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Bom, devo confessar que não estava à espera que o meu post sobre a educação do desprazer causasse tamanha enxurrada de reacções. Já vai em mais de meia centena de comentários, e o interessante não é tanto o número quanto o conteúdo - acho que há por aí muita gente a precisar de desabafar. Assim que um maluco (neste caso, eu) se chega à frente para dizer que ser pai, durante boa parte do tempo, não tem lá assim muita piada, eis que se dá um 25 de Abril doméstico (embora a 23), e de repente toda a gente se sente livre para deitar cá para fora o que lhe vai na alma. Que bonito.
Obrigado, leitoras e leitores, por me terem feito sentir o Salgueiro Maia da paternidade recalcada. Existe, de facto, um regime opressivo que nos manda pintar de cor-de-rosa a verbalização do nosso interior sempre que falamos de filhos, porque confessar o nosso desespero ocasional ainda é tristemente sinónimo de sermos maus pais ou más mães. Isso é, obviamente, estúpido, e não foi para isso que se fez o 25 de Abril. Embora eu não seja, de todo, adepto da auto-comiseração, nem acho que devamos andar sempre por aí em choradinhos pelos cantos, tenho a profunda convicção de que o recalcamento constante de certos estados de alma interiores apenas agravam os problemas, e que temos toda a vantagem em ter a coragem de mandar cá para fora aquilo que nos consome - nem que seja no anonimato de uma caixa de um modesto blogue, como o Pais de Quatro.
Diante de algumas partilhas fiquei até com a ideia de que eu deveria fundar um MPA - Mães e Pais Anónimos -, só para o pessoal poder desabafar um bocado: "Boa noite a todos, eu sou a Virgínia e sou mãe." A coisa por vezes pode parecer um padecimento de hiper-sensibilidade, porque existe aquela tendência de olhar para a história da Humanidade e pensarmos: já cá andamos há milhares e milhares de anos, só agora é que o pessoal se pôs com mariquices? Mas, na verdade, no que diz respeito à família e à relação com os filhos, eu acredito que estamos a viver, de facto, uma revolução copernicana: os filhos deixaram de rodar em torno dos pais e os pais passaram a rodar em torno dos filhos. Isso muda tudo, como é óbvio. E causa angústia.
Esse suplemento de angústia é alimentado por duas fontes. Por um lado, o peso da responsabilidade que sentimos por causa dos miúdos, que já não são apenas um no meio de cinco, de oito ou de dez; já não servem para cavar a terra nem morrem aos magotes em tenra idade; são para nós o que o "precious, my precious" é para o Gollum do Senhor dos Anéis. Por outro lado, existe o peso das nossas próprias expectativas, um desejo individual de felicidade que é muito superior ao de há 200 anos, sobretudo a partir do momento em que o outro mundo, aquele enorme latifúndio por onde Deus passeava, foi perdendo território, e a vida terrestre foi-se tornando muito mais importante do que a vida celeste (mesmo para boa parte dos cristãos).
Ou seja, nós não queremos apenas que eles - os nossos filhos - sejam muito felizes. Nós queremos que eles sejam muito felizes sem que estejamos dispostos a abdicar da nossa felicidade. Aqui. Na Terra. E ainda bem que assim é. Mas equilibrar todos estes pratos em apenas duas mãos, e mantê-los a girar, não é para todos. O bom de partilhas como esta é o sentimento de identificação que elas provocam - as pessoas lêem e pensam: não sou só eu. Estou acompanhado. Afinal há mais. E há, claro que há. E felizmente, existe esta coisa curiosíssima que é vivermos num mundo obcecado pela originalidade e a individualidade, e depois descobrirmos um consolo imediato por não nos acharmos únicos, por nos sentirmos acompanhados no sofrimento e nas frustrações.
Já escrevi imenso e ainda não respondi a ninguém. Peço desculpa. As respostas virão. Mas isto tinha de ser dito.
Eu agora não tenho tempo para responder a alguns comentários ao último post - fica prometido para amanhã -, mas para quem ficou muito horrorizado com a minha frase
A paternidade, felizmente, tem muitos momentos de prazer, mas até certa idade, se eu me puser a fazer as contas, o saldo é francamente negativo.
deixo aqui uma das canções de Chico Buarque que mais me comovem e tocam, num dos vários momentos de génio da genial Ópera do Malandro. Chama-se "Uma Canção Desnaturada", ou a extraordinária arte de um progenitor amaldiçoar um filho. Dor, horror, amor - tudo junto e a rimar, como na vida. Podem chorar, que eu choro de vez em quando:
Eis a maravilhosa letra:
Por que creceste, curuminha
Assim depressa, estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para reviver a tempo
De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
A propósito deste meu post a queixar-me da chinfrineira que as minhas criancinhas andam neste momento a fazer cá em casa às refeições, um leitor Anónimo mas não desprovido de sentido de humor, fez a seguinte observação:
Ah bom... um verdadeiro criançofóbico à hora das refeições, portanto. E são os seus filhos, imagina se não fossem... os seus.
E nos restaurantes como é?
Here we go again...
Antes que os queridos leitores deste blogue se assustem, eu prometo desde já que não vamos again coisíssima nenhuma, até porque o leitor Vasco B implorou logo de seguida:
Ah, ah... este comentário tem a sua graça. Mas já chega, vá.
Eu também acho que já chega, e prometo não voltar a falar de crianças e hotéis e restaurantes até eu próprio ser barrado à entrada de um deles. Mas vocês sabem que eu tenho dificuldade em resistir a provocações, e esta é praticularmente boa, porque me permite falar de um tema importante: a educação para o desprazer.
Quando eu defendo o que defendo a propósito dos direitos das crianças é porque eu acredito que a sociedade, como um todo, tem o dever de as aturar nos seus espaços de acesso público. Não porque elas sejam lindas, fofinhas ou extremamente educadas, mas porque tem de ser. É a vida e - acredito eu - é também um dever comunitário. Nesse sentido, minha atitude cá em casa não é muito diferente disso.
A paternidade, felizmente, tem muitos momentos de prazer, mas até certa idade, se eu me puser a fazer as contas, o saldo é francamente negativo. Agora que eu estou a maior parte do tempo fechado em casa a ler e a escrever, posso garantir-vos que me divirto muito mais das nove às 18 horas e das 22 horas à meia-noite do que das sete às nove e das 18 às 22. Estou com eles, em média, seis horas por dia (excepto aos fins-de-semana, claro), e as nove em que não estou com eles são muito mais calmas, repousadas e self-fulfilling.
Eu sou, de facto, um pai de quatro criançofóbico, e metade do tempo que passo a falar da família é para alertar para os perigos da paternidade cor-de-rosa - é por tanta gente achar que isto é suposto ser divertidíssimo que tantas famílias vão ao fundo quando os filhos saltam cá para fora e as rotinas mais stressantes tomam conta de nós. Daí a importância da tal educação para o desprazer.
Por favor, não confundam este "desprazer" com a tradicional cultura católica do "sacrifício". O sacrifício, dito de forma bruta, lembra-me sempre gente que coloca o cilício numa perna para se mortificar, e a sua prática cai muitas vezes no lado oposto ao que aqui me quero colocar - uma espécie de recalcamento do "eu" que só serve para causar frustrações e não dá proveito a ninguém, incluindo ao próprio. Não é a isso que me refiro.
O "desprazer" de que aqui falo não é subir para a cruz por vontade própria - é aprender a aceitá-la quando ela vem ter connosco, sem sermos esmagados pelo seu peso. De forma mais filosófica, é a gestão prática da moral do dever kantiana. Ou, se quiserem, é a encarnação do belo provérbio português que diz: "o que tem de ser tem muita força".
Ter filhos e educá-los é isso - o que tem de ser tem muita força. Temos filhos porque acreditamos numa ideia de família; porque entendemos que o mundo não é um vale de lágrimas; porque achamos graça a existir; porque, citando Faulkner, entre a dor e o nada preferimos a dor. E assim sendo, enquanto eles crescem ao nosso lado, temos a obrigação de fazer o melhor que podemos para que consigam ser decentes e felizes.
Nos momentos em que dá uma trabalheira desgraçada, nos momentos em que não apetece, nos momentos em que sonhamos com a solidão das planícies alentejanas, nesses momentos só nos resta fazer uso da nossa educação para o desprazer, que basicamente significa isto: aturar porque não há outro remédio, esperar que passe tentando não perder a cabeça, se perdermos a cabeça não o valorizar excessivamente, ter em vista que há um bem maior superior ao cansaço do dia-a-dia, e acreditar que apesar de tudo vale a pena - porque, como é óbvio, eles valem sempre a pena.
É divertido? A maior partes das vezes, não. Custa? Custa muito. Mas tem de ser. E o que tem de ser...
Os putos vão passando por fases, umas mais fáceis, outras mais difíceis. A actual está a começar a ficar dura por causa disto: o volume. O volume da voz dos três mais velhos e a tendência incontrolável do trio para falar, discutir e perorar sobre tudo e um par de botas. Eles pura e simplesmente não se calam.
Eu sei que parece um bocado absurdo um tipo estar a queixar-se de excesso de confusão doméstica nesta altura do campeonato, e é normal que as pessoas perguntem: "Mas só agora é que notaste isso?" Na verdade, sim, só agora, porque antes não era bem desta maneira. Quer dizer: é evidente que confusão sempre houve, e em abundância, mas era de um outro género.
Quando estávamos à mesa das refeições, passávamos o tempo a mandá-los pegar bem nos talheres, endireitar as costas, tirar as mãos da comida, a chegarem-se para a frente. Era uma confusão relativamente concentrada, digamos assim. Hoje em dia, não, é o caos verbal instalado: eles falam de tudo, metem o nariz em tudo, escutam as nossas conversas, dão palpites. E cantar? Os tipos não páram de cantar.
Era eu rapazinho e estava sempre a escutar "não se canta à mesa!". E eu juro que nunca percebi porque é que não se podia cantar à mesa. Que desrespeito poderia envolver cantar a uma mesa de refeições? Cantar é sempre bonito, pensava eu. Como é obvio, os antigos é que tinham razão: não se canta à mesa porque os adultos não estão para ouvir uma guinchadeira que vai do Frozen ao Elvis Presley.
Agora dou por mim aos gritos atoda a hora: "Calem-se!" Já não aguento tamanho expender de opiniões e notas musicais. Parece que todas as noites tenho uma taberna dentro de casa. Digo-vos: se esta fase não passar depressa, vou ter de começar a aplicar o método Assuracentourix às refeições. Lembram-se? Oh, sim.
O site Truth Facts apresenta umas infografias divertidíssimas sobre aspectos do dia-a-dia e as eternas divergências entre homens e mulheres. Eis alguns exemplos.
1. A maneira correcta de colocar o rolo de papel higiénico no suporte. Ui, tanto haveria a dizer sobre este assunto, mas a minha colega de blogue era capaz de não apreciar, pelo que me vou manter num prudente silêncio.
2. As estratégias adoptadas quando o papel higiénico está mesmo a acabar. A "contenção", a "precisão" e o "pânico" são bem verdadeiros. Ao "criativo" confesso que nunca cheguei, nem nos meus piores dias.
3. As teclas que gostaríamos de ter na vida real. Tão, mas tão verdade.
4. Conteúdo de uma pasta de dentes. Quando fiz este post sobre uma pasta de dentes com abertura pelos dois lados, houve quem não tivesse percebido. E agora?
5. Uma velha questão da moda: haverá alguma sandália que fique bem nos pés de um homem? Tenho algumas dúvidas, de facto.
6. Um guia para os homens compreenderem as mulheres. Este é um bocado misógino, agora é bem verdade que quando eu namorava com a minha pré-excelentíssima esposa fartava-me de lhe dizer que havia uma enorme distância entre o que ela queria, o que ela dizia, o que ela pensava e o que ela fazia. O meu infográfico ainda seria mais complexo, portanto. Mas este não está mal.
Não sei se se recordam, mas há um ano eu postei no blogue esta foto da Ritinha, com um chapéu que o Gui lhe tinha arranjado.
Há pouco, a minha mãe (que ficou nos últimos dias com a Rita e com o Gui) enviou para a Teresa esta foto, com a seguinte mensagem: "Um modelo feito pelo Gui."
Diria que há aqui um padrão:
Como se vê, o Gui mantém os seus dotes de estilista e continua a insistir em adornar a cabeça da irmã. Mas claro está: quanto mais velha, maior o chapéu. É possível que em 2015 vá levar com um tampo de mesa em cima.
Irmã sofre.
Eu e a Maria João Marques, enquanto pessoas de um outro tempo, estamos a ter a modos que uma polémica epistolar: vamos discordando um do outro a intervalos semanais. O assunto provavelmente só já interessa a nós o dois, mas eu continuo a insistir, até porque desta vez a Maria João clarifica o seu argumento económico-liberal. O texto integral dela está aqui, mas eu deixo um par de citações:
As famílias com crianças são um grande mercado e os proprietários e gestores de hoteis e restaurantes têm noção disso. Se os restaurantes não quisessem receber crianças, não teriam cadeirinhas para elas, estabeleceriam um consumo mínimo para quem ocupasse lugar à mesa, não criariam menus infantis,… E os hoteis, então, se quisessem enxotar crianças teriam boas soluções: camas de bebé e camas extra caríssimas, alimentação de crianças ao mesmo preço da dos adultos (...)
Enquanto as famílias quiserem levar crianças para hoteis e restaurantes, haverá hoteis e restaurantes que aceitam crianças. Pelo melhor motivo de todos (não, não é cumprir a lei): as empresas, para sobreviverem e prosperarem, fazem por agradar aos clientes. E se o mercado resolve – e bem, porque incorporando as decisões livres de consumidores, empresários e gestores – o problema, então o legislador só tem de ficar quieto e não incomodar.
Eu diria que a Maria João é bastante convincente a argumentar que existe oferta abundantíssima de hotéis e restaurantes que aceitam crianças, e que portanto nenhuma família corre o risco de não encontrar um telhado onde dormir ou um restaurante onde alimentar as suas crianças. O problema é que... o problema não é esse.
A Maria João não poderia ser mais clara: para ela, se o mercado funciona, então o legislador só tem de ficar quieto e não incomodar. Só que isto, para mim, nunca fui essencialmente uma questão económica (ainda que, é verdade, eu tenha argumentado com o facto de as crianças serem umas chatas e ninguém estar para as aturar - devo ter escrito isso num dia particularmente difícil aqui em casa).
Não se trata, portanto, de o mercado "funcionar" ou não, porque o mercado - ao contrário do que muitos pensam - não é a bússula que norteia a minha vida. Eu sou mais de esquerda do que pareço à primeira vista. (Deve ser por isso que gosto do Obama e a Maria João nem por isso, naquele que é, sem dúvida, o maior dos seus defeitos.) A minha questão é muito anterior à questão mercadológica - é uma questão de princípio, ou seja, trata-se de acreditar que está errado impedir uma família com crianças de entrar num local de livre acesso.
Claro que chegados a este ponto admito que não há muito por onde contra-argumentar, porque batemos na parede moral do certo e do errado. Para a Maria João defender o que defende implica que ela considere aceitável um estabelecimento dizer "criança aqui não entra porque faz barulho e chateia". Ora, eu considero isso, de facto, uma discriminação. Acho que é um argumento que não pode ser invocado a priori. Certamente que não é uma discriminação tão grave quanto dizer "você não pode estar aqui porque tem a pele preta", nem tão triste quanto colocar sapos de louça ou metal à entrada de lojas para que os ciganos não entrem. Mas é uma discriminação, ainda assim.
E isso, obviamente, é prévio às questões de saber se o mercado dá ou não resposta às necessidades de pais com filhos. Daí que o argumento da Maria João - "se o mercado resolve o problema, então o legislador só tem de ficar quieto" - seja inaceitável para mim. O mercado (é só uma comparação, ok?) também resolvia o "problema" na América dos anos 50 - o meu ponto é anterior a esse, ou seja, é ético e não económico.
Nesse sentido, eu e a Maria João estamos a discordar do assunto em planos diferentes. A sua análise económica parece-me muito bem feita, mas só é possível uma pessoa saltar para ela se não houver nenhum constrangimento ético em relação a esta questão. Eu tenho esse constrangimento. Ela não. E é por isso que - desconfio - nunca iremos chegar a acordo sobre o tema, por muitos posts que continuemos a trocar. É que se a discutir sobre economia já não é fácil duas pessoas concordarem, sobre filosofia, então, é melhor nem falar.