Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Um dos textos mais interessantes que li durante as férias foi este artigo do Washington Post que o Público traduziu no passado domingo: "Por que os muito ricos não estão a dar as suas fortunas aos filhos".
A perspectiva do artigo é americana e diz respeito, em primeiro lugar, a multimilionários, mas a ideia contida em todo o texto é algo com que me identifico muito, e que está resumida na perfeição numa frase famosa de Warren Buffett, sobre o montante ideal para deixar aos filhos:
"Enough money so that they would feel they could do anything, but not so much that they could do nothing."
Em português não é tão bonito:
"O dinheiro suficiente para que possam fazer qualquer coisa, mas não o suficiente para que possam não fazer nada."
Sendo a América um país onde o Estado é olhado com desconfiança e onde as pessoas sentem que têm obrigações para com a sociedade, a questão do que fazer com as quantidades astronómicas de dinheiro que um Warren Buffett ou um Bill Gates têm à sua disposição ultrapassa largamente qualquer dever de reserva sobre as suas vidas privadas.
Até porque um livro tão badalado quanto O Capital no Século XXI, do francês Thomas Piketty, que muito consideram o livro económico da década, alerta para as perversões do capitalismo actual: se os rendimentos do património (a taxa de remuneração da riqueza) estão efectivamente a crescer, como ele defende, a um ritmo superior ao PIB de uma nação (aos rendimentos do trabalho, para simplificar), isso significa que a simples gestão de riqueza acumulada é mais vantajosa do que uma vida inteira dedicada ao empreendedorismo - o que levanta questões morais muito sérias e coloca em causa o conceito de meritocracia, que é um dos pilares de qualquer sociedade democrática.
Não se preocupem, que eu não me enganei no blogue, nem vos vou estar a aborrecer com o Piketty. Mas isto, a bem dizer, é pura telenovela e romance do século XIX: significa que casar bem é preferível a arranjar um bom emprego, e que mais vale nascer rico e não fazer nada do que ser remediado e criar uma grande empresa. Os rendimentos do rico, diz Piketty, estão a crescer mais, em média, do que os da grande empresa.
O problema, visto já não da perspectiva económica mas da perspectiva paternal e filial, é que não fazer nada "sucks". Não fazer nada não é bom para ninguém - sobretudo, não é bom para os filhos. Regresso ao magnífico artigo de Roxanne Roberts para o Washington Post, onde a famosa Nigella Lawson, uma das mais apetecíveis mamãs do planeta, afirma não ter qualquer intenção de deixar uma grande fortuna aos herdeiros:
"Estou determinada a que os meus filhos não tenham segurança financeira. Não precisar de ganhar dinheiro arruina as pessoas."
Nigella com a mão na massa. Hummm...
É verdade. Arruina mesmo. E por isso, somos informados que Bill e Melinda Gates planeiam deixar a cada um dos seus três filhos 10 milhões de dólares, o que dá cerca de 7,5 milhões de euros por cabeça. Sim, eu sei que se cada um de nós recebesse 7,5 milhões de euros em herança era capaz de não ficar particularmente zangado. Mas convém esclarecer que a fortuna dos Gates ascende a... 76 mil milhões de dólares, mais de 57 mil milhões de euros. É um terço do PIB inteiro de Portugal em 2013. Portanto, 30 milhões é para aí 0,04% da fortuna deles.
E o que é que esta conversa de multimilionários tem a ver connosco, meros remediados? Tem tudo a ver, como tentarei explicar já a seguir.
Partes I, II, III, IV, V e VI. Hoje, a última parte.
PARTE VII
Significa isto que não há esperança? Tem de haver esperança – ninguém aprecia finais infelizes, nem em filmes, nem em artigos de jornal. Deixem-me então convocar, em meu auxílio, Jennifer Senior, que transformou brilhantemente em livro uma intuição muito simples: andamos há tanto tempo obcecados com o impacto que os pais têm nas crianças, mas esquecemo-nos de analisar decentemente o impacto que as crianças têm nos pais. E então ela foi analisar. O resultado chama-se All Joy and No Fun: The Paradox of Modern Parenthood. O livro tem tido críticas entusiásticas e um imenso sucesso nos Estados Unidos. É inteiramente merecido.
Jennifer Senior faz no seu livro o que eu tentei modestamente fazer neste artigo: não deixa pedra por levantar na descrição do impacto devastador que as crianças têm nos pais contemporâneos. Ela cita um estudo levado a cabo em 2004, no Texas, por cinco investigadores (incluindo o prémio Nobel Daniel Kahneman, autor do popular Pensar, Depressa e Devagar), que entrevistaram 909 mulheres perguntando-lhes quais eram as actividades que lhes davam maior prazer. Num total de 19 actividades, tomar conta das crianças ficou em 16º. Atrás de ver televisão. De cozinhar. Ou de limpar a casa.
A grande questão, que ouço ser colocada do outro lado do papel desde o início do meu texto, é esta: então por que raio é que se tem filhos? E, no meu atípico caso, logo quatro de uma vez (segundo o INE, só 2% das famílias portugueses são constituídas por seis membros ou mais). Senior responde a esta contradição com uma belíssima citação de Os Quatro Amores, de C.S. Lewis (a tradução é minha):
Nós alimentamos as crianças para que em breve elas sejam capazes de se alimentar sozinhas; nós ensinamo-las para que em breve não necessitem dos nossos ensinamentos. Uma grande exigência é colocada sobre o Amor-Dádiva [“Gift-Love”, no original, segundo Lewis o tipo de amor característico da relação pai-filho]. Ele tem de trabalhar no sentido da sua própria abdicação.
É uma extraordinária definição daquilo a que eu chamei, sem a sensibilidade nem a sapiência de C.S. Lewis, de síndroma de Estocolmo: estamos apaixonados pelos nossos raptores, mas queremos continuar a ser raptados por eles, e não imaginamos o que seria a nossa vida sem esse permanente rapto. Porque, curiosamente, quando os pais são questionados, não sobre o seu presente afobado, mas sobre quais as suas experiências passadas que foram para eles mais recompensadoras, os filhos estão invariavelmente presentes.
Isso tem a ver com uma diferença fundamental na percepção humana que o já citado Daniel Kahneman, em Pensar, Depressa e Devagar (o livro está traduzido em português pela Temas e Debates/ Círculo dos Leitores), classifica como experiencing self (o “eu da experiência”) e remembering self (o “eu da memória”). Num resumo apressado, a sua tese é esta: existe uma distância substancial entre o modo como experienciamos algo e o modo como nos recordamos posteriormente dessa experiência.
Quem tem filhos sabe isto de cor. O que foi uma pequena tragédia no presente (uma refeição em que tudo corre mal, por exemplo) transforma-se meses depois num momento humorístico ao ser recordado em família. É como nas fotografias: a memória ajuda-nos a sorrir e a mostrar os dentes, ainda que no momento em que a máquina fez clique toda a gente pudesse estar farta uma da outra e a portar-se mal.
Com frequência, nós não suportamos o nosso presente como pais, mas sabemos que iremos ter saudades dele no futuro. Posso garantir que já foram centenas as pessoas que, diante dos meus recorrentes protestos paternos (eles são mesmo muito recorrentes), me disseram: “Você ainda vai ter saudades disto.” Eu respondo sempre, muito convicto: “Ai não vou, não.” Mas vou, claro. Está escrito em todos os livros.
Ser pai, portanto, é insuportável e cada vez mais difícil, enquanto ser solteiro é cada vez mais comum e divertido. Mas como Émile Durkheim, pai da Sociologia, descobriu no distante ano de 1897 ao escrever O Suicídio, as pessoas casadas matam-se menos do que as pessoas solteiras, as pessoas viúvas matam-se mais do que as pessoas casadas mas menos do que as solteiras, e as pessoas com filhos matam-se menos do que todas as outras. Quando um casal tem filhos, diz Durkheim, o “coeficiente de preservação” praticamente duplica. Segundo ele, existe uma relação muito forte entre a formação da família e a preservação da vida.
Muita da angústia moderna terá a ver, a par de todas as mudanças sociológicas, com o facto de o conceito de “prazer” ter ganho demasiado território ao conceito de “dever”. Mas o conceito de “dever”, como prova Durkheim, está lá, bem enfiado no nosso património genético, e merece ser recuperado, a bem da nossa sanidade mental. Se nós pararmos de acreditar que ter filhos é suposto ser uma coisa divertida, e passarmos a aceitar antes que é uma coisa que deve ser feita, e que nos devolverá no futuro, com juros, aquilo que nos tira no presente, talvez o próprio presente se torne mais fácil de suportar.
Em resumo, e avançando para o tal final que se quer feliz: ser pai em 2014 é muito difícil, por vezes desesperamos, e sem dúvida merecemos mais atenção do que aquela que nos tem sido dada. Olhar mais dedicadamente para as angústias da paternidade, exterminar de vez o discurso cor-de-rosa dos bebés cutchi-cutchi, seria uma actividade muito útil e, a bem da propagação da espécie, extremamente proveitosa. Ainda assim, a paixão pelos filhos não diminuiu. Pelo contrário: nunca antes pensámos tanto neles, nunca tivemos tantos problemas de consciência por não estarmos com eles e nunca a nossa vida nos pareceu tão deslocada sem eles. Todos temos consciência disso, a cada minuto do dia. Incluindo naqueles momentos – tão frequentes – em que os nossos filhos nos parecem apenas uns caras de cu.
FIM
Partes I, II, III, IV e V. Hoje, a parte VI.
PARTE VI
Aquilo que se pode ler acerca das motivações do estudo The New Dad é música para os ouvidos de um pai cansado e farto de protestar por atenção:
Assim como tem sido importante avaliar os desafios enfrentados pelas mães trabalhadoras, é importante avaliar os desafios com que os pais trabalhadores se confrontam e reflectir nas mudanças significativas em termos de atitudes e expectativas que têm ocorrido. A nossa pesquisa mostra que o novo pai contradiz os velhos estereótipos do pai workaholic e ausente, somente focado na sua carreira, cujo contributo para a família se limita ao de ganha-pão e cujo sucesso é definido exclusivamente pelas promoções no trabalho. Enquanto os programas de televisão e os media continuam em insistir em catalogar os pais como ineptos e desajeitados cuidadores, desligados das preocupações do dia-a-dia das suas famílias, o nosso trabalho sugere algo completamente diferente.
Aleluia, aleluia. E o que esse trabalho sugere mostra bem o desafio colossal da paternidade contemporânea. Mais de 70% dos cerca de dois mil pais inquiridos considera ser seu dever “simultaneamente cuidar dos filhos e ganhar dinheiro para os sustentar”. E quando questionados sobre quais são as características de um bom pai, aquelas que aparecem destacadas são estas: “providenciar amor e suporte emocional” e “estar presente e envolvido na vida dos seus filhos”.
Parece óptimo, correcto? Correcto. O problema está em como compatibilizar este sentimento século XXI com a manutenção das mesmas ambições profissionais de 1980. E é aí que o homo familiaris de 2014 frequentemente soçobra. O estudo chama a esta atitude “myth of having it all” – o desejo de os novos pais terem tudo ou, à boa maneira portuguesa, quererem ficar com o bolo e comê-lo. Os pais desejam estar mais tempo em casa e 86% concordam com a afirmação “Os meus filhos são a grande prioridade da minha vida”, só que 76% ambicionam ao mesmo tempo subir na hierarquia da sua empresa. Como compatibilizar uma coisa com a outra? Não é fácil.
É tão difícil, aliás, que a consequência disso é existir, em simultâneo, uma enorme disparidade entre o tempo que os pais gostariam de dedicar à família e o tempo que efectivamente dedicam. São pais em permanente falha: quando estão em casa sentem que deveriam estar a dedicar mais tempo ao trabalho, e quando estão no trabalho sentem que deveriam estar mais tempo em casa. (Isto para não falar no tempo em que desejam apenas estar sozinhos.)
Este sentimento não é exclusivo dos homens, obviamente – mas, ao contrário do que acontecia há 30 anos, é hoje em dia muito mais acentuado nos homens do que nas mulheres. A percentagem de progenitores que assume sentir um intenso conflito entre vida e trabalho é actualmente de 60% para os pais e de 45% para as mães. Em 1977, somente 35% dos pais assumiam esse conflito, contra 40% das mães. Ambas as percentagens subiram. Mas a dos pais subiu muitíssimo mais. A nossa consciência está a dar cabo de nós. Não espanta, por isso, que um dos estudos no âmbito do programa “The New Dad” tenha como subtítulo Caring, Committed and Conflicted – Cuidador, Comprometido e em Conflito. Os três C que resumem na perfeição o imbróglio em que os novos pais estão enfiados.
Falo por mim. Os famosos versos de António Variações – “Estou bem/ Aonde eu não estou/ Porque eu só quero ir/ Aonde eu não vou” – são o hino da minha vida. E a isso acrescento esta queixa: enquanto a vida da mãe é frequentemente um inferno, mas toda a gente sabe, a vida do pai é um inferno idêntico, mas parece que ninguém liga. Nós, homens, continuamos a levar com o preconceito generalizado de não fazermos nenhum em casa – o que poderia ser absolutamente verdade há 30 ou 40 anos, mas é absolutamente falso em 2014.
Começam a perceber porque é que precisamos tanto das piadas de Louis C.K. (e porque é que Louis C.K. precisa tanto de fazer aquelas piadas)? É simples: porque precisamos de alguém que nos compreenda. Precisamos de nos rir das frustrações constantes do dia-a-dia. Precisamos – lá está – desabafar. Não é que não adoremos os nossos filhos. Claro que adoramos os nossos filhos. Toda a gente adora os filhos. Só que frequentemente sentimos que é uma coisa tipo síndroma de Estocolmo: estamos apaixonados pelos nossos raptores.
(Parte VI de VII. Conclui amanhã.)
Partes I, II, III e IV. Hoje, a parte V.
PARTE V
Sim, a vida dos pais. A nossa vida. Nós. Homens. Gajos. Os tipos que se riem com as piadas do Louis C.K. e o Go the Fuck to Sleep de Adam Mansbach. Por que raio é que tão pouca gente pensa nas nossas naturalíssimas crises existenciais perante a total reconfiguração da lógica familiar contemporânea? Porque é que tanta gente tem dificuldade em perceber que nós partilhamos as mesmas angústias das mães (ou pior: outras angústias, menos estudadas, já que a academia e o jornalismo lhes liga pouco), e que da mesma forma que o mundo das mulheres mudou radicalmente quando elas saíram de casa, o mundo dos homens mudou radicalmente quando eles entraram em casa?
Atenção: não entraram em casa para se estenderem no sofá e pedir à esposa para ir buscar uma cerveja ao frigorífico. Entraram em casa para dar banho aos filhos, para dar de jantar aos filhos, para estudar com os filhos, para deitar os filhos, para executar todas aquelas tarefas que durante 200 mil anos, desde o aparecimento do tal homo sapiens, nunca haviam sido tarefa sua. Nós, homens, que estamos geneticamente programados para caçar mamutes, acabámos elefantes no meio da sala – e ninguém parece reparar em nós.
São muito poucos – escandalosamente poucos – os estudos que se preocupam em analisar o papel do pai na família moderna. Em 2001, Leonor Segurado Balancho publicou em Portugal uma tese de mestrado intitulada O Novo Papel do Pai na Educação dos Filhos: Coparentalidade e Diferenciação, à qual se seguiu, dois anos depois, um pequeno livro na Editorial Presença chamado Ser Pai, Hoje. O facto de esse livro já ir na sua nona edição confirma que ser pai hoje é mesmo um problema.
Desde logo, há a questão básica do tempo que o pai passa dentro de casa. Informa a autora:
Nos anos 60, nos países ocidentais, os pais das crianças com menos de cinco anos passavam em média, diariamente, 12 minutos com elas; em meados dos anos 70 esse número aumentava para 17 minutos, e estava em 43 minutos diários nos anos 80. Os valores mais recentes mostram que o nível de interacção se elevava, nos finais dos anos 90, a cerca de 2-3 horas por dia, correspondentes a dois quintos do tempo passado pelas mães.
O resultado dessa presença crescente é a alteração do papel do pai, de disciplinador a cuidador, de simples ganha-pão familiar a fonte indispensável de afectividade. O livro de Leonor Segurado Balancho é sobretudo didáctico e, em certo sentido, paternalista: ela identifica o papel eficaz do pai moderno e estimula o macho ibérico a adaptar-se a ele. Mas o mais interessante não é isso – é identificar que impactos essa presença causa nos pais e a forma como o novo papel doméstico modifica as suas próprias expectativas de vida.
E para sabermos isso, temos de viajar novamente até à América, e em particular até ao Center of Work & Family do Boston Colegge (uma universidade privada propriedade dos Jesuítas), departamento onde em 2009 começou a ser realizado o pioneiro estudo The New Dad, que logo na primeira frase da introdução clarifica aquilo que realmente está em causa: “Nos lares da América, os pais iniciaram uma revolução silenciosa.” Finalmente, alguém nos dá a devida importância. Até porque não foi só nos lares da América.
(Parte V de VII. Continua amanhã.)
Partes I, II e III. Hoje, a parte IV.
PARTE IV
Depois chegou o século XIX e todas as suas revoluções: Darwin, a paixão pela biologia e pela antropologia, o desenvolvimento extraordinário de todos os ramos da ciência (que viria a desembocar na psicologia e em Freud), e ainda uma revolução industrial que começou a empurrar a mulher para dentro de casa. De facto, a ideia de que a mulher sempre viveu na cozinha a cuidar dos filhos até ao momento em que, em meados do século XX, começou a ir bater à porta de empresas, é completamente falsa: nos tempos em que a agricultura de subsistência era o principal modo de vida, a mulher fazia parte da força de trabalho.
Foi com a industrialização, com o progressivo desenvolvimento da burguesia, com o crescimento do sector terciário e com o surgimento de uma classe média onde o ordenado do homem era suficiente para sustentar a família, que a mulher pôde enfim dar-se ao luxo de se tornar a “fada do lar”, dedicada à casa, especialista na ménage e concentrada na educação dos seus filhos. E como não há mundo de fadas sem literatura a acompanhar, os livros sobre o tema cresceram e multiplicaram-se. Havendo tempo, havendo dinheiro, havendo interesse e havendo cada vez mais ciência, os manuais de como cuidar dos filhos começaram a aparecer.
Alguns, poucos, ainda na transição do século XIX para o século XX, mas a maior parte deles já bem dentro do século XX, acompanhando o desenvolvimento da medicina e a importância crescente da figura do pediatra. Sim, este é finalmente o tempo dos doutores Spock e Brazelton e dos seus livros que vendiam (e vendem) milhões. Só Baby and Child Care, que Benjamin Spock lançou pela primeira vez em 1946, foi durante meio século o livro mais vendido da América, logo a seguir à Bíblia.
E com eles tudo mudou – a educação e o cuidado dos filhos passaram a ser encarados com seriedade científica, a infância foi estratificada em inúmeras categorias, a evolução dos miúdos passou a ser analisada e reanalisada mês a mês e a gravidez analisada e reanalisada semana a semana. Com este senão: a confusão dos pais foi aumentando de dia para dia, já que o pediatra do terceiro esquerdo poderia perfeitamente dizer – e dizia – coisas bastante diferentes do pediatra do segundo direito, estando eles a falar exactamente sobre o mesmo assunto.
A crescente aplicação e preocupação dos pais em relação aos destinos dos seus filhos não os tornou necessariamente mais informados – apenas mais angustiados. Até o tema-fetiche de qualquer processo educativo – saber se devemos apostar em “mais autoridade” ou em “mais afecto” na educação das crianças – foi variando radicalmente consoante os autores e os ares dos tempos. Há um belo livro que demonstra tudo isso, embora centrado apenas nos Estados Unidos, chamado Raising America: Experts, Parents and a Century of Advice About Children e assinado por Ann Hulbert (e que o próprio Brazelton considera na capa ser “a classic”). Hulbert conclui que o empenho de todos os envolvidos é muito estimável, mas que falha redondamente em oferecer respostas definitivas a milhões de pais ansiosos e, com assustadora frequência, à beira de um ataque de nervos.
A medicina fez maravilhas ao longo dos últimos 100 anos: a vida uterina é hoje conhecida até ao mais ínfimo detalhe, a mortalidade infantil caiu a pique, a vacinação afastou as doenças mais perigosas da infância, e até já podemos ver uma cara colorida e a três dimensões do nosso feto durante ecografias de rotina. Só que quando os putos saltam cá para fora, e a abordagem psicológica se torna mais importante do que quaisquer problemas físicos, as dúvidas não só continuam, como as inseguranças dos pais aumentaram, em vez de diminuírem.
Hulbert resume a coisa citando o pós-título de um artigo publicado no New York Times sobre os desafios da maternidade, esclarecedoramente intitulado “Mothers can’t win” – “As mulheres não podem ganhar”: “Trabalho ou casa? Peito ou biberão? Bater ou mimar? O que quer que escolham, elas vão sentir-se mal.” Sim, as mulheres vão sentir-se mal, e todos nós já sabemos que a vida das mães é tramada – há um movimento feminista que há décadas não diz outra coisa. Mas permitam-me, por um momento, interromper a descrição do horror da vida feminina para fazer a pergunta que, por razões óbvias, mais me interessa: e a vida dos pais?
(Parte IV de VII. Continua amanhã.)
Depois da parte I e da parte II, eis a parte III.
PARTE III
Isso não significa, contudo, que questões como a educação dos filhos tenham sido inventadas nos manuais do doutor Spock ou do doutor Brazelton. A Pediatria, como ramo próprio da Medicina, é ainda uma criação do século XIX, e o primeiro Hôpital des Enfants Malades abriu no distante ano de 1802, em Paris. A preocupação com as crianças não é, obviamente, uma invenção do século XX – aliás, toda a nossa civilização cristã é baseada na concepção de um Deus que entregou o seu único filho, num gesto de amor radical, para a salvação dos homens. Basta recordar o baptismo de Jesus segundo a narração de Lucas:
E uma voz veio do Céu: “Tu és o Meu Filho muito amado; em Ti pus todo o Meu enlevo.”
Uma cultura que tem no seu centro esta intimidade amorosa de pai e filho não é crível que tenha ignorado durante séculos a riqueza de tal ligação.
O historiador francês Philippe Ariès, numa obra fundamental acerca da história da infância – L’Enfant et la Vie familiale sous l’Ancien Régime, de 1960 –, defende que a ideia de infância enquanto conceito etário específico e distinto da idade adulta é algo que se impõe apenas no século XVI, a par do desenvolvimento da esfera privada e do conceito moderno de família. Segundo Ariès, antes disso a criança era apenas o “dependente”, o “não-adulto”, e como tal era representado na iconografia medieval: não como alguém que tivesse uma identidade ou sequer uma morfologia próprias, mas apenas como um adulto miniaturizado. E, a partir desta premissa, o historiador francês formulou a sua máxima mais conhecida: “Na Idade Média a ideia de infância não existia.”
Esta frase de Ariès tem sido alvo, desde então, de numerosas críticas por parte de outros historiadores, que a consideram abusiva e claramente exagerada. Mas seja qual for a data em que se impôs a ideia de infância e da criança como um sujeito capaz de ir muito além do mero “ser dependente”, aquilo que se sabe, para além de qualquer dúvida, é que no final do século XVII a filosofia começou a interessar-se profundamente pelo conceito de educação.
Em 1693, John Locke publicou o influentíssimo Some Thoughts Concerning Education, que logo nas suas linhas iniciais afirmava: “Penso poder dizer, de todos os homens que conhecemos, que nove partes em dez daquilo que eles são, bons ou maus, prestáveis ou não, o devem à sua educação.” Locke generalizava assim a sua concepção da tabula rasa: não havendo ideias inatas, todo o conhecimento tem a sua origem na experiência, na percepção e, claro, na educação.
John Locke
Setenta anos depois, assumidamente inspirado por Locke, Jean-Jacques Rousseau foi ainda mais longe em Émile, ou De l’Éducation (1762), onde encontramos a conhecida formulação de que o homem nasce bom e é a sociedade que o corrompe – uma variação muito optimista do mito do Bom Selvagem. Embora eu tenha em minha casa quatro provas vivas que desmentem efusivamente tal tese, na altura Rousseau foi convincente ao ponto de a sua defesa apaixonada de uma educação para aprimorar os costumes, plasmada em Émile, ter sido adoptada pelos revoltosos de 1789, e tomada como base de partida para o primeiro sistema nacional de educação francês.
Jean-Jacques Rousseau
Ainda assim, dificilmente se pode argumentar que a importância de uma criança ou de um filho, no final do século XVIII, se assemelhasse a qualquer coisa que possamos encontrar nos dias de hoje. De facto, Jean-Jacques Rousseau, homem aparentemente tão cheio de boas intenções e encantado com a ideia do “bom selvagem”, teve cinco filhos com a jovem lavadeira Thérése Lavasseur e a nenhum deles chegou sequer a dar um nome: todos os bebés foram abandonados à sua sorte no Hôpital des Enfants Trouvés. Nas suas Confissões, o filósofo francês haveria de argumentar que ter filhos era “uma inconveniência” a que não se podia permitir. Eu, pelo meu lado, só posso confirmar que ter miúdos atrapalha a escrita.
(Parte III de VII. Continua amanhã)
Tenho de agradecer publicamente à Maria o esforço que tem feito para animar a caixa de comentários deste blogue, e portanto volto a fazer questão de responder à sua última invectiva no corpo principal. As palavras delas vão a bold, as minhas respostas a redondo.
Eu realmente tenho de deixar de vir espreitar este blog...
Vá lá, Maria, já é a 17ª vez que promete isso. Por que não admitir simplesmente que gosta de cá vir?
Mas há algo que me atrai, género curiosidade idiota pelo acidente do outro lado da Segunda Circular...
Parece-me uma razão perfeitamente legítima. Portanto, sugiro que passe a iniciar os seus comentários da seguinte forma: "O mais recente estampanço no Pais de Quatro motiva-me a comentar o seguinte..."
O João reitera novamente a "tolerância à palmada", mas passe a expressão, isso é uma forma um tanto ou quanto "pussy" de defender a coisa! Depois deixa a cargo dos seus comentadores mais dados à violência a verdadeira tarefa argumentativa. Se está tão seguro da sua convicção porque não faz um post inteiramente dedicado ao assunto?
Adoro quando me chamam pussy. Sobretudo pussy cat. Mas permita-me deixar aqui mais uma sugestão, Maria. Dá sempre jeito, quando se trata de comentar um comentador ou um blogue, não partir do princípio que a primeira vez que esbarrámos nele foi precisamente no dia em que o comentador ou o blogue nasceram. Quer dizer: o Pais de Quatro já tem um histórico. Ele não começou quando a Maria cá apareceu pela primeira vez, via polémica Gonzalesca, se bem me recordo.
Donde, para evitar ser apanhada sem cadeirinha em afirmações definitivas e proferidas a grande velocidade, a Maria pode sempre recorrer ao Google, que é um grande amigo, investigar o arquivo do blogue, ou, muito simplesmente, rodar um bocadinho o pescoço para a direita e verificar que, sob o título "posts mais comentados", a terceira entrada chama-se precisamente "Sobre bater (ou não bater) nas crianças".
"Se está tão seguro da sua convicção porque não faz um post inteiramente dedicado ao assunto?" deve ter sido uma frase que divertiu deveras os frequentadores mais antigos deste blogue. Aquele post é o terceiro com título "Sobre bater (ou não bater) nas crianças", mas, que eu me recorde, foram pelo menos 11. Acha que lhe chegam? A Maria não é a única a entusiasmar-se com a questão da palmada, sabe. Na verdade, esse é o tema mais debatido, e sobre o qual mais escrevi, desde o início deste blogue, na segunda metade de 2012.
Sugestão de título: As virtudes da violência infantil. Soa-lhe bem?
Lá está: não só me soa bem como esse argumento é também o mais batido entre quem se opõe à palmada. E acerca disso eu já tentei explicar - mas nunca é demais pregar, ainda que no deserto - que esse é um argumento deveras básico, porque sugere uma equivalência (violência infantil/ violência doméstica) entre adultos e crianças.
Ora, eu acredito (é uma coisa cá minha) que os adultos não são crianças. Em certas coisas as crianças têm mais direitos do que os adultos. Noutras coisas as crianças têm menos direitos do que os adultos. E isto pela simples razão de que as crianças não são adultos, nem sequer mini-adultos. São... como é que se chama?... crianças.
Mas, já agora, aproveito para esclarecer um outro ponto. Quando me vêm cá dizer "ah, mas se fosse um adulto a fazer birra você não levantava a mão", permitam-me notar que não é, de todo, verdade. Se eu estivesse numa discoteca ou no meu trabalho e um gajo fosse tão irritante, teimoso e mal-comportado como às vezes os putos birrentos conseguem ser, e se eu não tivesse a opção de lhe virar costas, garanto que lhe batia. Ou, pelo menos, tentava. Com a diferença de que lhe aplicaria um murro nas trombas e não uma palmada no rabo.
Eu sou um gajo violento, o que é que quer. Tão violento que nunca na vida andei à pancada com ninguém.
P.S. Até aposto que se o seu filho não quiser calçar os sapatos para sair de casa não lho permite, fazendo uso se necessário da dita ferramenta de educação imprescindível, não vá ele cortar-se num vidro, ou simplesmente porque parece mal. Mas pô-lo no chão do carro ignorando as mais importantes regras de segurança já não merece tanta atenção e podemos ser portugueses cool do desenrasca! Faz todo o sentido.
Eu vou aqui confessar um pecado: dei o exemplo de sentar uma criança no chão do carro de propósito e com alguma maldade, para testar a tolerância dos meus queridos leitores e leitoras. Tive o cuidade de escrever "imprevistos de última hora" e "distâncias muito curtas", para amenizar a coisa, mas ainda assim a sempre-atenta Maria não deixou escapar.
De facto, tendo em conta aqueles momentos mais tolerantes em que admite não saber tudo acerca da ciência de criar filhos, a Maria está a maior parte do tempo à beirinha de fundar uma ASAE da paternidade. Qual é a última directiva de Bruxelas sobre a melhor forma de calçar meias, locomover-se no passeio ou fixar uma cadeira num habitáculo? A Maria sabe.
Pois bem, Maria, eu confesso: já levei crianças deitadas no chão do carro, já estacionei em sítios proibidos e raramente ando na autoestrada a 120 quilómetros por hora. Sou um péssimo cidadão e o pai mais horrível do mundo.
Os meus filhos não crescem num mundo liofilizado. Eu sou de Portalegre e a Teresa é de Castelo Branco. Fazemos dezenas de milhares de quilómetros todos os anos em estrada para visitar a família - as probabilidades de termos um acidente aumentam imenso. E então? A Carolina pede muitas vezes para ir sozinha andar de bicicleta no Alentejo. Estando sozinha, as probabilidades de ela ser atropelada e de eu não estar ao seu lado aumentam imenso. E então? Tomamos precauções, dizemos-lhe para ter cuidado, mas não a impedimos de ir, não é?
Imagine, Maria, que eu vou apanhar os meus filhos à escola e um pai amigo me telefona, desesperado, a dizer o seguinte: "Por favor, apanha-me os miúdos e leva-os para tua casa até eu chegar. Fiquei aqui retido no emprego e só consigo estar aí daqui a meia hora." Imagine, Maria que o portão da escola vai fechar e que os funcionários da escola se vão embora. O que é que eu faço? Enfio-os no meu carro, sobrelotando-o, numa viagem de quilómetro e meio feita a 40 quilómetros/hora? Ou deixo-os sozinhos à porta da escola, à espera que o pai deles chegue?
As duas opções têm os seus perigos. Podemos ter um acidente de carro. Mas se as crianças ficarem sozinhos podem ficar assustadas ou - sei lá - aparecer um raptor. Sabe aquelas alturas da vida em que somos obrigados a escolher não entre o bem e o mal, mas entre o mal maior e o mal menor? A mim, estão-me sempre a acontecer.
E, portanto, faça-me um favor, Maria: ainda que seja para ver acidentes, parta do princípio que todas as pessoas que vêm a este blogue querem o melhor para os seus filhos. Se não quisessem, se não se preocupassem, se não gostassem de ser melhores pais e mães, não vinham cá. A internet é tão vasta, não é? Há tantas coisas para fazer.
Eu não quero uma ASAE da paternidade, Maria. Não quero regras absolutas, para seguir como se eu fosse uma mula com duas palas nos olhos, condenado a passar a vida a andar à roda de um poço. Nós temos cabeça própria para avaliar riscos, improvisar, saber quando as regras podem ser quebradas, pela simples razão de que seremos sempre mais inteligentes, mais sensíveis e com mais bom-senso do que um calhamaço com directivas, venha de onde vier.
Se algum dia eu tiver realmente um acidente grave, e falhar profundamente aos meus filhos, a Maria terá sempre o consolo de dizer "eu bem avisei". Mas depois fará como na Segunda Circular: abanará a cabeça e seguirá em frente. Nós, os pais, somos o que ficamos, portanto não tenha a presunção de ser a única pessoa com o coração no sítio, quando à sua volta só há irresponsáveis, insensíveis ou gente que não está a perceber bem.
Um beijinho para si e continue a voltar, sempre acutilante,
JMT
Parte I aqui. Parte II já a seguir.
PARTE II
A grande questão é: porquê? Porque é que andamos todos a sentir esta necessidade de exorcizar, através do riso, os fantasmas das crianças presentes? O que é que se passou com a paternidade para ela hoje ser um peso tão grande sobre os nossos ombros? Afinal, a espécie humana não começou ontem a ter filhos, certo?
Certo. Só que algures no último quartel do século XX, após a entrada em força das mulheres no mercado de trabalho, da luta pela igualdade dos direitos, do crescimento da geração baby boomer e da invenção de contraceptivos que nos permitem ter exactamente os filhos que queremos, e não aqueles que vão aparecendo, ocorreu uma verdadeira revolução copernicana no conceito de família: os filhos deixaram de orbitar em torno dos pais e os pais passaram a orbitar em torno dos filhos.
A consequência é esta: hoje em dia, à minha volta, só encontro pais a queixarem-se, mesmo que muitas vezes não percebam exactamente porquê (eu incluído). À primeira vista, lá está, parece um relativo absurdo histórico, sociológico e antropológico. Estima-se que o homo sapiens exista há 200 mil anos, e alguma ideia de família, ainda que vaga, existirá há tanto tempo quanto ele. Melhor ou pior, chegámos desde as cavernas até aqui, e durante milénios não se vislumbrou qualquer traço desta angústia moderna em relação à paternidade. Os filhos simplesmente tinham-se e criavam-se. Porque é que isso deixou de chegar?
A ciência económica talvez possa dar uma ajuda nesta resposta, se decidirmos recorrer à velha lei da oferta e da procura: os filhos, por opção dos pais e auxílio dos contraceptivos, tornaram-se um bem raro. E ao tornarem-se cada vez mais raros, foram-se tornando cada vez mais preciosos. E ao tornarem-se cada vez mais preciosos, deixaram de ser um assunto exclusivo das mães – os pais continuaram a produzi-los, como sempre o fizeram, mas passaram também a educá-los, como praticamente nunca o haviam feito.
Ao mesmo tempo, a evolução da medicina afastou o espectro da morte da criança. A morte de um filho é hoje uma tragédia raríssima – não um acontecimento comum. Portugal, como toda a gente sabe de já tanto ter ouvido falar nisto, é um dos países com a mais baixa taxa de mortalidade infantil do mundo. Segundo os dados disponíveis (números da Pordata), a mortalidade infantil caiu de 77,5 mortes por cada 1000 crianças em 1960 para 2,9 mortes por cada 1000 crianças em 2013. Estamos a falar de uma redução de 96% no espaço de apenas meio século.
Recuando 200 anos, a única forma de aferir acerca da mortalidade infantil (óbitos até ao primeiro ano de idade) ou juvenil (óbitos até aos sete anos) é através de comparações entre os registos paroquiais de baptismos e o número de óbitos. Segundo um estudo realizado pelo professor Cândido dos Santos (Nota sobre a Mortalidade Infantil nos Século XVIII e XIX), centrado em freguesias de Lisboa e do Porto, os números são assustadores. Entre 1780 e 1789, na freguesia lisboeta de Santa Catarina, a mortalidade infantil rondava os 125‰ e a mortalidade juvenil os 291‰. Isto significa que praticamente uma em cada três crianças morria antes de chegar aos sete anos de idade, sobretudo de “febres” (bronquite, escarlatina), “diarreias” (desinteria) ou “bexigas” (varíola).
Esse mesmo estudo mostra que os números não baixam ao longo de todo o século XIX – e quando surgiam epidemias, como a da cólera em 1833, o número de mortes era devastador. Ora, num mundo destes, aquilo que hoje temos como a mais traumática experiência humana – a perda de um filho – era necessariamente tida como um acontecimento natural. Os filhos morriam – e morriam muito. E nesse sentido, seria um absurdo que a afectividade por uma criança ocupasse uma parte tão central das vidas dos portugueses dos séculos XVIII ou XIX como ocupa na vida dos portugueses de hoje, em pleno século XXI.
(Parte II de VII. Continua amanhã)
A caixa de comentários do post sobre "As virtudes da incerteza" está cheio de textos interessantes, e é-me impossível trazê-los todos para o corpo central do blogue. Vários deles mereciam ser debatidos, mas não sendo fisicamente possível fazê-lo opto apenas por convidar os leitores a passarem por lá. Abro uma excepção para um comentário da Helena Araújo, que em boa hora volta a opinar neste espaço. Diz ela:
Só queria fazer um comentário sobre esse "alfa e ómega". Os filhos não são o centro da nossa vida, são o centro da vida deles, e precisam da nossa ajuda para o encontrar. A esse respeito, ler o poema de Khalil Gibran sobre os filhos - penso que todos o conhecem.
Não são nossos, foram-nos confiados e estão inteiramente dependentes de nós - e essa é uma enorme responsabilidade.
Lembro-me muitas vezes de uma pergunta numa coluna de ética de um jornal (alemão, claro...). Um pai ia buscar o filho à escola, e trazia também o filho do vizinho. Para o seu próprio filho comprou uma cadeirinha caríssima, o XXL dos cuidados de segurança, mas para o filho do vizinho comprou uma cadeirinha barata. O pai perguntava: "será que devia sentar o meu filho na cadeira barata, e o do vizinho na cadeira mais segura, já que ele está sob a minha responsabilidade?"
O filósofo que assina a coluna respondeu que pela seguranca do filho do vizinho deve responder o pai do miúdo. A ideia de dar ao próprio filho uma cadeira menos segura é absurda, porque o seu próprio filho não tem mais ninguém que zele pelos seus interesses, nomeadamente pela sua seguranca.
"Não tem mais ninguém que cuide dele." Um bebé chora a meio da noite, sabe-se lá por que motivo - e só pode contar com o pai e com a mãe. O que é que estes fazem? Sabem merecer essa responsabilidade?
Acho muito curioso o exemplo que a Helena deu das cadeirinhas, e talvez, realmente, isso explique muita coisa - nomeadamente o facto de eu não ser alemão. No exemplo que dá, eu não hesitaria duas vezes: seria o filho do vizinho a ir na melhor cadeira e o meu filho a ir na pior.
Aliás, já aconteceu uma vez ou outra, em desenrascanços e imprevistos de última hora, ter de meter mais um par de miúdos no carro e, em distâncias muito curtas, um deles ter de ir no chão. Sendo ilegal (só este facto, aliás, seria impensável para um alemão - que provavelmente telefonaria para a Comissão de Protecção de Menores), nunca deixaria que outra criança, que não um filho meu, se colocasse nessa situação.
Para mim, são questões básicas de cortesia e de convivência cristã, iguais a dar o que de melhor temos em casa a uma visita. Os meus filhos são carne da minha carne, e amo-os mais do que tudo, mas racionalmente - ou filosoficamente - a vida deles não é mais preciosa do que a vida dos filhos dos outros. Se eu assumo a responsabilidade de tomar conta deles, nem que seja por apenas cinco minutos, isso significa que racionalmente - ou filosoficamente - eu assumo a disponibilidade de agir perante eles como se fossem meus filhos. E o facto de eles não serem meus filhos apenas aprofunda essa exigência.
Não me interessa para nada que o outro miúdo tenha um pai cuja responsabilidade é tomar conta dele. Naquele momento o pai dele não está ali, e portanto sou eu que assumo essa responsabilidade. E da mesma forma que eu estou disponível para colocar o bem-estar daquela criança à frente da minha, também tenho de estar teoricamente disponível para colocar o bem-estar daquela criança à frente da do meu filho, que é carne da minha carne e meu dependente.
Talvez esteja aqui a chave da diferença em relação à tolerância à palmada e a tantas questões sobre educação. A Helena vê o filho como um outro à nossa responsabilidade, eu vejo um filho como algo meu em processo de independência. Tão meu que até tem direito a ficar com a pior cadeira - a mesma que eu tomaria para mim.
Após duas semanas de sabática, conforme prometido à excelentíssima esposa e aos leitores menos dados à ruminação existencial, eis que estou de regresso ao meu tema favorito: os escolhos da paternidade contemporânea.
Como também já aqui expliquei, escrevi um texto muito longo para o Público sobre o tema, e tendo em conta que foi a coisa mais elaborada que produzi até hoje sobre um assunto que é central a este blogue, achei que fazia sentido esse texto vir parar aqui, para poder ser comentado pelas sete pessoas que ainda têm pachorra para me ler - e, já agora, porque o digital permite uma contextualização em termos de vídeos, links e imagens que não está ao alcance do papel.
O texto original tem sete capítulos, e por isso, ao longo de sete dias, irei oferecê-los em doses homeopáticas, para não enjoar demasiado. Cá vai a primeira parte, cheia de vídeos divertidos.
PARTE I
O humorista americano Louis C.K. andou a arrastar-se durante 20 anos por bares, palcos e programas televisivos de segunda categoria sem que ninguém lhe prestasse grande atenção. Até que um dia foi pai, e num espectáculo ao vivo, em meados dos anos 2000, decidiu tratar a sua filha por “cara de cu” (“asshole”, no original) e dizer que finalmente “compreendia os pais que atiravam os seus miúdos para o lixo”.
A reacção estupefacta do público, algures entre o riso desconfortável e a falsa indignação, foi a sua estrada de Damasco. Nos números de stand-up comedy que se seguiram à epifania, Louis C.K. decidiu apostar cada vez mais na temática trauliteira-familiar, e aos poucos foi abrindo a caixa de Pandora doméstica e a retirar mini-esqueletos do seu armário, puxados à força de assholes, bitches e incontáveis fuckings dirigidos às próprias filhas.
O resultado foi este: os pais começaram a rir-se em uníssono daqueles não-ditos tão sentidos, que eles próprios imaginaram ter de esconder dentro de si e acorrentar às masmorras do superego pela vida fora, fosse por convenção social ou por vergonha pessoal. E com o passar dos anos, esse riso foi-se tornando cada vez mais solto, cada vez mais livre e cada vez mais catártico – ao ponto de Louis C.K., com o seu humor desregrado, desbragado e arriscadíssimo, ser hoje o mais bem-sucedido comediante da América.
Como é que isto aconteceu? Como é que aquele tipo ruivo, gordo, careca e semi-obscuro, de quem se mandavam links do YouTube às escondidas para os amigos pais se consolarem enquanto tentavam adormecer o filho de oito meses pela oitava vez, se tornou subitamente a nova coqueluche da comédia americana, com uma vasta colecção de nomeações para os Emmys, graças à série Louie?
A explicação, para um pai de quatro filhos como eu, é relativamente simples: Louis C.K. teve a coragem de dizer aquilo que todos nós, homens heterossexuais e pais de família, sentíamos cá no fundo mas não éramos capazes de verbalizar, mesmo andando há muito a acumular frustrações pessoais e profissionais. A saber: que o discurso sobre a paternidade está todo ele avariado e que ser pai, muitas vezes (demasiadas vezes, até), não tem piada absolutamente nenhuma.
E de repente, já não é só Louis C.K. a tirar-nos desse armário. É também, por exemplo, Adam Mansbach, graças ao sucesso planetário de um falso livro infantil chamado Vai Dormir, F*da-se (edição portuguesa da Arte Plural), protagonizado por um pai desesperado que tenta convencer o seu filho a adormecer através de versos tão subtis quanto:
O gatinho junto à gata se aninha
E o cordeiro ao pé da ovelha busca calor.
Estás aconchegado na tua caminha,
Agora, f*da-se, dorme por favor.
A Lua no céu está a aparecer
E as estrelas já brilham, meu amor.
Leio mais uma história, pode ser,
Mas, f*da-se, depois dorme, por favor.
Tanto na sua versão em papel como na versão áudio original lida por Samuel L. Jackson,
o livro foi um enorme sucesso, ainda que na sua tradução portuguesa haja demasiados asteriscos (o “fuck” passa a um púdico “f*da-se”) e a capa se desdobre em avisos cautelosos, não vá um pai narcoléptico enganar-se no destinatário da obra: “Recomendado a pais com muito sentido de humor”; “Não leia este livro aos seus filhos”.
Dispensavam-se tantos pruridos. Os pais portugueses, tal como os pais americanos e todos os pais do mundo ocidental, querem cada vez mais quebrar o discurso socialmente correcto e falsamente cor-de-rosa em relação à paternidade. Eles precisam disso, a bem do seu equilíbrio mental, e eu próprio posso testemunhá-lo, tanto em termos pessoais como profissionais: o mais bem-sucedido dos três livros para crianças que escrevi até hoje tem como título O Pai Mais Horrível do Mundo.
O pessoal está definitivamente a precisar de desabafar.
(Parte I de VII. Continua amanhã)