com um filho de 14 meses, estou apenas a começar esta aventura de ser pai, coisa que não vem nos livros...
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De João Miguel Tavares a 07.01.2014 às 23:46

Ou vem, mas em metáforas.
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De Mafalda a 07.01.2014 às 12:02

João, li hoje esta crónica da Inês Teutónio Pereira sobre o tema dos filmes das crianças, se não tiver lido pode ser que goste: http://o-povo.blogspot.pt/2014/01/filmes-para-parvos.html
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De Edgar a 07.01.2014 às 11:31

Não sei se o túmulo dos pirilampos é para crianças, acho que não. ser desenhado animado não o torna num produto para crianças.

Mas já tinha ouvido falar que muitas das histórias que contamos vêm de histórias realmente violentas.

Sempre a história da violencia. Há pessoas violentas e não o são pela tv que consumiram. Provavelmente a maior parte das vezes é herdado dos país.

Reparo com a minha filha que ela não tem de ver coisas para menina para se tornar menina, como me pareceu a certa altura que se queria fazer querer. Ela vê o que gosta e gosta de coisas de menina. Os meninos regra geral gostam de coisas mais violentas, eu brincava tanto com soldadinhos brincava às pistolas na rua e isso naõ fez de mim nem violento nem soldado.
Com tanta violência que se vê a verdade é que a maioria dos rapazes não sabe como reagir perante violência. é violência ficticia. Tal como as fadas. A minha filha não se vai tornar numa fada. Por ver magia não se torna numa mágica.

A questão de perder sensibilidade para com a violência acontece apenas com a violência ficticia.

Ver programas de culinária não mata a fome.
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De João Miguel Tavares a 07.01.2014 às 11:39

Se bem me recordo, "O Túmulo dos Pirilampos" era originalmente projectado em sessão dupla com o "Totoró" nos cinemas japoneses (foram ambos lançados em 1988). Portanto, sendo também para adultos, no Japão era definitivamente destinado às crianças.
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De Edgar a 07.01.2014 às 11:53

"The film's initial theatrical release in Japan was accompanied by Hayao Miyazaki's much more lighthearted My Neighbor Totoro as a double feature. In commercial terms, the theatrical release was a failure.[citation needed] While the two films were marketed toward children and their parents, the rather stark nature of Grave of the Fireflies turned away most audiences. However, Totoro merchandise, particularly the stuffed animals of Totoro and Catbus, sold extremely well after the film and made overall profits for the company to the extent that it stabilized subsequent productions of Studio Ghibli."

Até para os japoneses era pesadito. É um filme duro. e lendo na wiki seria provavelmente mais para teens e daí para cima.

"However, director Takahata repeatedly denied that the film was an anti-war anime. In his own words, "[The film] is not at all an anti-war anime and contains absolutely no such message." Instead, Takahata had intended to convey an image of the brother and sister living a failed life due to isolation from society and invoke sympathy particularly in people in their teens and twenties, whom he felt needed to straighten up and respect their elders for the pain and suffering they had experienced during arguably the darkest point in Japan's history.[9][10]"

Mas lá está isto é uma decisão nossa como pais, temos de saber quando e como deveremos dar-lhes um filme destes a ver.
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De João Miguel Tavares a 07.01.2014 às 23:45

Obrigado pela pesquisa, Edgar. Não sabia dessa história com tanto detalhe.
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De raquel a 07.01.2014 às 05:12

Antes de mais queria agradecer pelo blogue. Não tenho filhos, mas gosto imenso de cá vir porque os textos são sempre muito lúcidos, também sou fã do outro blogue.
Queria só contar que eu cresci em Macau e cheguei a ver muitos filmes desse senhor quando ainda era muito pequena. Via em Chinês e sem legendas (atenção que eu não falo a língua), mesmo assim todas as história ficaram mesmo marcadas na memória. São tão bons que percebia tudo só pelos desenhos.
Era muito curiosa quando era miúda e via coisas "impróprias" para a idade. Vi a Lista de Schindler pela primeira vez aos 8/9 anos. A minha opinião sobre o assunto é a de que as crianças vêm as coisas de forma muito diferente. Hoje em dia ser-me-ia impossível ver estes filmes. Apesar de ser muito interessada pelo tema nunca consegui ver o "The Boy in Striped Pyjamas" que saiu quando eu já tinha uns 19/20 anos. Não sei se não será por uma questão de as crianças ainda não se conseguirem relacionar com as personagens completamente (ainda que o façam de certa forma), ou se é por não terem ainda plena consciência da dimensão do sofrimento e da dor, mas parece-me que lidam com estas histórias melhor que os adultos.
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De Maria Calais Pedro a 06.01.2014 às 23:45

Gostava muito de ver esse filme que menciona, João. Por acaso sabe onde o poderei encontrar? Obrigada.
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De João Miguel Tavares a 07.01.2014 às 00:36

O filme chegou a ser lançado em DVD em Portugal, mas suponho que esteja esgotado, até porque a editora que o lançou por cá (a New Age Entertainment) faliu há vários anos. Mas via Amazon inglesa é facílimo encontrá-lo. Em inglês chama-se "Grave of the Fireflies", e custa menos de oito libras em DVD (também já há uma edição em blu-ray). Atenção, contudo: é um filme sobre dois irmãos pequenos que ficam completamente sozinhos no estertor da Segunda Guerra Mundial. E não há cá finais felizes. É um hino deslumbrante ao amor fraternal, com uma parte final absolutamente devastadora. Não é mesmo para todos os estômagos. Ou melhor: é capaz de ser somente para os estômagos de uma sociedade que viveu Hiroshima. Mas é uma obra-prima, claro.
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De Maria Calais Pedro a 07.01.2014 às 01:04

Obrigada, João, pela resposta tão rápida e elucidativa. Fui pesquisar e li a sinopse. Parece ser um filme bem forte. Tenho saudades de filmes assim. Vou, de certeza, vê-lo sem as miúdas. Amor fraternal há muito cá por casa, mas capaz de aguentar a falta do pai e da mãe, não sei... Obrigada, mais uma vez.

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