por João Miguel Tavares, em 11.03.13
Neste post eu citava um excerto do último livro do Afonso Cruz ("Se ele a enganar, é porque não tem carácter, e não o quero. Se não a enganar, quero-o, mas jamais o terei.") e acrescentava que aquelas duas frases compunham um magnífico paradoxo conservador, infelizmente muito fora de uso. Nos comentários a esse post, um leitor (ou uma leitora, não faço ideia, porque o comentário é anónimo) perguntava: "JMT, porque acha que é tão fora de uso?" É uma pergunta que merece resposta.
E posso começar por responder com um outro post que escrevi, sobre uma canção de Samuel Úria que anda a rodar nas rádios. Chama-se "Eu Seguro" e é um maravilhoso dueto com Márcia sobre o mais improvável dos temas pop: o amor monogâmico. Eu tive oportunidade de entrevistar o Samuel Úria para a Time Out e fiz-lhe uma pergunta especificamente sobre esse tema. E ele disse isto: "O amor é muitas vezes uma coisa que se quer sustentar, e não pelas formas mais românticas e idílicas. O casamento é um compromisso. E o compromisso é um amor duro que merece ser cantado."
Infelizmente, esta última e extraordinária frase do Úria - "o compromisso é um amor duro que merece ser cantado" - é assim como o excerto do Afonso Cruz: está tristemente fora de moda. Tão fora de moda que parece só fazer sentido no âmbito da fé. Úria é baptista, e a ideia da indissolubilidade do casamento está hoje em dia confinada ao quintal das religiões.
Eu obviamente não acho que as pessoas infelizes devam arrastar casamentos pela vida fora. Mas acho que muitas vezes falta perspectiva e capacidade de resistência. As frases de Samuel Úria e Afonso Cruz encontram-se nisto: na suspensão de um impulso em nome de um bem superior. É isto que está fora de moda.
Claro que eu escrevo estas palavras e já me estou a sentir padreco. Provavelmente é inevitável. Ainda por cima, a minha complexa relação com a Igreja Católica levou-me a desenvolver uma profunda alergia à palavra "sacrifício". Mas sou sensível a um conceito que atravessa a natureza e é o coração da fábula da formiga e da cigarra: a capacidade de adiar uma gratificação imediata.
Curiosamente, educar uma criança é estar o tempo todo a ensinar-lhe isso: não fazer o que lhe apetece a cada momento, em nome de uma série de princípios superiores. Mas quando chegamos a adultos parece que nos libertámos para sempre do jugo dos deveres, pelo menos no que às matérias amorosas diz respeito. Se uma relação não está sempre bem parece que não vale nada. Se eu me sinto atraído por uma colega de trabalho então é porque o meu amor à minha mulher já não é o mesmo de antigamente. Erro, erro, erro. O amor às vezes é duro. E é essa dificuldade em compreender o "amor duro", como Úria lhe chama, que dá cabo de imensas relações.
E o que entendo eu por "amor duro"? É precisamente aquilo que está escrito na primeira estrofe de "Eu Seguro":
Quando o tempo for remendo,
Cada passo um poço fundo
E esta cama em que dormimos
For muralha em que acordamos,
Eu seguro
E o meu braço estende a mão que embala o muro.
A paixão é só rosas. Amor é o que suporta os espinhos. Sabem qual é o último verso da canção?
Eu seguro,
Que o presente é uma semente do futuro.
E é mesmo. Cá vai outra vez: