por João Miguel Tavares, em 31.01.13
Ainda a propósito do caso Liliana (que, como previ aqui, rapidamente se evaporou no espaço), um leitor deixou várias observações pertinentes na caixa de comentários deste post, que vos convido a ler. A última é esta:
Sejam então coerentes com as vossas convicções, estabeleçam uma ordem de prioridades (já agora deixem a Liliana em paz por uns tempos), e criem um abaixo assinado, para que se cumpra a Convenção sobre os Direitos da Criança e se tirem todos os menores de 18 anos aos pais ciganos. É que salvo raras excepções, não há notícia de que cumpram nada da listinha de conformidades que consideram imprescindíveis para os progenitores manterem os filhos. Preparem-se já agora para levarem logo famílias inteiras já que aquilo é malta que se casa e tem filhos ainda antes da maioridade...
A par, podem igualmente formular um projecto de lei que preveja a esterilização compulsiva de todos os cidadãos beneficiários do RSI. É que com o valor que recebem, as actuais perspectivas de futuro e claro está, a irresponsabilidade moral "desse tipo de gente", são malta para ainda se entreter a procriar, imagine-se!
Por fim, só mais duas maçadas:
- olhar para a vossa infância e pensar (com honestidade intelectual) se gostavam de ter sido tirados aos vossos pais se a certa altura eles tivessem caído em situação de pobreza e não vos pudessem ter assegurado o nível de vida mínimo.
- Ir passar um dia (ou vários) com miúdos institucionalizados e tentar perceber (se conseguirem!) o nível de stress, tristeza e angústia em que esses miúdos vivem TODOS OS DIAS e que se manifesta em TUDO O QUE DIZEM. E já agora perceberem o tratamento negativamente diferenciado que recebem, por exemplo, em creches.
Como o leitor não me conhece de lado nenhum pressupõe que este tema é para mim só teoria. Não, não é só teoria - o tema das crianças institucionalizadas interessa-me por questões teóricas e por questões muito práticas, que não vou estar a explicar no blogue, porque há coisas que não posso nem quero estar a explicar em público.
Aliás, esse é precisamente um dos problemas centrais do caso Liliana: quando o Conselho Superior de Magistratura e as autoridades responsáveis começaram a alertar para o facto de não ser a ausência de uma laqueação de trompas que levou à retirada dos filhos, logo as próprias advogadas da senhora vieram criticar os magistrados por estarem a comentar o caso, e assim falharem no seu "dever de reserva". Ou seja, o "dever de reserva", acham elas, é só para um dos lados: a mãe pode dar 50 entrevistas agarrada a peluches, mas o Estado não pode justificar os seus actos (e, de facto, não pode, se isso prejudicar as crianças).
Deixem-me sublinhar que é com imenso pesar que parece que estou a defender a Justiça neste caso. Já disse aqui, e volto a dizer, que as crianças são muito maltratadas pelo nosso sistema de justiça, porque sobre elas é todos os dias cometida a mais abominável barbaridade: a demora estúpida, inadmissível e em última instância criminosa nos processos de decisão, que conduzem a prolongamentos inconcebíveis na institucionalização de crianças. Quem está no terreno queixa-se frequentemente de falta de meios, e este é um caso em que o Estado teria de assegurar todos - absolutamente todos - os meios que fossem necessários. Se um país nem sequer acode às necessidades das suas crianças mais frágeis, então o Estado realmente não serve para nada.
Dito isto, e indo agora de encontro aos argumentos do leitor, obviamente que eu não defendo a aplicação cega de todas as leis ou de todas as convenções, desligadas de um contexto. É por isso que quem aplica a justiça é um juiz e não um computador - porque sem bom-senso, sensibilidade e empatia nada se consegue. Mas isso não significa que fechemos os olhos à complexidade dos problemas, e nesse aspecto a questão dos ciganos é bem interessante.
Não sei se o leitor conhece este relatório sobre a comunidade cigana. Vale a pena olhar para ele com atenção. O alerta é claro: se há questões profundas de identidade que têm de ser respeitadas, não menos profundas são as questões de igualdade. Deve o Estado deixar que uma criança cigana não cumpra, por exemplo, a escolaridade obrigatória? A minha opinião é um rotundo "não", na medida em que entendo que há valores civilizacionais que se sobrepõem à identidade cultural de determinadas comunidades.
O Estado tem a obrigação de proporcionar uma educação a um cigano, como a um caboverdiano, como a um ucraniano, como a um chinês que habite o seu território nacional. E a meu ver tem também a obrigação de procurar encontrar soluções junto de uma comunidade como a cigana, para que esse ensino possa ser o mais possível compatível com o seu modo de vida. Mas abdicar de exercer o dever da escolaridade obrigatória seria colocar fora da sua jurisdição menores que têm direito às mesmas oportunidades que todos os outros.
O meu ponto é este: há um limite para o relativismo e para o multiculturalismo. Há um determinado número de direitos que eu considero serem universais, e universalmente bons, independentemente de raças ou credos. A escolaridade é um deles. Tal como a saúde ou a alimentação. E o amor de um filho por um pai, ou de uma mãe por um filho, NÃO SE SOBREPÕE (para utilizar as capitulares do leitor) a eles. Jamais.
As mulheres que praticam a excisão sobre as suas próprias filhas também as amam profundamente. Um pai pode espancar um filho e amá-lo profundamente. Uma mãe pode matar os filhos e amá-los profundamente (ainda esta semana aconteceu), e sobre isso há até um filme extraordinário chamado Será que Vai Nevar no Natal?, em que o espectador não só não culpa a mãe, como se torna cúmplice dela. Só que o ponto é este: os sentimentos também podem ser extremamente enganadores quando se trata de avaliar a justeza de um acto.
É por isso que me apetece voltar a um dos primeiros posts deste blogue, escrito a propósito do último filme Michael Haneke, mas que se pode estender ao caso Liliana e a cada dia da nossa vida: Aquilo que fazemos por outra pessoa é mais importante do que aquilo que sentimos por ela. Se alguém nos diz "amo-te", nós dizemos "então prova". E é assim que deve ser.