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Na quarta-feira, o Tomás escreveu na escola uma descrição da aldeia de Piódão, suponho que a partir de alguma fotografia que a professora tenha mostrado à turma na sala. À noite, disse-me, pela primeira vez, que tinha de passar o texto a limpo no computador. E assim fez.
Abri-lhe um documento Word, explique-lhe onde se apagava e se fazia parágrafos, e ele lá copiou o seu texto. No final, eu dei apenas alguma ajuda na formatação, num par de vírgulas e pontos finais e em duas ou três repetições de palavras, que pedi para ele tirar.
O texto, como se pode ver, não tem nada de especial - é uma descrição normalíssima de uma criança do terceiro ano (aquele 2.ºA é ainda o fantasma do ano lectivo anterior a falar). Mas, apesar de toda esta banal normalidade, vocês não podem imaginar o orgulho que o Tomás sentiu na transposição do manuscrito para o computador.
Quando viu a página impressa, acho que teve uma reacção semelhante à minha quando olhei para o primeiro texto assinado "João Miguel Tavares" no Diário de Notícias, em 1998. Género: "Eu fiz uma coisa importante!" À primeira ainda olhei para o Tomás com ar "what the fuck is he bragging about?", mas depois tentei emendar o desinteresse e acompanhá-lo na sua felicidade.
A verdade é que, muitas vezes, quando estamos mais desatentos, não percebemos como para eles pode ser completamente novo o que para nós é absolutamente banal. "A aldeia do Piódão" foi o primeiro texto que o Tomás escreveu e imprimiu em computador. Claro que era uma coisa importante para um menino aplicado como ele é - e uma chamada de atenção para um pai distraído como eu sou.
Na caixa de comentários a este post, o Dr. Mário Cordeiro mostra-se igualmente um desapaixonado dos TPC:
Os Trabalhos Para Casa (TPC) geram uma enorme controvérsia. As queixas de pais sobre a sobrecarga de exercícios que os filhos trazem para fazer em casa não são novas, mas voltam a estar na ordem do dia. Os estudantes portugueses trabalham horas demais, e que nenhum sindicato deixaria passar tamanho atropelo aos direitos das crianças e jovens sem, pelo menos, um caderno reivindicativo e uma greve geral - com as aulas, as actividades complementares e os trabalhos de casa, chegam a dedicar 40 a 50 horas por semana ao estudo.
No limite, tal como são entendidos por muitos professores e pais, os TPC são uma agressão às crianças, adolescentes e aos seus direitos. Tudo o que se sabe sobre desenvolvimento infantil e sobre técnicas pedagógicas no ensino-aprendizagem mostra que esta prática não tem, em pleno século XXI, razão para existir nos moldes em que é feita.
São vários os motivos que tornam os TPC, repito, da maneira tradicional como são exigidos, quase uma aberração:
• as crianças e adolescentes trabalham muito durante o dia, seja a estudar, seja a brincar, correr, conversar e debater ideias;
• ao fim da tarde, estão carregados de endorfinas e cansados, sobretudo se tiveram outras actividades entre a escola e a casa, como desporto;
• precisam de tempo para gozar o seu espaço regressivo caseiro;
• o que aprenderam no próprio dia ou até nos dias anteriores só será metabolizado nessa noite, pelo que tudo o que seja exigir trabalho sobre assuntos ainda não burilados pelo cérebro é quase sádico - por isso é que usamos a frase "há que dormir sobre o assunto";
• o tempo para estar em família diminui;
• a tolerância dos pais é pouca, ao fim da tarde, e o nível de irritabilidade doméstica sobe, quando deveria descer;
• são os pais que acabam por terminar os TPC, gritando com o filho e achincalhando-o;
• os professores não lêem os TPC, todos os dias;
• não há tempo para ler, reflectir, "não fazer nada", brincar;
• a imagem dos professores fica, muitas vezes, associada a uma imagem de quase sadismo, de desrespeito e de não desejarem o melhor para os alunos.
Assim, e tendo promovido há dez anos, com a Isabel Stilwell e o Eduardo Sá, um dia de greve aos TPC, para comemorar o aniversário da Convenção sobre os Direitos da Criança, acho que os TPC diários são uma aberração, mas que trabalhos de pesquisa ao fim-de-semana, para serem feitos com os pais, ou gastar 15 a 20 minutos a ler (ler apenas, e não estudar) as páginas das matérias do dia, para as repescar para o cérebro as trabalhar durante a noite, isso sim.
Portanto, de uma forma panfletária: "Abaixo os TPC e quem os apoiar!"
Foto de Filipe Ferreira
Boa parte do dinheirinho que a minha mamã e o meu papá me deram pelos anos foi dirietinha para comprar um camarote de cinco no Coliseu de Lisboa, onde esta noite me vou instalar com a excelentíssima esposa e os excelentíssimos três filhos mais velhos para apreciar o espectáculo "Deixem o Pimba em Paz", uma ideia do Bruno Nogueira maravilhosamente concretizada pelo próprio, com a preciosa ajuda da Manuela Azevedo, do grande Filipe Melo, do mestre arranjador Nuno Rafael e do contrabaixista Nelson Cascais. Só a Ritinha é que fica de fora desta aventura em família, para grande pena dela, que adora o "Ninguém, Ninguém" do Marco Paulo.
Quer dizer: a Ritinha não adora o "Ninguém, Ninguém" do Marco Paulo. O que ela adora é o "Ninguém, Ninguém" do "Deixem o Pimba em Paz", uma extraordinária porta de entrada no mundo da música pimba, que tem o gigantesco mérito de sublinhar a amarelo fluorescente as suas qualidades e enterrar bem fundo os seus defeitos. Isto é o maior serviço feito ao pimba deste a famosa reportagem televisiva (foi na TVI?) que em meados dos anos 90 transformou a famosa canção de Emanuel em sinédoque de todo um género musical.
O meu interesse pelo pimba tem um lado nostálgico - afinal, sou um rapaz de Portalegre que se arrastou durante muitos anos (coisa que então odiava, diga-se) pelos bailaricos da aldeia por causa dos papás -, mas também tem um lado literato, porque o bom pimba é sempre um festim da língua portuguesa. Os trocadilhos malandros, os achados das letras de Quim Barreiros, a borrasca de innuendo, tudo isso compõe uma celebração da língua, tanto no sentido carnal como intelectual do termo. Há mais génio artístico em
Qual é o melhor dia p'ra casar
Sem sofrer nenhum desgosto
O trinta e um de Julho
Porque depois entra Agosto
do que em muitas dezenas de romances portugueses.
Há mais habilidade literária em
E porque a couve tem talo
E o bacalhau tem rabo
Se o feijão verde tem fio
Porque não tem talo o nabo?
do que em 95% da música pop portuguesa.
Aquilo que o Bruno Nogueira veio fazer (para mais, cantando com uma competência e uma ginga desconhecidas) foi precisamente sublinhar o lado artístico e literário da música pimba, sem nunca a apoucar. Bem pelo contrário: ao embrulhá-la em competentíssimas arranjos, trouxe o bom gosto harmónico a um material que é muito pujante em termos melódicos, mas que quase sempre soçobra na produção e nas interpretações. A música pimba é frequentemente como uma mulher gira que se veste e se pinta muito mal. O que Bruno Nogueira e companhia fizeram foi colocar roupa de luxo em cima dos melhores corpinhos do género - e o resultado, na minha modesta opinião, é notável.
Embora aquilo que mais me diverte no projecto sejam as canções maliciosas como o genial "Porque Não Tem Talo o Nabo", nada ali é tão impressionante quanto o trabalho do grupo sobre duas canções de Ágata, "Sozinha" e "Comunhão de Bens". A primeira é transformada num tango fortíssimo que poderia fazer parte, sem retoques, do reportório de qualquer fadista atrevida ou intérprete do dito bom gosto. A segunda é elevada aos píncaros por Manuela Azevedo, com uma interpretação de tal forma pungente, dramática e sentida que parece que está a recitar Shakespeare.
Ora, foi tudo isto, todas estas canções, que dominaram o nosso Verão familiar: eu escutei o disco "Deixem o Pimba em Paz" aproximadamente 364 vezes no carro, até à beira do colapso. A forma como as crianças ficaram hipnotizadas pelas canções - todas elas - é deveras impressionante, e a mim serviu-me para lhes dar umas aulinhas de português, tentando explicar-lhes porque é que "podes ficar com o resto e dizer que eu não presto" é um excelente achado (porque não é uma rima óbvia, porque é uma rima rica, que emparelha um substantivo com um verbo, porque é uma rima que surge com grande naturalidade e grande força musical) ou porque é que rimar "tens" com "comunhão de bens" é absolutamente horrível.
Claro que o disco tem um problema: os putos estão proibidíssimos de cantar em público metade daquelas canções. Mesmo que não percebam a letra - ou, sobretudo, quando não percebem a letra. A Carolina teve de recorrer a uma prima dois anos mais velha para lhe explicar o significado de "A Garagem da Vizinha" (embora nenhuma delas tenha chegado a qualquer conclusão sobre o significado dos versos "o meu carro fica dentro/ os cocos ficam de fora", o que é bom sinal), e claro que a semântica de "Porque Não Tem Talo o Nabo" permanece um mistério. Eu prometi-lhe que lhe explicava porque é que o público se ri tanto se ela tivesse sete cincos no quinto ano.
Enquanto isso não chega, lá estaremos esta noite no Coliseu, em família, para celebrar o pimba em coro. Embora seja uma quinta-feira (deveria ser uma sexta ou um sábado), a festa vai com certeza ser em grande. E viva o povo.
Nota final: O Bruno Nogueira dá hoje uma entrevista ao Gonçalo Forta, no Público, sobre o projecto. Podem lê-la aqui. Tenho imensa pena que a maior parte da crítica tenha passado completamente ao lado do disco. Não me lembro de o ver criticado nos jornais nem nas revistas de referência. É lamentável que a desatenção e os preconceitos da crítica portuguesa não tenham contribuído para dar o devido valor a um trabalho profundamente original e meritório. Ainda assim, silenciado ele não foi, e vai certamente fazer o seu caminho.
Via Facebook, a Filipa Varela chamou-me a atenção para esta notícia do jornal Sol sobre um surto de tosse convulsa em Los Angeles e o facto de ele estar relacionado com a moda da anti-vacinação nos Estados Unidos, sobretudo entre as classes mais abastadas. Resumo:
É em Los Angeles que se situa o epicentro de um inédito surto de tosse convulsa que já vitimou três bebés. Pelo menos 72 casos foram acompanhados pelo Hospital Pediátrico de Los Angeles. “Tossem com tanta força que vomitam e fracturam costelas, acabando intubados e ventilados”, descreve o especialista de infecciologia da instituição, Jeffrey Bender, citado pelo Hollywood Reporter.
Pelo menos 8.000 casos foram diagnosticados por toda a Califórnia desde o início do ano. Desde os anos 50 que os EUA não enfrentava um surto de tosse convulsa desta dimensão, graças a décadas de vacinação. O esforço, no entanto, parece estar agora a ser revertido pela recusa dos pais em vacinarem os filhos. Também o número de casos de rubéola nos EUA se encontra no nível mais alto dos últimos 20 anos.
As autoridades sanitárias de Los Angeles criticam os pais que recusam vacinar os seus filhos, argumentando que não são apenas as suas crianças que ficam em perigo, mas também as dos outros pais.
Nestas coisas convém ter sempre algum cuidado, e fazendo uma pesquisa encontrei esta notícia no Washington Post em que um outro surto atingiu 16 crianças de Montgomery County na primeira semana de escola - só que aparentemente todas elas haviam sido vacinadas.
Em LA, contudo, parece que existe efectivamente aquilo a que já chamam uma "crise de vacinação". É ver aqui ou aqui.
O assunto não pode ser mais sério, e ele já foi abordado aqui há uns meses no PD4. Sobretudo este A Mamã É Médica da Teresa (que saudades dos tempos em que ela escrevia estas coisas...) parece-me bastante esclarecedor. Há coisas sérias com as quais não se devia brincar, atirando pela janela décadas de progresso científico.
Um homem em casa a escrever.
Uma criança adoentada a dormir.
Uma mulher a trabalhar a 21 quilómetros de distância.
Obras barulhentas no prédio.
Um telefonema da mulher para o homem: "Importas-te de perguntar aos senhores lá de cima se podem parar de usar o martelo pneumático à hora da sesta?"
Medo.
Muito medo.
O título não é meu, mas da Maria João Marques, que leio sempre com prazer. Frequentemente discordamos, como é próprio dos seres com o cérebro irrigado, mas aquilo que ela hoje escreve no Observador sobre os trabalhos de casa parece-me muito pertinente. Para abrir o apetite:
Não há qualquer motivo de ordem não sádica para esperar que crianças, depois de passarem a manhã e metade da tarde nas escolas, percam mais do seu dia repetindo o que fizeram na escola.
O seu texto pode ser lido aqui.
Nos comentários a este post sobre mais um atribulado começo de aulas na escola pública, o dr. Mário Cordeiro coloca mais algumas questões altamente pertinentes, que vale a pena trazer para o corpo do blogue. Apenas um resumo das suas propostas:
E se os alunos terminam em Junho e se inscrevem em Maio... porque é que as turmas só saem na véspera do primeiro dia de aulas?
E se as matérias são nacionais (que eu saiba, o Dom Afonso Henriques de Vila Real será o mesmo de Faro, ou o do Agrupamento Filipa de Lencastre o mesmo dos Salesianos), porque é que os manuais escolares não são feitos por um grupo de trabalho de professores do ramo, impressos na Imprensa Nacional que até tem uma editora, vendidos a preço de custo (aí umas dez vezes menos do que o preço que pagamos) e, finalmente, duráveis 3 a 5 anos (a Pré-História não muda muito, acho)... e feitos em partes que se juntam ao longo do ano para não carregar para a escola nas inefáveis mochilas, no primeiro dia, o peso das páginas de Junho seguinte, e ainda que não se escrevesse nos manuais para os (escassos) irmãos poderem aproveitar?
Mas não. A 16 de Setembro continuamos sem alguns professores, com horários incompletos, sem saber o que fazer em termos de actividades complementares... e assim se promove a natalidade...
Tudo excelentes perguntas.
Ainda não tenho cá por casa nem cão nem gato, mas nos últimos tempos apareceu um papagaio:
- Rita, sai já de cima dessa mesa!
- Mesa.
- Olha que vais cair.
- Cair.
- Queres fazer um dodói?
- Dodói.
- Vamos lá, sai.
- Sai.
- Sabes que és muito teimosa?
- Mosa.
Embora casmurro, gosto imenso do meu novo papagaio.
Primeira aula da Carolina na nova escola, primeiro buraco: ainda não há professor de História.
Expliquem-me devagarinho, a ver se eu percebo. Se milhares de professores chegam sempre com uma semana de atraso, porque é que não se fazem as colocações uma semana mais cedo?
Quando hoje fui levar a Carolina à escola, para começar o seu 5.º ano, tive a sensação de que não era só a vida dela que estava a mudar - a nossa, a minha, a da sua família, muda um pouco também. Passámos a ter os quatro filhos em três escolas diferentes, mas não é a questões logísticas que me refiro. O 5.º ano é a antecâmara da adolescência, as disciplinas multiplicam-se e os interesses (tal como as hormonas) disparam. Aquilo que mais orgulha a Carolina nesta nova etapa da sua vida é ter um cartão electrónico para entrar e sair da escola e um cacifo que é só dela - tudo coisas de gente grande.
Ao mesmo tempo, o Gui, o nosso querido e maluco Gui, entrou para o 1.º ano. É um passo enorme para ele, e pela primeira vez eu e a Teresa sentimos alguma angústia, porque não sabemos se ele estará bem preparado, se virá a ser um bom aluno, se não teremos de gastar horas e horas em casa a recuperar o que não aprendeu. Para começar, acho que ele teve imensa sorte, mas mesmo imensa, com a professora que lhe calhou, e o segredo do sucesso pode bem estar todo aí. Cativem o Gui e ele vai até à Lua. Se ele se desinteressa, a escola pode bem vir a ser uma chatice. Estou a fazer figas.
Mas enfim, podemos estar enganados, os pais às vezes são péssimos avaliadores dos seus filhos. Quando o nosso Tomás entrou para o 1.º ano lembro-me que nós achávamos que ele corria o risco de ser a vítima preferencial dos bullies da escola. E hoje, no 3.º ano, é um miúdo com um depósito de autoconfiança cem vezes maior. O menino que antigamente tinha medo de levar qualquer peça de roupa mais original, porque gozavam com ele, hoje saiu de casa com uns ténis cor-de-laranja berrante nos pés. Eu perguntei-lhe: "E se gozarem contigo?" Ele respondeu: "Não quero saber." E aquele "não quero saber" é tudo o que eu quero que se saiba. São obstáculos que se vencem, etapas que se ultrapassam - neste idade nada está escrito, é sempre possível mudar e melhorar, e isso é mesmo o melhor de tudo.
O Gui com a sua fantástica mochila do Homem-Aranha a caminho da sala de aula.*
*A mamã também lhe comprou, para o primeiro dia de aulas, uns brilhantes sapatos brancos, que irão permanecer limpos durante aproximadamente 96 minutos.