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Carolina e o passarinho

por João Miguel Tavares, em 17.07.13

No último domingo fomos passar o dia ao Badoca Park, aproveitando o facto de o tempo estar fresco. Na viagem de regresso, numa zona da A1 em que a autoestrada se eleva e fica no mesmo plano da copa das árvores que estão ao lado, um pássaro desconhecedor das regras da circulação automóvel saiu a voar em direcção à autoestrada e veio embater no pára-brisas.

Não aconteceu nada ao vidro do carro. Deveria ser um pardalito que, àquela velocidade, foi directamente para o céu das aves. Mas se não aconteceu nada ao carro, aconteceu alguma coisa à Carolina, que assistiu à cena e à pancada no pára-brisas. Ela ficou perturbadíssima com a morte do passarinho, meio lacrimejante e com a voz embargada. Por ela, eu teria travado a fundo em plena autoestrada e feito marcha-atrás para ver se ele ainda estaria vivo.

Mas, no fundo, o que mais a perturbou não foi bem isso, não foi a morte do pássaro só por si - foi eu não ter ficado tão perturbado com o que aconteceu quanto ela. Foi eu não estar a sentir o que ela estava a sentir. Claramente, a Carolina ficou a pensar para si própria: "porque é que o meu papá não está tão triste quanto eu?". E perguntou-me isso mesmo: "Papá, não estás triste?"

Disse-lhe que sim, que estava triste, mas que aquelas coisas acontecem. Tentei explicar-lhe que àquela velocidade o passarinho não tinha hipóteses de sobreviver, que o papá não tinha tido tempo de reagir. Contei-lhe também que não era a primeira vez que me acontecia, e que quem conduz tantos quilómetros como o papá dificilmente não terá já atropelado alguma coisa. Certa vez até fiquei sem a parte da frente do meu velhinho Fiat Punto ao atropelar um cão enorme ao pé de Abrantes. Foi horrível.

Mas, como explicação, tudo isto é fajuto. A verdade é que não há como ultrapassar a nossa hierarquia de sensibilidade em relação ao reino animal: atropelar um cão ou um gato é pior do que atropelar um coelho, atropelar um coelho é pior do que atropelar um pássaro, atropelar um pássaro é pior do que atropelar uma lagartixa. E se formos para o reino dos insectos, então, é-nos tudo indiferente: qualquer viagem na A6 no início do Verão é um verdadeiro holocausto de insectos - são literalmente milhares os mosquitos e afins que esmagamos pelo caminho.

A questão é: como explicar isto a uma menina de nove anos, sem que estejamos a fazer um trabalho de insensibilização? Não há forma. Estará sempre subjacente o singelo facto de que eu não fiquei tão triste quanto ela porque a vida já me ensinou a lidar melhor com a perda. Mas isso não é resposta que se dê. Eu não posso dizer à Carolina: "Olha, fiquei menos triste do que tu porque já aprendi a não ser tão sensível. Sente menos, se faz favor." Seria uma treta de uma resposta.

Então, o que aconteceu foi ela ter ficado perturbada pela minha falta de perturbação, e eu ter ficado perturbadíssimo por ela ter ficado perturbada pela minha falta de perturbação. Crescer é endurecer, como é óbvio, mas esse é essencialmente um processo que parte do interior de cada um, e quando alguém nos confronta com as nossas armaduras, aquelas protecções que já fazem tão parte de nós que nem sequer damos por elas, somos igualmente confrontados com a questão da perda da inocência. E, de uma estranha maneira, foi essa perda que eu vi reflectida no olhar desapontado da minha filha. Estou certo que ela cresceu um pouco naquele momento, por causa da dureza do meu coração. E embora isso seja provavelmente necessário, não deixa de ser triste.

Três dias depois ainda continua a ressoar na minha cabeça o que ela me quis dizer, e que de certa forma disse mesmo: "Porque é que a morte daquele passarinho não te atingiu no fundo do teu coração?" E embora eu saiba que é bom para mim, e para a minha felicidade interior, que a morte de um passarinho não me atinja no fundo do meu coração, e que essa morte fique apenas como uma tristeza superficial, que passa ao fim de dois minutos, tal não me tem dado grande consolo. Infelizmente, para ser boa, essa insensibilidade não pode ser consciente. Se for consciente, já não é boa. E a Carolina escarrapachou-ma em frente do nariz.

Nós gostamos de nos convencer que educar os nossos filhos é apurar-lhes a sensibilidade, torná-los mais atentos aos outros, ao mundo e à natureza: "diz olá ao vizinho", "sê boa para os teus manos", "não deites lixo para o chão", "vê como este quadro é bonito", "repara no que diz esta canção". Mas, afinal, também há um outro movimento, menos perceptível, mas provavelmente também necessário: é ensinar-lhes a insensibilidade, saber onde devem investir e desinvestir os sentimentos, porque essa é a única forma de atravessar a vida sem se ser atropelado a toda hora.

Portanto, acho que sim, que se calhar aquela foi uma lição muito útil para a Carolina. Mas, então, como se explica que eu esteja tão arrependido de lha ter dado?

Para a Ana Rute e para o Tiago 

Para o António e para a Margarida

publicado às 12:43


1 comentário

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De Ana Rute Oliveira Cavaco a 17.07.2013 às 16:53

remorsos, esses chatarrões!

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