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Agarrem-me senão eu mordo-o! #4

por João Miguel Tavares, em 29.05.14

Vamos então ver se é hoje que consigo terminar a análise hermenêutica da entrevista do pediatra espanhol Carlos González ao Observador (posts anteriores aqui, aqui e aqui). Há alguns comentários dos leitores que merecem, também eles, comentário, mas deixo isso para mais tarde. Voltemos ao texto original - as citações da entrevista do senhor estão a itálico bold, os meus comentários a redondo normal. 

 

O autocontrolo ensina-se com o exemplo. Eu não bato nos meus filhos porque tenho disciplina, autocontrolo. Não digo ao meu filho para se calar porque não me deixa ouvir televisão, ao invés desligo o televisor para ouvi-lo melhor. Isso é a disciplina.

 

Ora aqui está um bom exemplo daquilo a que eu chamo a paternidade cutchi-cutchi, e que consiste em fingir que estamos constantemente num filme de Hollywood, onde há sempre lugar para os carros estacionarem e tempo para uma conversa bonita e profunda.

 

Então não é verdade que entre ouvir a televisão ou ouvir um filho, devemos desligar a televisão e escutar o filho? É, sim senhor. E posso desde já garantir que se, daqui a uns anos, a minha filha me disser à hora da refeição "papá, estou grávida", a minha reacção não vai ser "já me contas, querida, agora deixa-me só ouvir o que o Marcelo está a dizer".

 

Essa parte está prometida. Mas... e se, por mero acaso, o miúdo só estiver a berrar porque quer que lhe cortemos o bife? Ou que lhe passemos a água? Ou que não gosta de cenouras, argumentando que a literatura do doutor Carlos González é clara em dizer que ele não deve ser obrigado a comer o que não gosta? E se o pai, por mero acaso, for jornalista? E precisar mesmo de ouvir o Marcelo naquele momento porque a seguir tem de ir escrever um texto qualquer? Como é que se faz?

 

O que me irrita nesta entrevista de Carlos González é transformar as decisões óbvias que seriam tomadas num mundo perfeito em regra absoluta. É claro que devemos mimar os nossos filhos. É claro que é preferível não lhes bater se tivermos alternativas. É claro que é melhor desligar a TV à hora das refeições. Quem é que não sabe isso, caraças? Isso é o óbvio ululante! Não é preciso estudar muito para chegar a estas brilhantes conclusões.

 

Só que o problema da paternidade actual não é esse - é exactamente o contrário desse. É como aprender a gerir os momentos de desaspero, como sair de becos aparentemente sem saída, como manter a felicidade doméstica apesar de todos os escolhos, como manter o equilíbrio apesar das nossas falhas, como fazer para que eles não consumam toda a nossa vida, como conseguir que os nossos filhos sejam felizes ao máximo sem que, para isso, nós tenhamos de ser felizes ao mínimo. E isso não se consegue com a tal pediatria hippie, toda ela flower power.

 

Isto é a filosofia New Age aplicada aos conselhos pediátricos - pode consolar as almas zen, que andam pelo mundo levitando meio metro acima do chão, mas eu sou dos que afocinha mais do que levita. O que eu quero é que me ajudem a gerir as minhas faltas de paciência, que um pediatra enfente os problemas práticos do dia-a-dia, e não que parta de situações em que tudo está no seu lugar, da paciência dos pais à racionalidade dos filhos. Não acontece. Ou, se acontece, então é muito fácil de gerir, obrigadinho. Não preciso de Bésame Muchos.

 

Muitas vezes castigamos ou repreendemos as crianças por coisas que nunca puniríamos num adulto. Se vejo a minha esposa ou um amigo a chorar, pergunto o que se passa e tento consolá-los. Para os meus filhos é igual. Se estou a comer com um amigo e vejo que este deixa metade da comida no prato, não o obrigo a acabar tudo. Com os meus filhos também não faço isso. Jamais bateria na minha mulher, no meu pai ou em companheiros de trabalho. Muito menos nos meus filhos.

 

Bom, aqui, a conselho do meu cardiologista, limito-me a remeter para o post anterior, e para aquela parte em que grito AS CRIANÇAS NÃO SÃO ADULTOS!!! É possível arranjar um argumento menos parvo para defender que não se bata nem castigue? É que há argumentos muito melhores, que até eu posso fornecer. Isto é, mais um vez, uma visão extremada do mito do bom selvagem, que Jean-Jacques Rousseau colocou nos píncaros. Mas a verdade é que Rousseau teve cinco filhos e entregou-os todos à nascença para adopção, para que não lhe atrapalhassem a escrita e o seu profundo dever de iluminar a humanidade. Cheio de boas intenções está o Inferno cheio. Por que não admitir antes que não vivemos no Paraíso?

 

Os pais (bem, as mães) tendem a sentir-se culpados por tudo.

 

Sim, é verdade, e boa parte dessa culpa deve-se à pediatria cutchi-cutchi, que coloca as exigências dos pais em patamares tão difíceis de atingir que eles se sentem sempre aquém de tudo, e uns desgraçados de cada vez que perdem a paciência e gritam com um filho. Mas, já agora, devo informar o doutor Carlos González de que não são só as mães. Os pais também se sentem bastante culpados, e não vislumbrar isso é perceber muito pouco daquilo que neste momento se passa à nossa volta, desde o peso em cima dos ombros dos novos pais ao mega-sucesso das piadas do Louis C.K..

 

Estou convencido que as crianças pequenas, até aos três anos, mais ou menos, estão melhor com os seus pais do que em qualquer outro lugar.

 

Eu também. Vamos propor licenças de maternidade e paternidade simultâneas, com três anos de duração cada uma? Parece-me excelente. E altamente praticável. Mas, já agora, com retroactivos, se faz favor, que é para ver se eu me consigo reformar 12 anos antes da data prevista.

 

O instinto permitiu aos nossos antepassados criar os seus filhos durante milhões de anos, antes de existir qualquer civilização ou cultura. O instinto não é perfeito, mas, geralmente, é muito bom.

 

É isso mesmo. É muito bom. E o instinto diz-me que toda esta conversa é uma enormíssima treta, que pode até servir a quem só está a dois passos do nirvana e tem heranças de família que lhe permitam nada fazer na vida além de contemplar os filhos, mas que lixa a existência de todos aqueles que têm de lutar diariamente por ganhar um ordenado enquanto criam as crianças. Gente, sobretudo, que não vive dentro de um filme romântico, daqueles onde se acorda milagrosamente com um penteado cheio de estilo, as mamãs e os papás são sempre super-apetecíveis, e todos putos são louros, têm olhos azuis e dizem coisas extremamente inteligentes. São situações bonitas, claro. Até invejáveis. Mas só existem durante hora e meia, e com a luz apagada.

 

Dr. Carlos González e uma das suas belas máximas, só possíveis a quem nunca na vida foi emocionalmente chantageado por um filho. É um homem, e um pai, cheio de sorte.

publicado às 09:49


86 comentários

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De Mário Cordeiro a 29.05.2014 às 18:10

Cara Anónima, que, mantendo o anonimato, me brinda com simpatias. Não gostou dos livros? Ainda bem. Há quem goste. E foi pena deitá-los fora porque podiam servir para forrar a gaiola dos periquitos.
Sabe, ainda bem que há quem não goste, porque o pior de tudo é ser-se cinzento e baço e agradar a todos. É por isso que eu gosto dos comentários e artigos do João Miguel: diz o que pensa sem querer servir mordomias. A isso, cara Anónima, chama-se "liberdade".
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De Anacleto a 29.05.2014 às 19:14

Liberdade de opinião implica poder expressar um opinião sem ser alvo de ameaça de coação física ou jurídica. Liberdade de opinião não e poder expressar uma opinião sem ter que ouvir o que os outros pensam disso! Para alguém com tanta reputação, esperaria que soubesse defender as suas ideias de forma mais eficaz do que simplesmente invocar a "liberdade".

Mas mostre-me la os tais artigos científicos que mostram que bater nas crianças e uma ferramenta pedagógica extremamente eficaz. Gostava sinceramente de os ler...
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De Mário Cordeiro a 30.05.2014 às 09:08

Eu não defendo que se bata nas crianças. Não defendo, não bato nem nunca bati, nem escrevi em nenhum lado que se deve bater. Ponto.
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De Anacleto a 30.05.2014 às 11:52

Mario, muito obrigado pelo esclarecimento, e mesmo muito importante que o tenha feito.
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De Anónimo a 29.05.2014 às 20:26

Podia assinar Ana Silva, Joana da Costa, Maria das Couves... que diferença faz um nome quando a pessoa é isso mesmo... anónima entre tantas?

Mas oiça, não se esqueça que está a falar com mães new age, hippies, zen, ... gaiolas, a sério?

:D
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De Ana a 30.05.2014 às 06:19

Dr. Mário Cordeiro, desculpe mas os seus comentários são uma desilusão.

Sinceramente já tinha desistido de ir às consultas consigo. Acompanhou o meu filho durante o primeiro ano de vida, mas sempre achei que era muito impessoal, não sabia o nome dele, fazia-me perguntas que eu já lhe tinha dito anteriormente que não mas em cada consulta voltava a perguntar o mesmo, tudo coisas que poderiam ser evitadas se lesse as fichas das crianças antes de elas entrarem em consulta. Já tinha decidido mudar de pediatra antes de ler isto, mas agora que li estou mesmo contente por ter mudado.

O Dr. Mário Cordeiro e outro pais, bem como o autor do blog levam isto que o Dr. González diz tão a letra, que quem cai no ridículo são vocês por terem tão pouca sensibilidade para entender realmente do que se trata. Quando se fala em respeitar as crianças por quem elas são, não as humilhar, nem lhes impor regras estúpidas que não se imporiam a um adulto, não é no sentido "new age" laissez-faire que vocês querem fazer parecer ridicularizando a situação. Nenhum pai que concorde com o que o Dr. Carlos Gonzalez diz, vai dar as chaves do carro a uma criança de 10 anos, nem o vão deixar gastar 100€ em gomas (é ridículo que tenham usado isso como exemplo), mas se calhar se a criança quiser ir para a cama 1 hora mais tarde também não é preciso fazer um drama por isso e dizer que a hora da cama é as 21.05 em ponto! Nem tanto ao mar nem tanto à terra. O Dr. Carlos Gonzalez não fala em abolir todos os limites, fala sim em bom-senso.

Diz o Dr. Mário que "cada um que seja pai como deve ser, que se informe mas que não siga nenhum manual de instrução", então porque é que nas suas consultas está sempre a dar as suas opiniões quando ninguém as pediu? Em todas as consultas dizia que o nosso bebé tinha de começar a dormir no quarto dele e em todas as consultas eu e o meu marido dizíamos que haveria de chegar a altura mas que por enquanto estávamos os 3 felizes como estávamos. Talvez o Dr. Mário tenha de aprender a respeitar mais a opinião dos pais também, ou afinal também quer instruir os pais à sua maneira?

Eu cada vez aprecio mais o Dr. Carlos González e pelo que tenho visto na internet depois dessa entrevista sair, penso que mais e mais pais também estão de acordo. Bom-senso não é andar à deriva, como vocês querem fazer parecer, bom-senso é tentar perceber a criança e não tentar calá-la logo à partida só porque é uma criança e não um adulto, parece que só por ser criança tem um estatuto inferior, na vossa perspectiva. Custa-me a crer que ainda hajam pediatras que defendam que se deve bater nas crianças, o chamado "uma palmada nunca fez mal a ninguém"!

"ou então será um narcísico arrogante e omnipotente que será infeliz e espalhará a infelicidade à sua roda." - Dr. Mário, a sério que disse isto?? Contrariamente ao que diz, as pessoas que muitas vezes são assim infelizes como diz, são pessoas que receberam pouco afecto, amor e atenção por parte dos pais. Já ouviu alguém a queixar de que os pais o amavam demasiado e isso fez com que se sentisse perdido na vida? Não. Os consultórios de psicologia estão cheios é de histórias de infância mal resolvidas, de pouco afecto, pouca atenção, pais que trabalhavam horas em excesso e mal viam os filhos, não o oposto.

Abençoado González! Hajam mais pediatras em Portugal como ele!
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De Mário Cordeiro a 30.05.2014 às 09:15

Sabe uma coisa: não é bonito esgrimir ideias fazendo ataques pessoais. Não lhe fica bem. Pode dar troco ao que escrevi (e tenho pena que muitos dos leitores não percebam ironias e façam da internet um drama - "um blogue é um blogue é um blogue". Não passa disto. Fazer do que aqui se escreve uma Constituição da República é no mínimo ridículo.
Mas, continuando, eu não sei nada da sua vida e mesmo que soubesse não iria tecer comentários. Aliás, nem assina o apelido, de forma que não posso sequer saber quem é... mas aproveitar para atacar com argumentos que não vêm ao caso é feio. O que têm a ver as minhas consultas ou a relação que tiveram comigo (má, pelos vistos - devia-me recordar, porque não são muitos os pais que me "detestam" a ponto de vir criticar assim em público) com as ideias que eu ou o João Miguel, ou mesmo o Dr. Gonzaléz expressamos? Olhe, eu nunca usaria argumentos da sua profissão (que não sei qual é) para atacar as suas ideias.
Enfim... bom fim-de-semana e que seja muito feliz. A sério. Isto não é ironia.
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De Anacleto a 30.05.2014 às 12:02

Mario, ai e que se engana. Isto nao e apenas um blog, e voce nao e simplemente um comentador casual. Este blog lido por milhares (milhoes?, o JMT podera comfirmar) de Portugueses, e o Mario e um dos pediatras de maior reputacao em Portugal. Um comentario seu tem uma carga de autoridade que outros comentarios nao teem, seja num blog, seja numa entrevista, seja num livro. Como prova disso, o JMT imediatamente pegou no seu comentario para justificar a sua opiniao de um autor que alias nunca tinha lido mais do que uma simples entrevista.

Liberdade de opiniao tambem implica responsabilidade de opiniao, que e uma coisa que em Portugal ser percebe pouco. Com liberdade vem responsabilidade, mas parece que muitos em Portugal so querem a liberdade.

Neste caso, os seus comentarios (que foram pouco pensados e cuidados) deram a muito boa gente que comenta aqui (e suspeito que a muitos mais que nao comentam) a impressao que bater em criancas e perfeitamente aceitavel e ate expectavel. Num pais onde ha uma cultura enraizada de usar a "lamparina" como ferramenta educativa, e extremamente importante que a mensagem de que bater em criancas nao e nunca aceitavel seja transmitida sempre de forma mais clara possivel.

So gostava que percebesse isso!
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De Sara Gomes a 30.05.2014 às 11:00

Nunca fui a nenhuma consulta com o Dr. MC por isso não o conheço a esse nivel. Conheço os livros dele e gostei de os ler. Mas, não é por isso, que o meu instinto enquanto mãe não pervaleça sobre o que leio. A verdade é que pervalece. E tenho me dado tão bem! Tenho quatro filhos, entre os 11 e 1 anos, e foram (são) todos muito fáceis de cuidar. A receita é simples: amor e atenção. Se eles são o mais importante para nós, eles têm de o sentir. Temos de o demostrar sempre, com naturalidade. Isto tudo para dizer que CONCORDO EM ABSOLUTO COM O QUE A ANA ESCREVEU e, em particular, com o que escreveu sobre o Dr. González.
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De Sara Gomes a 30.05.2014 às 11:07

prevalece e não "pervalece" :( desculpem!
A dislexia é uma coisa tramada!
Eu sei, eu sei! devia verificar antes de publicar...
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De Anónimo a 30.05.2014 às 12:38

Bravo, Ana! Bravo, Anacleto!

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