Deixem-me então voltar ao tema que parece até hoje ter interessado mais os leitores deste blogue: dar ou não dar palmadas nos nossos filhos? (A mais recente entrada está
aqui e a partir dela é fácil chegar às outras.) Deixem-me recuperar dois comentários que achei curiosos em relação ao último post. Em primeiro lugar, um leitor anónimo que me decidiu dar pancadinhas nas costas (mas sem bater):
Espero que este texto, magistralmente escrito, tenha feito muitos pais e mães pararem para pensar e repensar na sua forma de educar. O facto de ter voltado à conversa, JMT, mostra (embora não o admita) que tem pensado sobre o assunto e isso é muito bom.Obrigado, caro leitor anónimo, pela preocupação com a minha forma de educar. Só não percebo porque acha que eu não admito que ando a pensar nisso - então se já me fartei de escrever sobre o assunto e até já admiti que conseguir educar os filhos sem uma única palmada merece estátua numa praça de Lisboa (e das grandes). O que eu não sinto, de facto - e se calhar era a isso que se referia -, é nenhuma espécie de angústia existencial quando enfio uma nalgada num ou noutro, num qualquer momento em que entendo que passaram dos limites.
E porquê? Basicamente porque sinto que isso
não é um problema na nossa família. Se percebi que fui injusto, peço-lhes desculpa. Se não tiver sido injusto, eles percebem porque é que levaram. É que, para o caso de os senhores e senhoras com discursos mais cor-de-rosa nunca terem reparado, educar é obrigar seres humanos a fazer coisas para as quais não estão naturalmente talhados. Por que raio é que eu hei-de comer com o garfo na mão esquerda e com a faca na mão direita? Por que não ao contrário? E porque é que tenho de esticar o dedo indicador para pegar na faca? Por que raio hei-de pentear-me? A quem prejudica eu andar desgrenhado? Por que raio hei-de ter de fazer a cama se me volto a deitar nela à noite? (Pergunta recorrente em todas as nossas casas, como se sabe.)
Diz-se muitas vezes que a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro, e eu simpatizo com essa ideia. Mas eu em nada prejudico a liberdade dos outros se não comer com talheres, se não me pentear ou se não fizer a cama. Ou seja, a educação, a socialização de uma criança, é uma diminuição efectiva da liberdade de um ser humano, e não é porque afecte a liberdade dos outros. Fazemo-lo em função de um bem superior? Com certeza. Mas é sempre uma forma de opressão, se quisermos ser trágicos e fundamentalistas.
Nesse sentido, eu oprimo sempre, mesmo que não bata. E aí pergunto, para esticar a corda: qual é a diferença entre opressão física e opressão psicológica? Qual é a diferença entre dar uma palmada ou impor um castigo violento? O que se prende com um segundo comentário, que achei bem curioso, e com o qual concordo em absoluto:
Verdade, verdadinha, que eu estive todo o tempo à espera que algum progenitor ou educador mais afoito viesse aqui discorrer sobre os exageros do diálogo, da negociação, do compromisso, da dialéctica e etc., que podem resultar em meninos mimados, mal agradecidos, abusadores, dissimuladores, manipuladores e outros horrores... Pois, pois, é que eu conheci alguns. Com eles tudo tinha de ser eternamente negociado! Será que no meio é que está a virtude, com pessoas bem resolvidas?Sim, sim, sim. É isso mesmo. Não só no meio é que está a virtude, como certos castigos não-corporais podem ser muito mais violentos do que uma palmada. Imaginem que um dos meus filhos está insuportável e eu, em vez de lhe bater para conseguir baixar as suas rotações, o enfio na casa de banho e fecho a porta, proibindo-o de sair de lá. Garanto-vos, meus caros: para ele, isso seria de uma violência infinitamente maior.
Portanto, das duas, uma. Ou temos em casa uns anjinhos abertos a todas as formas de negociação - e atenção que eu tenho um filho assim: o meu Tomás é muito mais sensível a um "estou desiludido contigo" do que a uma palmada no rabo -, ou então, se nos sai uma peste reguila, eu francamente não sei como a pôr em sentido de forma mais eficaz do que uma palmada (justa, suave, formativa) na hora certa.
Lamento desapontar-vos, caros leitores. Eu não sou nenhum Ghandi da educação infantil. Não partilho certas teses da não-violência e não sinto que a palmada seja um problema cá em casa. E, portanto, continuarei alegremente a distribuí-la enquanto a considerar um meio eficaz de educação (ou de opressão necessária, se quiserem).
E, já agora, também acho contraproducente uma educação demasiado pensada, demasiado controlada, aquela coisa do "se eu acho que vou perder o controlo saio da sala e peço a alguém para me substituir". É evidente que se eu estiver quase a ir buscar a faca de cortar os bifes para transformar o meu filho em bitoque, se calhar é melhor dar um passo atrás. Mas também é educativo que os filhos nos vejam perder a paciência. Porque viver é isso. Riso e choro, gargalhadas e gritos. Quando nos preocupamos demasiado com a perfeição tenho sempre aquele medo de que os nossos filhos saiam de casa para partir os dentes na primeira desilusão com que esbarrarem na rua.
Portanto, e em resumo, cá em casa, se tiver mesmo de ser, lá continuará a saltar uma palmada de vez em quando. Mas sempre - ou quase sempre - com amor.