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Enquanto eu andava a escrever estas coisas sobre o amor e as relações de longo prazo, recebi na minha caixa do correio o anúncio do lançamento pela Tinta-da-China de mais um livro de Jan Morris, o segundo após Veneza, na colecção de Viagens dirigida pelo Carlos Vaz Marques.
A mudança de sexo de Jan Morris, em 1972, aos 46 anos, já seria só por si uma história extraordinária. Ocorrida em Marrocos, pelas mãos dos ginecologista francês Georges Burou, verdadeiro pioneiro neste tipo de intervenções numa época em que elas ainda não eram permitidas na Europa, a odisseia da sua transexualidade foi contada pelo próprio dois anos depois, numa obra chamada Conundrum. O livro começa assim:
I was three or perhaps four years old when I realized that I had been born into the wrong body, and should really be a girl. I remember the moment well, and it is the earliest memory of my life.
Apesar de esta sensação tão forte durante a mais tenra infância, Morris continuou à procura da sua identidade, ao mesmo tempo que se afirmava como jornalista, viajante e escritor. Foi ele o correspondente que acompanhou Edmund Hillary na primeira subida bem sucedida ao Evereste, em 1953.
Mas o que interessa realmente para aqui foi o que ele fez quatro anos antes disso, em 1949: o casamento com Elizabeth Tuckniss, com a qual teve cinco filhos (um deles morreu ainda na infância), antes de se decidir pelos tratamentos hormonais, que desembocariam na referida operação.
Eis o que espanta na relação de Morris com Tuckniss: ela resistiu a tudo, incluindo à mudança de sexo.
Embora ambos tenham sido obrigados a divorciarem-se nos anos 70, devido a questões legais - não existia ainda a possibilidade de casamentos entre dois homens ou duas mulheres -, elas permaneceram sempre juntas. E quando, em 2008, passaram a ser possíveis as uniões de facto em Inglaterra, Jan e Elizabeth voltaram novamente a unir-se aos olhos da lei.
Diz Elizabeth:
I made my marriage vows 59 years ago and still have them. We are back together again officially. After Jan had a sex change we had to divorce. So there we were. It did not make any difference to me. We still had our family. We just carried on.
Ora cá está este admirável "carried on", que num caso tão extremado quanto uma mudança de sexo, em que o marido a meio da vida se transforma em mulher, só é mesmo possível com uma quantidade avassaladora de amor - um amor que ultrapassa tudo, incluindo a implosão da identidade sexual.
O mundo, de facto, é um lugar estranho, que não pode ser reduzido à nossa caixinha de valores e de ideias feitas. Para os interessados, há mais detalhes sobre esta história aqui.
A Suzana Cheong deixou-me ontem esta mensagem no Facebook:
Tive uma relação de 26 anos com o meu ex-marido. Eu pensava que ía chegar aos 90 ao lado desse homem. A questão para mim é e será: qual é a receita para a durabilidade do Amor?
Eu pedi-lhe autorização para usar esta sua pergunta num futuro post (que é este), mas para não ficar demasiado frustrada com o conteúdo daquilo que pretendia escrever, adiantei-lhe logo a conclusão. A minha resposta à pergunta sobre a receita para a durabilidade do amor é... não faço patavina de ideia.
Tal como penso que já ficava sugerido no final do meu primeiro post, tenho uma resistência intuitiva a achar que existe um procedimento qualquer que assegure uma relação longa e feliz. Olhando para alguma da investigação moderna, mais depressa apostava o meu dinheiro na importância de determinados cocktails químicos para justificar o prolongamento do amor do que naquelas coisas que nos habituámos a ouvir sair de bocas mais conservadoras, que falam na importância do sacrifício, da abdicação e da dedicação ao outro.
Como é óbvio, qualquer relação feliz envolve sacrifício, abdicação e dedicação ao outro. E claro que se eu viver obcecado comigo próprio, a relação tem tudo para correr mal. O meu ponto está em achar que já existe uma espécie de pré-disposição para essa entrega. Ou seja, será que eu amo porque me sacrifico ou sacrifico-me porque amo? Eu, que já conheci algumas pessoas para quem o altruísmo era uma forma de vaidade e de compensação um bocadinho egoísta, tendo a apostar na segunda. Sacrifico-me porque amo.
É por isso que não posso acompanhar, regressando às reacções ao meu primeiro post, comentários como o de Daniel Cabanas (de 15.01.2014 às 12:41) ou de Fernando Saraiva (de 15.01.2014 às 19:00), herdeiros de uma linha mais ou menos apocalíptica que vê o mundo imerso em pecado e afastado dos verdadeiros valores cristãos.
O casamento hoje em dia não está em grande forma, mas duvido que fosse muito melhor no Portugal de há 50 ou 60 anos, numa altura em que marido e mulher, ainda que se odiassem, eram obrigados a permancer juntos, a maior parte das vezes em relações profundamente desiguais e apenas por exigência social.
Portanto, não olhem, por favor, para o meu discurso como algo de conservador, no sentido de estar a defender a pureza de um ideal que nunca existiu, ou sequer a reclamar o regresso à família tradicional. A minha única intenção foi defender as possibilidades do amor, hoje em dia tão acossado no círculo em que me movo. Se reclamo alguma coisa, é mesmo uma protecção do direito das minorias - que é aquilo em que os monogâmicos convictos se tornaram - à afirmação da sua felicidade sem um olhar de profunda desconfiança.
Mas para dar uma resposta ao anónimo que comentou a 15.01.2014 às 20:32, e que disse
Poças... ó João Miguel, com a sua narrativa de perseguição e martírio, já está a formar uma espécie de movimento escatológico.
devo dizer que não, que para já ainda não estou a pensar nisso (mas gostei muito do "narrativa de perseguição e martírio"). Fico apenas contente por reafirmar que nem todas as relações são necessariamente consumidas pelo tempo.
Os casais felizardos podem até ser apenas uns sortudos do caraças, que fizeram muito menos do que imaginam para continuarem juntos, e a quem simplesmente saiu o bingo da compatibilidade genética ou hormonal. Mas - lá está -, seja por que razão for, eles existem.
Bolas, não estava propriamente à espera de abrir a caixa de Pandora... Tanta coisa que há para dizer, e tão pouco tempo. Mas vamos a isso, e repartindo o tema por mais do que um post, porque senão iria ficar uma coisa insuportavelmente longa.
Deixem-me começar pela objecção do Pedro, que ontem animou a caixa de comentários em grande estilo e que espero que possa continuar a vir aqui muitas vezes, porque é dono de um belo sentido de humor, tem bom-senso, gosto pela provocação, é homem (eles estão deficitários por aqui) e está casado há 30 anos - tudo grandes qualidades. Tal como ele sugere (cf. comentário de 15.01.2014 às 21:26), temos mesmo de almoçar um dia destes para falar de gajas boas e futebol.
Bom, mas entre os seus numerosos comentários ao longo do dia de ontem, destaco este, embora seja onde ele fala mais a sério (sorry) e seja uma resposta à Sofia (já lá vou):
(...) nunca, em tempo algum, dei por alguém criticar a minha monogamia com a minha mulher. Somos um casal heterossexual, casado há trinta anos, sempre passámos despercebidos, sem história nenhuma. Bizarro, para mim e para toda a gente que eu conheço, seria o contrário, porque isso sempre foi visto como a normalidade, o padrão. Estou só a agora a ter conhecimento de que há casais criticados por serem monogâmicos e manterem uma relação duradoura, o que para mim é estranho.
Em contrapartida, já vi mães solteiras marginalizadas, a grande maioria dos casais homossexuais têm de esconder a sua relação, sob pena de não conseguirem arranjar emprego e, pior, de serem marginalizados pela própria família, e até há pouco tempo, casais em união de facto eram mal vistos, embora agora se esteja a tornar mais comum e aceite.
Isto tudo talvez tenha a ver com o círculo em que cada um se move. Talvez em Lisboa, num ou noutro círculo de amigos ou conhecidos, ter uma relação duradoura seja seja de facto criticado, não sei. Também, ao que ouço, num ou noutro canto de Lisboa, mais sofisticado, os casais homossexuais sejam aceites abertamente. Mas parece que estão a falar de outro planeta ;)
O Pedro dá no comentário a resposta à sua própria objecção: sim, tem a ver com o círculo em que cada um se move. E portanto, estou a falar de uma classe de jornalistas e de gente letrada (ou seja, que se acha super-esperta) onde não passa pela cabeça de ninguém discriminar um homossexual ou marginalizar uma mãe solteira, mas onde um caso como o meu - um tipo que se casou com a namorada da adolescência e assim se mantém desde 1992 - é uma absoluta raridade.
Donde, o Pedro tem toda a razão no que diz - estou a falar de um determinado grupo lisboeta, não particularmente numeroso, mas cuja filosofia de vida diria já ser dominante entre a classe média e média alta dos grandes meios urbanos, tirando aquela parte da linha de Cascais que faz muitos filhos e vai à missa. Mas apesar do seu número, estou igualmente a falar de um grupo com muita projecção em termos mediáticos.
Eu não sei onde vive o Pedro, mas eu nasci e ainda vou muitas vezes a Portalegre. É evidente que em Portalegre o retrato da cidade e das suas relações sociais está muito mais próxima daquilo que o Pedro descreve, e não daquilo que eu descrevi no post anterior. Donde, sim, depende muito do círculo em que cada um se move.
Agora, objecção ao Pedro, que isto por aqui não é só graxa: no meu caso, não estou obviamente a falar de marginalização. E mesmo o verbo "criticar" (há casais criticados por serem monogâmicos) parece-me demasiado forte para classificar o sentimento a que me referi. As pessoas não criticam. As pessoas apenas duvidam, até mais vezes por indirectas do que por directas, da possibilidade de uma relação longa, estável e genuinamente feliz. É uma espécie de totalitarismo da relatividade, de erguer o famoso "que seja infinito enquanto dure" do Vinicius a verdade universal. É isso que me encanita, e é isso que motivou o meu post.
No entanto, e referindo a Sofia, como prometi (comentário de 15.01.2014 às 17:01), eu subscrevo inteiramente o que ela escreve:
Minha gente, somos sete mil milhões, não podemos ser todos iguais, levar todos o mesmo estilo de vida. Há pessoas monogâmicas e poligâmicas, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pessoas que casam com o primeiro namorado(a), pessoas que só casam ao fim de não sei quantas relações, pessoas que nunca casam, pessoas que apenas vivem juntas sem se casarem, casamentos conservadores, casamentos abertos, pessoas que mantêm um relacionamento sem viverem juntas, enfim, o único limite é a imaginação.
O que eu acredito é que toda a gente tem o direito de viver a sua vida conforme bem entender, seja ela qual for, sem ser criticado por isso.
Mas, se subscrevo, não acho que seja uma resposta totalmente satisfatória - e aqui já estou a entrar num outro assunto - quando se trata de propor um agir, em particular quando se tem filhos. Eu não posso dizer à Carolina, ao Tomás, ao Gui ou à Rita, sobretudo quando forem adolescentes, "eh pá, faz o que te apetecer, desde que não chateies ninguém".
Sendo eu um liberal, a filosofia do "laissez faire, laissez passer" é muito acarinhada no meu coração. Só que:
1) pode ser demasiado pobre e ineficaz em matérias sentimentais ou quando as pessoas procuram um sentido para as suas vidas;
2) no caso em apreço trata-se de haver uma camada de pessoas muito leitoras e muito pensadoras que deram uma volta de 180 graus e deixaram de admitir a existência do "e foram felizes para sempre".
Eu digo apenas sobre o "foram felizes para sempre": são poucos, mas há. Porque é que há e porque é que são poucos? Esse é o tema do post seguinte.
Vou dizer-vos uma coisa que me irrita tanto quanto as pessoas guardarem mesa no McDonald's sem estarem a comer ou não se saberem encostar à direita nas escadas do metro: irrita-me profundamente quem acha que o amor, todo o amor, qualquer amor, envolve invariavelmente, no longo prazo, uma dose cavalar de abdicação dos impulsos vitais do ser humano e de acomodação ao ramerrame de uma relação mais parada do que as águas de uma barragem onde já não chove há meses.
Tens uma relação estável há 20 anos? Então é porque as coisas verdadeiramente boas da vida não te interessam. Casaste-te com a tua primeira namorada? És um analfabeto sentimental, que nunca andou metido na divertidíssima montanha russa das paixões. Subitamente, parece que a monogamia é vista como uma falha: permaneces numa relação apenas porque nunca viste melhor; a fidelidade torna-se o refúgio dos que receiam pôr um pé fora do ninho. É como se o amor andasse de mãos dadas com uma espécie de cobardia existencial.
No dias de hoje, um monogâmico ou é um infeliz ou é um coninhas. E se garantir a pés juntos que não é uma coisa nem outra, é um mentiroso.
Chiça, como esta maneira de pensar me irrita! É que eu estou sempre a levar com ela em almoços e jantares, ainda que por indirectas. E sabem porquê? Porque na porra deste mundo em que todos nós nos adoramos e nos consideramos o centro do universo, já que no domínio do indivíduo se fez uma revolução copernicana mas ao contrário, aqueles que fogem à norma só podem ter uma qualquer falha estrutural. Um casamento só pode ser uma de duas coisas: feliz e instável ou estável e infeliz. Estável e feliz? Isso não. É uma impossibilidade lógica, segundo o Teorema das Paixões Modernas.
Eh pá, eu admito perfeitamente que duas pessoas amarem-se profundamente durante uma vida inteira é uma raridade, assim como descobrir pepitas de ouro numa ribeira ao pé de casa ou um poço de petróleo no quintal. Mas bolas: é possível. Difícil, muito raro, mas possível. E portanto, enquanto o amor de longo prazo for uma genuína ambição humana - porque continuar a ser, já que praticamente ninguém abdica, nalguma altura da sua vida, de procurar o Mr. ou a Mrs. Right -, as pessoas que o conseguem praticar não devem ser olhadas como freaks ou nerds, mas como excepções, raridades, epifenómenos que devem ser olhados com carinho e atenção.
Ou seja, a atitude das pessoas deveria ser exactamente a oposta à habitual. Um casal monogâmico que se assegura feliz há trinta anos é um objecto digno de admiração - e não de dúvida imediata e permanente quanto à sinceridade dos seus sentimentos. Abaixo este totalitarismo relativista que quer enfiar toda a gente no mesmo saco! Até parece que a única forma que muitas pessoas têm para justificar as vezes em que as suas relações correram mal é garantindo a impossibilidade das relações dos outros correrem bem.
Atenção: não se trata aqui de defender o quão espantosos, únicos, meritórios e dignos de admiração são os monogâmicos de longo prazo. Mais: admito perfeitamente que eles não tenham mérito quase nenhum. Talvez seja mera sorte. Talvez seja uma qualquer compatibilidade hormonal. Talvez esteja tudo nos genes, e não num qualquer caminho sentimental digno de aplauso.
Mas, por favor, estudem essas pessoas - não duvidem delas. Ponham-lhe o sangue em pipetas, encham as suas caixas toráxicas de fios, scaneiem-lhes o cérebro. Sim, um amor que dura décadas é uma raridade. Sim, pessoas genuinamente apaixonadas dos 17 aos 97 são para aí 0,001% da população mundial. Mas existem. Existem. EXISTEM, PORRA!
E pronto, era só isto.
O Daily Mail escreveu uma história sobre um casal apaixonado em que ela, ao contrário do que é hábito, morreu primeiro do que ele. Ele chama-se Winston, ela chamava-se Janet. Esta é uma foto de ambos na década de 60:
Janet faleceu há 17 anos, com problemas cardíacos, com apenas 50 anos, e Winston, para homenagear a sua mulher, decidiu plantar um pequeno bosque de carvalhos. As árvores cresceram, e entretanto o bosque ganhou esta forma:
Nem sequer a orientação do coração foi deixada ao acaso: ele aponta para a direcção da casa onde Janet nasceu. Isto, sim, é amor.
A citação que referi no post anterior, referente ao novo livro de Gonçalo M. Tavares, é uma nota que acompanha uma sequência de texto onde o autor reflecte sobre amor, identidade e aquilo a que chama "unidade no sofrimento":
Este dói-me a dor do outro é realmente o ponto de união mais forte entre dois organismos e, nesse sentido, o ponto de dissolução da identidade.
Escreveu Sylvia Plath:
"O teu corpo
Magoa-me como o mundo magoa Deus."
(...)
A dor, de facto, como o mais relevante.
O amor será assim a disposição para ser, se necessário, ladrão da dor do outro.
Esta passagem, descoberta ao acaso, numa abertura aleatória do livro (coisa que Gonçalo M. Tavares aconselha a fazer na leitura de Atlas do Corpo e da Imaginação), é muito importante para mim, pela razão porque tantos livros são importantes para nós: não porque nos ensinem coisas novas, mas porque nos confirmam o que já sabemos.
E neste caso em particular, a minha identificação resume-se a uma velha frase: "come what may". Quando eu e a Teresa nos casámos, em Abril de 2002, o filme Moulin Rouge!, de Baz Luhrmann, estava no pico da sua popularidade. Nós já tínhamos gostado muito de Romeu+Julieta, e o musical feérico, excessivo, deslumbrado e assolapado que era Moulin Rouge!, história desvairada de amour fou entre um jovem sonhador e uma cortesã na Paris de 1900, não poderia senão tocar profundamente dois jovens apaixonados, como eu e a soon-to-be-excelentíssima esposa.
E então decidimos não só que as nossas alianças de casamento haveriam de ser parecidas com aquelas que Claire Danes e Leonardo DiCaprio trocam em Romeu+Julieta, mas também que elas teriam gravado no seu interior, em vez de nomes ou de datas, simplesmente a expressão "come what may", uma das canções centrais de Moulin Rouge!.
É bonito, portanto, ver confirmada na passagem de Gonçalo M. Tavares aquilo que dois jovens, já não tão imberbes assim, intuíram em 2002: que o segredo do amor não está na disponibilidade para gerir a alegria, actividade ao alcance de qualquer um, mas na disponibilidade para gerir, sempre que necessário, a dor e o sofrimento. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até ao fim das nossas vidas. Isto não são juras de felicidade eterna - são juras de perseverança eterna.
Come what may. Venha o que vier.
Abro ao acaso (página 141) o novo livro de Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação, e o meu olhar, a expensas próprias, dirige-se para a nota de rodapé 291. É uma frase retirada do Livro do Amigo e do Amado, de Ramon Llull (poeta, filósofo e missionário catalão, que viveu nos séculos XIII e XIV, e que por ser tão antigo e tão beato teve direito ao aportuguesamento do nome, Raimundo Lúlio):
- Diz-me amigo - disse o amado - terás paciência se eu duplicar os teus sofrimentos?
- Sim, desde que me dupliques os teus amores.
E é isto. Há dias que se ganham assim, apenas com uma breve citação, logo pela manhã.
O Público deu este domingo a notícia de que se registou um decréscimo do número de divórcios de 2011 para 2012 e um aumento do tempo que as pessoas ficam casadas. No caso da duração dos casamentos, estamos a falar de dados entre 2007 e 2012, e portanto de uma tendência, que é esta: a duração média de um casamento à data do divórcio passou de 14,3 para 15,7 anos.
É curiosa a forma como a notícia foi enquadrada pelo jornal e pela peça televisiva a que assisti à noite: o tempo de casamento aumenta pela simples razão de que as pessoas não têm dinheiro para se divorciar. Cito a notícia do Público:
A experiência de Ricardo Candeias, advogado que coordena o sitedivorcios.net, diz-lhe que o número de pedidos de divórcio desce até quando o país começa a discutir o Orçamento do Estado. Parece-lhe que os cônjuges desavindos lêem ou ouvem falar nas medidas previstas, começam a fazer as contas, ficam apreensivos, controlam o impulso para fazer as malas.
É certamente uma maneira de ver as coisas, e é bem capaz de ser a mais provável. Mas eu, talvez por ser optimista e ligeiramente romântico, gostaria que tivesse sido pelo menos colocada uma outra hipótese - a de que a crise nos obriga a procurar refúgio junto do núcleo fundamental das nossas vidas e a valorizar aquilo que temos de mais importante. Em vez de se supor imediatamente que as pessoas só não se divorciam porque não têm dinheiro, que alguém admita, se faz favor, a hipótese de a cotação do amor estar a subir enquanto o rating do país continua a descer.
É que esta é uma hipótese que sempre senti como muito plausível em alturas de crise profissional e dificuldades económicas. Nos momentos mais complicados das nossas vidas não é nos corredores dos centros comerciais que procuramos conforto (enfim, há quem procure, mas não me parece um sintoma particularmente saudável), mas sim junto daqueles que nos estão mais próximos. Não estou aqui a defender - atenção - que o dinheiro não é importante nas nossas vidas. Claro que faz imensa falta, e se não fizesse o Mali era o país mais feliz do mundo. Mas também é verdade que quando estamos demasiado entretidos a estoirá-lo tendemos a esquecer que a felicidade, de facto, não se compra - basta olhar para Hollywood, para o buraco na cabeça de Kurt Cobain ou para Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho.
O discurso da crise como uma vantagem para encontramos o essencial das nossas vidas é bastante perigoso, na medida em que somos facilmente caricaturados e acusados de situacionistas. Género: "Eh pá, então se calhar estes cortes todos nos salários até são bons!" Claro que não são bons. Claro que são maus. Claro que há pessoas que estão a sofrer muito e que menos dinheiro nos nossos bolsos significa menos dinheiro para fazer o que queremos. Ou seja, a crise tira-nos liberdade - e para um liberal, como eu, isso nunca pode ser considerado positivo per si.
Mas a crise também abana as nossas vidas. Mexe connosco. Obriga-nos a mudar o foco. E, nesse sentido, faz de nós pessoas mais atentas. Quando o mundo é virado do avesso, há desde logo o terrível perigo de partirmos o pescoço. Mas quando estamos de pernas para o ar também temos oportunidade para olhar para as coisas de uma outra maneira. Sendo péssimo para a carteira, pode sempre ser uma forma de darmos mais valor àquilo que o dinheiro não pode comprar - e que é, sem falsos moralismos, realmente o que de mais precioso temos na vida.
Isto que vocês podem ver na imagem
é (além da minha mão) uma pulseirinha bastante ridícula que me foi oferecida pelo meu filho Tomás. Ele passou uma fase, juntamente com a Carolina, dada ao artesanato, que metia muitos fios de lã que se entrecruzavam, e tal. Às vezes ainda passam horas naquilo, fio para cá, fio para lá.
A Carolina faz isso bastante bem e as pulseiras dela parecem pulseiras. O Tomás faz isso muito mal e as pulseiras dele não se parecem com nada. Mas como, em compensação, o Tomás é bastante mais generoso do que a Carolina, e está sempre a tentar agradar aos pais (um bonito hábito), certo dia ele apareceu-me com a pulseirinha que vêem em anexo, e que basicamente consiste em quatro fios entrelaçados sem graça nenhuma. "É uma pulseira para ti, papá." E o papá lá teve de fazer um sorriso amarelo de "oh, muito obrigado, Tomás, que querido", ao mesmo tempo que assistia à pulseira a ser presa ao seu pulso com um terrível nó cego.
Felizmente, poucos dias depois um dos quatro fios cedeu e eu animei: "Fixe, isto vai partir-se depressa." Qual quê. Desde então não houve um único pedaço que tenha cedido, e eu sou obrigado desde há três ou quatro meses a andar com um fio laranja, um fio branco e um fio azul pendurados do pulso, como se fosse um adolescente de 16 anos. Eu sempre gozei com aquelas pulseirinhas que os turistas trazem quando regressam de Salvador da Bahia, e que têm de aguardar que se esfarelem e caiam de podres porque cortá-las dá azar - e, de repente, eis que me vejo na mesma situação, sem sequer ter tido direito à viagem ao Brasil.
Há pessoas atinadas que me dizem, diante das minhas queixas pulseirísticas: "E que tal cortares isso com uma tesoura?" Ao que eu respondo: "Mas assim o Tomás ficava triste." Ao que me replicam: "Duuuuhh... o Tomás não tinha de saber. Dizes-lhe que a pulseira caiu e pronto."
Só que este "pronto" não é nada pronto para mim. É que eu, por princípio, não minto. E muito menos aos meus filhos. Não há cá mentirinhas piedosas, caridosas, fogosas, melindrosas ou gasosas. Eu não lhes minto, ponto. Certamente que não lhes digo tudo, com certeza que omito muito e obviamente que guardo numerosas opiniões para mim, mas dizer que uma pulseira caiu quando fui eu que a cortei não entra no meu enquadramento mental nem nos valores que lhes quero passar.
E assim, cá continuo a arrastar esta pulseira, como uma grilheta. É o meu pequeno sacrifício pelo amor à verdade e ao meu filho Tomás.