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O Dr. Mário Cordeiro, que é o pediatra dos nossos filhos, aconselhou-me a gastar vela com melhor defunto do que Carlos González nos comentários ao meu post de ontem. Escreveu ele:
Não perca tempo... felizmente há a liberdade de se dizer o que se pensa, incluindo bacoradas. Ainda bem... serve para ver que, mesmo com os nossos erros, inconsistências e incoerências, ainda somos bons pais porque estabelecemos regras, limites, mimo e afecto, prémios e castigos proporcionados, justos e adequados. A entrevista é, toda ela, um show-off de "anti-sistema", mas não há uma referência científica que ele invoque para suportar o que tão peremptoriamente afirma. Deve pensar que é um "Marinho e Pinto da pediatria"... Abraços e gaste as suas energias com guerras mais dignas...
Tendo em conta o respeito e a admiração que o Dr. Mário me merece, e o saudável hábito que ele tem de não virar as costas às polémicas, talvez convenha então começar por explicar porque é que esta guerra contra a visão cutchi-cutchi da paternidade me parece tão importante. No próximo domingo - passe a publicidade - vai sair na revista do Público um longuíssimo texto meu sobre este tema, onde tento sistematizar de forma mais estruturada muitas dessas preocupações. Para os interessados, é ler, e depois, se quiserem, regressar aqui para mandar vir comigo.
Parte desse texto do Público está apoiado em dois livros americanos que me parecem muito importantes para discutir o tema - infelizmente, nenhum deles está traduzido em Portugal. Um chama-se Raising America, é da autoria de Ann Hulbert, e acompanha mais de 100 anos de conselhos sobre como educar as crianças. O outro é muito recente e foi um merecidíssimo sucesso nos Estados Unidos: chama-se All Joy and No Fun, é da autoria de Jennifer Senior, e tem a vantagem de mudar a direcção do holofote - em vez de averiguar, como habitualmente, o impacto que os pais têm nos filhos, foi analisar o impacto que os filhos têm nos pais.
O primeiro livro demonstra que a velha questão do "mais amor e compreensão" versus "mais rigor e disciplina" é um tema que já tem barbas e o debate mais recorrente no campo da educação infantil - sem que haja qualquer resposta definitiva para ele. A minha amiga Inês Castel-Branco, que vive e cria os seus filhos em Barcelona, deixou um resumo disso mesmo no meu Facebook, mas em versão catalã:
Cá em Barcelona o tema está muito polarizado entre os que são a favor do pediatra Carlos González e os que são a favor do Doctor Estivill (ambos de Barcelona), e os dois grupos odeiam-se a matar. Os primeiros defendem a educação livre (há cada vez mais escolas "livres" onde não se obriga os miúdos a fazer nada), dormir juntos na cama, amamentação até aos 4 ou 5 anos, etc.; os do doutor Estivill são os que "ensinam" os bebés a dormir à custa de deixá-los chorar, os que marcam os limites... Os extremos nunca são bons, e possivelmente as duas linhas podem dar-nos que pensar!
Ora nem mais.
Já o segundo livro que citei, "All Joy and No Fun", demonstra algo que me parece ainda mais importante, até porque me toca directamente: estamos a criar uma geração de pais esmagados pelo peso da responsabilidade de criar os seus filhos de perfeitíssima maneira. Daí o magnífico título de Jennifer Senior, que numa tradução atabalhoada podemos frasear assim: "Só felicidade e nenhum divertimento." O livro de Senior tem como subtítulo "o paradoxo da paternidade moderna", e o paradoxo é este: todos adoramos os nossos filhos, mas uma altíssima percentagem de nós tem muito pouco prazer em ser pai (ou mãe).
É por isso que morder em González me parece tão importante: à boleia do discurso fofinho sobre a paternidade, do "nunca castigar", do "não comam salada se não quiserem", do "são crianças e é naturalíssimo que se portem mal", do "eles têm tempo para ser grandes", aquilo que se está a fazer é uma dupla asneira:
1) criar crianças que serão socializadas não pelos seus pais mas, muito mais à bruta, nos recintos das escolas e pelos professores que o conseguirem fazer, empurrando para a sociedade responsabilidades educativas que são da família, em primeiro lugar (e quem nunca levou, numa escola, com os resultados espectaculares dos paizinhos super-tolerantes, na forma de crianças intratáveis, que levante a mão);
2) produzir pais falsamente zen, para os quais tudo deveria ser paz e amor - só que tudo "paz e amor" é um projecto de vida impraticável para 99% das pessoas; todos nós perdemos a paciência, achamos obviamente que tem de haver regras, somos incapazes de ver a mesma colher de sopa ir 27 vezes para o chão sem castigar um puto; e se levarmos a sério o que o Dr. González diz ainda nos vamos culpabilizar mais do que já o fazemos nos dias de hoje por sermos incapazes de seguir a linha hippie da pediatria.
Acho graça a que alguns leitores tenham dito, na caixa de comentários, que mal leram a entrevista de Carlos González pensaram logo em mim e que eu não iria resistir a responder. É porque me conhecem bastante bem - e tomo isso como um elogio. Claro que, como este tema me irrita bastante, já gastei demasiados caracteres só nos preliminares. A análise da entrevista do fofinho González vai ter de ficar para depois.
De qualquer forma, antes que a Brigada Anti-Palmada me venha acusar de eu ser um bárbaro que tiro imenso prazer do espancamento dos meus filhos, deixem-me despedir recordando uma frase que resume a minha posição sobre este tema, da qual já falei várias vezes, mas que não me canso de repetir: não há ingrediente secreto. Ou seja, é impossível, na minha modesta opinião, reduzir a educação de uma criança a uma fórmula fechada - ela tem de ser adequada às características próprias de cada filho. A algumas crianças não vale a pena sequer bater com uma flor. Outras precisam de uma palmada no rabo na hora certa.
Mais disto em breve.