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Agarrem-me senão eu mordo-o! #3

por João Miguel Tavares, em 28.05.14

Vamos então à entrevista do doutor Carlos González, mas não sem antes fazer um aviso prévio: eu nunca li nenhum dos seus livros, e é possível que nunca venha a ler, até porque o mais famoso tem nome de bolero mexicano - Bésame Mucho -, inclusivamente em Portugal. Confesso que tenho alguns preconceitos acerca de livros de pediatras com títulos de boleros mexicanos. Por isso, limito-me a comentar o que está escrito na entrevista, que eu consigo perceber que seja uma simplificação do seu sofisticadíssimo pensamento.

 

Aliás, para não acharem que isto é só má-vontade, devo dizer que concordo com algumas coisas do que ali é dito. Por exemplo (palavras dele a itálico negro, palavras minhas a redondo):

 

Defendo que devemos tratar os nossos filhos com carinho e respeito. O que se passa é que alguns pensam que podem amar os filhos sem ter de lhes pegar ao colo ou consolá-los quando choram.

 

Ainda existe alguém em 2014 que não pega filhos ao colo ou recusa consolá-los quando choram? Pelos vistos, sim. E aí, não há como discordar de González: sim, por favor, peguem nas crianças ao colo e mimem-nas, ok? Isso é importante.

 

As crianças pequenas despertam várias vezes durante a noite, quase a cada hora e meia ou duas horas, sobretudo entre os quatro meses e os dois ou três anos. Para os pais é muito incómodo terem de se levantar três ou cinco vezes por noite para cuidar do filho. Por isso, muitas famílias descobrem que é mais cómodo dormirem todos juntos.

 

Sim, também me acontece muito: há alturas que estamos tão cansados que lá temos de aturar o puto na nossa cama. E também há alturas em que um dos miúdos tem um pesadelo tão assustador que eu tenho de ir dormir para a cama dele. Mas isso são excepções. Excepções. Acontece. Mas, quando falamos da cama do casal, o filho ir lá parar deve ser, em primeiro lugar, uma resposta à necessidade do casal, e não da criança. É um "anda para aqui que eu estou morto", nunca um "anda para aqui que isto é tão fofinho e eu gosto muito de agarrar o meu novo peluche de carne e osso". As crianças não são peluches nem Nenucos. Têm vida própria.

 

E isto até por questões técnicas e por causa de actividades frutuosas, que certamente o senhor González achará desinteressantes, como, por exemplo, pinar. Pinar, estão a ver? Truca-truca? Aí está uma coisa que, apesar de estar casado há muitos anos, me continua a divertir, e de vez em quando apetece. E apetecendo, se seguirmos os conselhos do Dr. González, de repente olhamos para o lado e está um a mais na cama. É verdade que podemos enveredar por uma abordagem kinky, do género, "querida, vamos tentar fazer isto sem que ele acorde", o que até pode ser um desafio interessante. Mas, por amor de Deus, a regra tem de ser "putos fora da cama". Sempre. Quanto mais cedo, melhor. Eles que vão à vida deles. Eu não existo para os servir. Repetir 100 vezes: "O sentido da minha vida não é servir os meus filhos." Mais: comecem a dormir com eles todas as noites e depois perguntem-se porque é que o vosso casamento já viu melhores dias.

 

Os vegetais são muito saudáveis, mas o importante não é quantos vegetais comemos aos nove meses, mas sim durante toda a vida. Obrigar um bebé a comer muita verdura, fazer com que este a odeie e, de seguida, deixar de tentar é um desastre. Se o deixarmos estar, comerá pouco na infância e, uma vez crescido, comerá mais.

 

Eh pá, esta vou deixar para a excelentíssima esposa responder, ok? Das duas, uma: ou o González tem razão e a minha mulher anda a enganar-me há 10 anos, ou então ele está a querer implodir tudo o que é aconselhado por respeitáveis nutricionistas. Mais: a minha experiência pessoal desmente-o completamente. Os meus filhos não gostam de todos os vegetais, mas cada um deles gosta muito de certos vegetais. E isso é simplesmente porque se habituaram a comê-los. Se o menino não gosta não come, é? A sério: o homem frequenta mesmo crianças à hora das refeições? Os putos, como princípio de vida, não gostam de nada do que é novo. Têm zero curiosidade nesse aspecto. Temos quase sempre de os obrigar a provar. E depois provam e - voilà - muitas vezes passam a gostar.

 

O que fazemos com os maridos ou esposas que são desobedientes ou manipuladores? Com os namorados, amigos, parentes ou empregados? Será que os adultos nunca fazem nada de mal? Claro que sim, mas não os punimos (a não ser que cometam um delito que apenas os juízes podem punir). Eu não castigo a minha esposa ou os meus amigos, vizinhos, taxistas… Como médico não castigo os meus pacientes nem a minha enfermeira. Porquê castigar apenas os meus filhos? Que terão feito eles de tão terrível para merecerem um castigo? É absurdo.

 

OK, aqui entramos na parte dos castigos, mas antes de discutir os castigos propriamente ditos (se calhar é melhor deixar isso para outro post, que este também já vai longo), quero discutir a comparação, que é daquelas que me deixa doido: AS CRIANÇAS NÃO SÃO ADULTOS!!! Por isso é que umas se chamam crianças e as outras se chamam adultos. Por isso é que nós somos legalmente obrigados a cuidar dos nossos filhos, mas não somos legalmente obrigados a cuidar dos nossos pais. Por isso é que eles não podem votar, nem casar, nem conduzir um carro - e nós podemos. Que raio de comparação é esta?

 

Como é que este grande defensor do poder da "intuição", do "não é preciso ler livros para aprender a ser pai" (concordo com ambas as afirmações), depois dinamita com estas comparações absurdas aquilo que a mais pura intuição nos diz - que existe uma caminhada de 16, 18, 20, 22 anos (depende muita das personalidades) até o homo sapiens se tornar um adulto independente, capaz de cuidar da sua própria vida? E até chegar a esse ponto, ele está ao nosso cuidado. A sua formação é responsabilidade nossa. E educar e socializar é um processo que implica retirar a criancinha do seu estado puro e selvagem, de forma a que aprenda a segurar nos talheres e a cumprimentar os vizinhos. 

 

Aliás, até entre adultos a sua comparação é estúpida. Porque, de facto, nas relações profissionais, existe uma hierarquia que manda, pune e castiga. Portanto, nem entre adultos a sua afirmação é verdadeira. Sempre que há hierarquia há poder e violência (é ler o Foucault), e a não ser que o doutor González queira também acabar com a hierarquia entre pais e filhos, eu francamente não sei como se educa sem se castigar. Admito perfeitamente que não se bata. Mas não castigar de maneira nenhuma? Só pode estar a gozar comigo.

 

"Ah, espera", dizem os seus admiradores: ele não diz que não devemos impor limites. Diz apenas que não devemos castigar. Peço então encarecidamente a quem leu o livro com nome de bolero mexicano que me explique como é que isso se faz: como é que se impõem limites sem recorrer ao castigo? Agradeço por antecipação. E a prosa continua amanhã, que o González é um poço sem fundo.

 

 O beatífico Carlos González, numa foto onde já parece ter transposto as portas do Paraíso

publicado às 21:34


32 comentários

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De Simplesmente Ana a 29.05.2014 às 11:00

Em relação à questão de obrigar a comer vegetais (ou outra coisa qualquer) a verdade é que não há muito a fazer. O pediatra não diz para não oferecer, mas para não obrigar. A minha come e, amiúde, vou-lhe apresentando novas comidas (para além dos vegetais). A questão é que não a posso obrigar a comer o que não gosta no momento. Como é que se faz? Com um funil? Com chantagem? É esperar que passe a mania, não?
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De Conceição M. a 29.05.2014 às 12:50

A Ana toca num ponto que para mim é particularmente sensível: a comida.
Eu tenho "traumas" com o obrigarem-me a comer coisas de que eu não gostava. Desde a minha mãe que achava que eu tinha de comer de tudo e às vezes as horas da refeição eram um filme de terror (até que, mais crescidita, percebi que, se fizesse "ronha" a minha mãe deixava-me sózinha a comer e eu ia deitar a comida fora..). No colégio, todas as 2ª feiras o almoço era peixe cozido com batata e cenoura - eu odiava cenoura! Conforme a pessoa que estava a vigiar os almoços, uma não me obrigava a comer a cenoura, a outra - com o argumento, se eu não vomitava era porque gostava - obrigava-me a comer a cenoura toda. Resultado a curto prazo, aos domingos eu tinha sempre dores de barriga e uma ansiedade enorme a pensar no almoço do dia seguinte e em qual das 2 estaria de serviço ao almoço; resultado a longo prazo, ainda hoje não como cenoura inteira - passo-a na sopa, ou para fazer arroz, ou ralada em saladas...
Ainda hoje detesto que tentem forçar-me a comer coisas que não gosto ou que insistam em que eu prove coisas que, à partida, não me despertam interesse nenhum em provar.
Em consequência disso, nunca fui capaz de forçar muito os meus filhos nas questões alimentares - ainda hoje não o faço. O meu filho por exemplo nunca gostou de vegetais/legumes cozidos inteiros - lá em casa há sempre sopa rica em vegetais/legumes no puré; o arroz de cenoura leva cebola e cenoura desfeitas; a carne estufada tem o molho enriquecido com legumes e depois vai de varinha mágica...
A minha filha, desde bébé, que resistiu à fruta - em geral todos os bébés gostam de fruta porque é docinha, a minha vomitava tudo e, pior, tive tanta dificuldade em que ela começasse a comer a papa e, quando introduzi a fruta, deixou de comer tudo quanto viesse em colher. Foi um verdadeiro castigo, porque ela parecia adivinhar o que era fruta e cuspia tudo - durante muito tempo, a unica fruta que comia era a papa de maçã que vinha nuns boiões (eu que nunca fui adepta de boiões!). E dizia o pediatra: coloque-lhe a fruta normal num boião que ela não dá por nada. Ai não que não dava! Mais tarde, com a fruta já inteira, lá ia comendo alguma, pouca e nem era de todas as variedades. Quando foi para o infantário foi outro filme. Começou a não querer ir, a chorar todas as manhãs... até que descobri que a obrigavam a comer fruta com casca a meio da manhã. Fui pedir para não a obrigarem - tive de ouvir ou sermão em como estava a educar mal a minha filha, que a fruta é necessária... Mas eu tenho um acordo com eles (o mais velho se se puder escapar à fruta, encantado da vida...) - lá em casa, em todas as refeições, têm de comer fruta - nem que seja, como ela faz, 1 morango ou 3 cerejas...

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