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Há três dias que durmo, pela primeira vez na minha vida, com uma quarentona. Tem sido uma experiência muito agradável.
Esta senhora aqui em cima fez 40 anos no domingo, mas por causa deste senhor aqui em baixo, passámos o dia a celebrar um baptizado, em vez de termos passado o dia a celebrar um aniversário.
O baptizado foi óptimo e a festa que se lhe seguiu também, mas eu não concordei com a opção da Teresa. Só que, como por esta altura já bem sabe toda a gente que passa pelo PD4, eu não mando nada. Os meus protestos por o baptizado, ao contrário dos anos, poder perfeitamente ser noutro dia foram por água abaixo, com o argumento tereséfilo de que o Tomás faz parte de um grupo coeso de catequese, a paróquia marcou o baptizado para aquele dia juntamente com outras crianças da idade dele, e isso era mais importante do que a festa dos 40 anos.
Eu percebo, discordando. Passámos os meus 40 anos em Nova Iorque, foram uns dias inesquecíveis, com 40 velas apagadas num maravilhoso muffin de chocolate. Para os seus 40, a Teresa tinha escolhido viajar em família (vá lá saber-se porquê, ela prefere andar com os miúdos atrás em vez de viajar só comigo) e tínhamos já combinado passar uns cinco ou seis dias nos Açores, aproveitando os belos preços das low cost (com um rebanho de seis não pode ser de outra forma). Mas com a marcação do baptizado para 26 de Abril foi tudo por água abaixo.
Ainda pensei em fazer uma coisa bué romântica, tipo arrancá-la no domingo à noite e viajar para qualquer parte, mas a nossa actual logística doméstica e profissional é tão complicada que assassina qualquer romantismo. Mais do que isso: continuo a ser demasiado tímido para impor a minha presença à minha própria mulher. Fazendo ela tanta questão de ir com as crianças, não ia estar a armar-me em Don Juan, já que era impossível arrastar os miúdos em semana de escola. Donde, o romantismo foi obrigado a ficar em suspenso até aos meses do Verão. Esperemos, pelo menos, que dê para nos vingarmos aí. Acho os 40 demasiado importantes, em termos simbólicos e psicológicos, para não serem devidamente celebrados.
De tudo aquilo que tinha imaginado restou o quê? Restou um anel, que eu queria muito, muito que fosse especial. Felizmente, encontrei, no meio de uma investida pelo El Corte Inglés, uma marca portuguesa de joalharia chamada Eleuterio e foi amor à primeira vista. Ignorante como sou nestas coisas, desconhecia por completo a marca, que fui googlar mal cheguei a casa. Fiquei fã para a vida: eles trabalham a filigrana em estilo déco, com uma originalidade e um requinte extraordinários, e não havia uma única peça pela qual não apetecesse partir a montra e levar para casa.
Além de ter colares de cair para o lado, a peça mais impressionante era um anel em ouro rosa, mas como custava a módica quantia de oito mil euros, achei que era melhor deixar para os 80 anos. É este aqui em baixo, mas garanto-vos que a imagem não faz minimamente justiça àquilo que é o anel ao vivo.
Portanto, tive de optar por uma das jóias mais modestas da marca, mas que tinha todo o simbolismo que eu desejava para esta ocasião. É um anel da linha Blossom, uma flor dourada, que na verdade eu gosto de imaginar ser um trevo de quatro folhas, para dar mais sorte: quatro pétalas, quatro filhos, quarenta anos. E 23 minúsculos diamantes, que juntos compõem a data mais importante da nossa vida em comum: 2/3, 2 de Março, o dia em que começámos a namorar, em 1992. Ou seja, há... 23 anos.
O 2 de Março é também o dia em que nasceram os nossos dois rapazes, o Tomás (2 de Março de 2006) e o Gui (2 de Março de 2008). Bonitos mistérios. Vão-se as viagens, ficam os anéis: os designers e artesãos da Eleuterio não fazem ideia, mas este anel foi obviamente feito a pensar na Teresa e na nossa relação.
Eu gosto muito destes jogos simbólicos, e do esforço de corporizar ideias e sentimentos. E por isso gosto tanto desta jóia, e de tudo aquilo que ela representa: a enorme sorte de ter encontrado há 23 anos a mulher da minha vida. A minha Teresa. A minha quarentona.
Este senhor aqui em baixo baptizou-se no domingo (nós cá em casa optamos por baptizar as criancinhas na altura da primeira comunhão, que é para já terem alguma noção do que lhes acontece quando a água lhes cai na moleirinha).
Olhem só a pinta:
Os meus dois filhos rapazes não saem ao pai: adoram produzir-se, o que inclui andar, nas ocasiões especiais, de blazer, de gravata e de... (respirar fundo)... sapatos vela. A sério. O Tomás adora sapatos vela. Adora tanto, aliás, que pediu à mãe para lhos comprar especialmente para este dia.
Há uns meses já tinha pedido para lhe comprarmos pólos, e eu olhei para ele como se tivesse sido adoptado, após ser descoberto num berço abandonado junto ao campo de golfe da Quinta da Marinha. E agora - pimba - sapatos vela. Só falta mesmo começar a tratar-me por você e a dar beijinhos solteiros na bochecha direita.
Acho incrível como nós criamos filhos betinhos sem sequer nos apercebermos disso. Enfim, suponho que faça parte da vida, e da tão desejada ascensão social.
Mas será que não podíamos ascender de ténis e de t-shirt?
- Tira a chucha da boca, Rita. A chucha é só para dormir.
- (...)
- Tira a chucha, da boca, Rita. Tu és bebé?
- (...)
- Rita! Tira a chucha da boca! Tu não és crescida?
- Sou uma bebé crescida.
Fazer o trabalho de casa de Português com os putos proporciona com frequência momentos de grande galhofa, ainda que diferida - num primeiro momento desesperamos, dois dias depois gargalhamos. Os miúdos nesta idade ainda não sabem muita coisa, mas já acham que sabem, e mesmo quando não sabem estão sempre disponíveis para inventar.
Regra geral, eles têm a auto-estima muito lá em cima, e adoram atirar à cara dos irmãos os alegados conhecimentos que já possuem e os outros ainda não. A Carolina adora dizer ao Tomás "o queeê?, não sabes isto?!?". O Tomás adora dizer ao Gui "o queeê?, não sabes isto?!?". E o pobre do Gui, regra geral, não tem ninguém para dizer coisa alguma, porque a Rita ainda é muito pequena para entrar em competições de cultura geral.
Mas o mais divertido é quando os mini-detentores de tão grande sapiência cometem vistosas argoladas. Ainda há dias, o Tomás, que é um barra a cálculo mental e tem um daqueles tiques obsessivo-compulsivos que o levam a querer saber as capitais e as bandeiras e o número de habitantes e os principais monumentos e o tempo que demoraram a ser construídos de todos os países do planeta Terra, estava envolvido numa discordância pouco fraterna com o Gui. Ao querer mais uma vez envergonhar o pobre rapaz, virou-se para ele e disse, em tom de denúncia triunfante:
"És mesmo analfabético!"
O que a gente se riu. "Analfabético" é uma palavra maravilhosa, que utilizada neste contexto (ela existe, de facto, mas para designar línguas que não possuem alfabeto) encerra em si a própria ignorância que pretende denunciar. É uma auto-contradição, um oximoro numa só palavra, que dispensa qualquer argumentação adicional. Cá se fazem, cá se pagam: agora, de cada vez que o Tomás se arma aos cucos (o que acontece com alguma frequência), leva logo com o analfabético em cima, para baixar a crista.
Mas o uso criativo da língua portuguesa é uma constante, e só tenho pena de não conseguir registar no PD4 todos os delírios semânticos produzidos numa família de seis, com elevado número de analfabéticos.
Ontem estava a ajudar num trabalho de casa acerca de um texto de António Torrado, no qual uma formiga muito persistente insistia em subir ao cimo da Torre dos Clérigos, e houve mais jocosidade da melhor.
Um dos exercícios consistia em apontar as palavras do texto desconhecidas do senhor aluno, apontar o que ele achava que elas queriam dizer, ir ao dicionário verificar o que elas efectivamente significavam, e depois escrever uma nova frase onde essa palavra era aplicada. Um bom exercício, sem dúvida.
Eis uma das palavras desconhecidas do senhor aluno:
"abismar",
retirada da seguinte frase de António Torrado: "[A formiga] foi por ali acima numa correria de abismar”.
O senhor aluno achou que "abismar" significava "rápido", mas depois encontrou no dicionário esta definição: "lançar em abismo". Esqueceu-se, claro, que uma palavra pode ter mais do que um significado, e ignorou olimpicamente a alternativa "causar espanto", que vinha na linha seguinte da entrada de "abismar".
E munido dessa definição, o senhor aluno escreveu então uma nova frase:
“Eu vou meter a água no lavatório para abismar.”
E é extraordinário verificar como a ignorância, devidamente vitaminada, se torna quase poética. Bem vistas as coisas, talvez o poeta seja uma espécie de analfabético, que decide sabotar a língua depois de a conhecer muito bem. Claro que cá em casa só tenho analfabéticos que sabotam a língua porque a conhecem muito mal. Mas por vezes fazem-no com tanta criatividade que talvez um dia cheguem lá.
Água a abismar no lavatório
Ontem, à hora de deitar, não ganhámos para o susto: a Rita entrou no nosso quarto, fechou a porta, e do alto dos seus dois anos e meio decidiu rodar a chave.
Nós ficámos de fora, ela ficou dentro, e até os nossos telemóveis ficaram do seu lado - nem chamar os bombeiros conseguíamos. A Rita percebeu que tinha feito asneira, ainda tentou rodar a chave para o outro lado, mas não conseguia. Quando deu por si sozinha começou a chorar, cada vez com mais força.
Nós tínhamos uma chave sobresselente, mas não havia forma de ela entrar na fechadura. A chave do lado da Rita não tinha dado a volta completa: ficou virada para cima e do lado de fora não conseguíamos que ela saltasse do canhão de maneira nenhuma. E a Rita cada vez mais desesperada.
Podíamos ir chatear os vizinhos, pedir para chamar os bombeiros ou uma Chaves do Areeiro qualquer, mas a Rita estava a chorar desalmadamente, os três irmãos estavam super-preocupados, e nós não a podíamos deixar uma hora sozinha a berrar daquela maneira.
Portanto, para grandes males, grandes remédios: no feliz reino do contraplacado, três ou quatro pontapés com força chegam perfeitamente para arrombar uma porta moderna. E assim foi.
Lá parti a porta (espero, por todos os santinhos, que a fechadura tenha sobrevivido), e pudemos entrar todos para resgatar a pequena princesa em apuros.
A Rita ficou muito aliviada de nos ver, como imaginam - e prometeu nunca mais rodar a chave (mas, pelo sim, pelo não, acho que vamos fazer desaparecer por uns tempos as chaves das portas de casa, casas de banho incluídas).
Balanço do dia: uma porta a menos, que o Tomás e o Gui decidiram tentar simpaticamente arranjar com... fita-cola.
Com resultados duvidosos.
Mas enfim: passado o susto, eu ganhei imediatamente o estatuto de super-homem doméstico, sobretudo aos olhos do Gui, que repetiu 37 vezes "uau, o papá partiu a porta", como se eu fosse o seu Clark Kent caseiro.
Ele é que estava vestido com o pijama do Homem-Aranha, mas não parava de olhar maravilhado para a façanha do pai. "Uau, o papá partiu a porta!"
Tendo em conta que eu e ele andamos numa fase difícil, se calhar vou ter de começar a arrombar uma porta uma vez por mês para ganhar algum do seu respeito e pôr mais juízo na sua cabeça.
Sai um bocado caro, mas é educativo. E excelente para o moral.