Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Vamos então às prometidas respostas a alguns leitores, após os meus dois posts sobre a educação para o desprazer e a paternidade recalcada. O problema deste blogue ter excelentes leitores - como diria um treinador de futebol, são bons problemas - é que de vez em quando há gente esperta que levanta o dedo para apontar contradições no nosso discurso. Portanto, comecemos com o caso do Anónimo de 26.04.2014 às 18:50, que escreve o seguinte:
A objecção é mais do que justa, e é absolutamente verdade que "ainda é mais tabu falar de como ser mãe também tem os seus dias maus". Eu sou um pai queixinhas de barriga cheia, porque vivendo ainda nós numa sociedade muito machista, um pai cansar-se de ser pai até é "giro", no sentido em que, pelo menos, está a falar da família, e se está a falar da família é porque se preocupa com ela. Não há maneira de uma mulher se escapar socialmente com este argumento tão básico. Nós, homens, sim.
É por isso, aliás, que eu me esforço tantas vezes por explicar que quando digo que acho que sou um pai com inúmeras limitações e não sou exemplo para ninguém não estou em modo fishing for compliments - é exactamente isso que sou e que penso de mim próprio. Não imaginam a quantidade de gente que insiste em me ver com os tais óculos cor-de-rosa mesmo quando digo coisas como "não acho graça nenhuma a bebés".
Mal digo isto, a tendência maternal do público feminino é acrescentar logo de seguida: "Ah, ele é tão fofinho [sou fofinho só porque estou a falar da família, note-se], é óbvio que está a brincar". E eu: "Não, não estou a brincar, caraças! Não gosto mesmo!" Gosto muito de crianças mas não acho piada nenhuma a bebés. Claro que os trato bem, faço cutchi-cutchi, mudo as fraldes, dou biberom, brinco com eles e gosto (imenso) de os ver a dormir, mas na lista de coisas com piada os bebés ocupam, literalmente, o lugar número 56 393 764.
Dito isto - e utilizando a clássica estrutura retórica de dar razão aos argumentos do interlocutor para depois não sairmos do lugar onde estávamos -, eu, ainda assim, mantenho-me fiel ao que disse: nunca vi a Teresa cansada do seu papel de mãe. O que é muito, muito diferente de nunca ter visto a Teresa cansada, até porque seria difícil, já que diariamente não vejo eu outra coisa.
Uma coisa é estar cansado. Outra coisa é estar cansado de se ser pai ou de se ser mãe. Eu estou frequentemente não só cansado como cansado de ser pai (acumulo, portanto, já que estão longe de ser actividades incompatíveis). A Teresa, não. Ela está frequentemente cansada, mas nunca de ser mãe. E se ela por acaso vier para aqui desmentir-me, e disser que sim, que de vez em quando acontece, eu garanto que só se for um cansaço espitirual, porque na prática não se vê nada.
Claro que ela também perde de vez em quando a paciência com os miúdos, mas não é a isso que eu chamo "cansaço de ser mãe/pai". Há vários níveis nisto. Quando eu coloquei neste blogue "A Canção Desnaturada" do Chico Buarque foi para fazer implodir qualquer réstia de politicamente correcto na relação pai/filho. Este tema - que está incluído numa opereta, e que tem, portanto, uma justificação dramática: trata-se de uma mulher jovem, mas adulta, que desobedece a um pai autoritário - não é sobre o cansaço de ser pai. É muito além disso - é raiva de ser pai. Isso eu nunca senti, graças a Deus, e penso que só sentirá quem concluir (um dia, mais tarde) que um filho cresceu para ser tudo aquilo que nós queríamos que ele não fosse.
Mas cansaço de ser pai, isso sim, sinto muitas vezes, daí a música me tocar tanto, e de ressoarem dentro de mim versos tão poderosos quanto:
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para viver a tempo
De poder (...)
Recuperar as noites (...)
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Ui, quantas vezes senti isto em noites de desespero, naquele pára-arranca do sono quando os miúdos são bebés e não dormem de forma nenhuma? E o desejo de "só cuidar de mim"? Bem, com quatro filhos isso acontece-me para aí dia sim, dia não.
A excelentíssima esposa, contudo, é muito diferente de mim, e, sobretudo, muito mais generosa. Ela tem os filhos agarrados à pele, e acho que essa é uma das muitas razões pelas quais eu a admiro. E também pelas quais eu me irrito tanto com ela quando desespero por um fim-de-semana a sós, umas mini-férias a dois, três ou quatro dias de namoro ou de simples solidão, e esses dias tardam porque ela não quer sobrecarregar a família, porque há actividades extra-curriculares, por isto ou por aquilo.
Acho que a maior parte das mulheres são mais como eu do que como a Teresa; mas se eu acho efectivamente que ela é assim não lhe vou fazer aquilo que critico nos outros e inventar-lhe estados de espírito que ela não tem, para estarem conformes ao papel socialmente (ou até política-incorrectamente) aprovado.
Não é que a excelentíssima esposa tenha uma visão cor-de-rosa da maternidade. Mas ela transporta consigo os genes das antigas matriarcas, e eu sei que continuará a ser assim quando vierem os netos e, com sorte, os bisnetos, casa cheia aos fins-de-semana e eu a mandar vir com toda a gente por não conseguir ler em paz.
Portanto, e em resumo, a "incongruência" de que o/a anónimo/a me acusa é a incongruência própria de eu ser profundamente diferente da minha excelentíssima esposa neste aspecto das nossas vidas. A Teresa, para regressar ao título do post, sabe lidar de forma muito mais capaz do que eu com o desprazer, é uma especialidade na qual se doutorou há muitos anos - e, portanto, consegue assimilá-lo de forma a que o desprazer não seja assim tão desprazenteiro. Eu não. Eu preciso mesmo de me educar para ele, preparar-me para ele, aprender com ele.
Faço-me entender ou este post já saltou a barreira de senilidade psicanalítica?