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3. O meu último ponto é muito melhor justificado pelo longo texto que ontem foi publicado na revista de domingo do Público (o texto encontra-se online, aqui), e portanto quem gosta de argumentações mais elaboradas é ir lá ler. Mas o ponto central é este: eu entendo que no último par de décadas aconteceu uma revolução copernicana no que diz respeito à relação pais-filhos. Ou seja, entendo que os filhos deixaram de orbitar em torno dos pais e os pais passaram a orbitar em torno dos filhos. Isso muda tudo, incluindo aquilo que me parece dever ser o discurso mais adequado de um pediatra em relação aos pais.

 

Há 40 anos, o discurso de González seria altamente pertinente. Se eu vivesse num mundo onde as crianças apanhavam reguadas na escola, levavam sovas de cinto e nunca eram beijadas pelos pais, então o discurso do amor e do bésame mucho não só seria útil como indispensável. Em 1974, eu votaria González. Só que nós já não vivemos nesse mundo - e por isso o aconselhamento pediátrico, naquilo que é a relação pai/filho, tem necessariamente de evoluir.

 

Ora, quando eu leio uma entrevista onde a obsessão pelo filho e o amor ao filho e as necessidades do filho e o crescimento do filho são o único tema abordado, isso custa-me muito engolir. Não é só pela questão do mimo, embora eu ache, de facto, que a ter de eleger um problema das crianças de 2014 não será a falta de mimo mas sim o seu excesso. Mas não é isso que me incomoda mais: é, sobretudo, a falta de questionamento do equilíbrio familiar, que me parece muito afectado pela tal revolução copernicana; é a não valorização da forma como os pais estão a ser sugados pelas exigências das crianças, ao mesmo tempo que González nos aconselha a aumentar a potência do aspirador.

 

Para quem, como eu, acredita muito numa ideia de família; para quem, como eu, acredita que a família tradicional, com pai e mãe e filhos e avós, é o maior bem que podemos legar aos nossos filhos; para quem, como eu, acha isso infinitamente mais importante do que saber se um puto dorme ou não na cama dos pais; para quem sente que, à sua volta, essa equilíbrio está muito afectado; então Carlos González leva todo o seu tempo a mandar tiros ao lado.

 

São tiros que, pelo que se vê das reacções ao meu texto, acertam ainda no alvo de muita gente. E assim sendo, os gonzalistas que façam bom proveito dos seus conselhos. Mas da minha - provavelmente egoísta - perspectiva, o que vejo é pais de língua de fora e miúdos speedados. Dizer aos primeiros "vocês ainda deviam estar mais atentos e amar mais e amar infinitamente" é a mensagem errada, é colocar mais peso na parte do barco que já está a adornar.

 

Há muito pai egoísta, há muitas crianças que sofrem e que precisam de mais amor e de mais carinho. Mas essa não é a regra. Essa é a excepção. A regra - pelo menos a regra à minha volta - é muito pai perdido e esmagado pela responsabilidade de criar um filho. O combate que me interessa, portanto, é pela independência dos filhos em relação aos pais e dos pais em relação aos filhos. É como amar dando-lhes mais independência e não "bebeficando-os".

 

Talvez valha a pena concluir isto com uma citação de C.S. Lewis que coloquei no tal texto do Público:

 

Nós alimentamos as crianças para que em breve elas sejam capazes de se alimentar sozinhas; nós ensinamo-las para que em breve não necessitem dos nossos ensinamentos. Uma grande exigência é colocada sobre o Amor-Dádiva [“Gift-Love”, no original, segundo Lewis, o tipo de amor característico da relação pai-filho]. Ele tem de trabalhar no sentido da sua própria abdicação.

 

Gosto imenso deste conceito de "Amor-Dádiva". O amor de um pai por um filho é um amor gratuito - e para ser verdadeiramente gratuito, é necessário todos os dias combater os excessos de dependência dos dois lados. É amar sem se ser sugado - nem nós por eles, nem eles por nós.

 

publicado às 12:26


43 comentários

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De Anónimo a 02.06.2014 às 14:26

Tenho acompanhado esta discussão aqui no seu blogue e quero agradecer-lhe por trazer a lume temas interessantes que nos fazem refletir e considerar diversos pontos de vista. Pela sua escrita aqui no blogue (ainda não tive a oportunidade de ler nenhum dos seus livros) depreende-se (ou pelo menos eu depreendo) facilmente que é uma pessoa inteligente, com grande capacidade de análise e facilidade de comunicação. Estou de acordo com tudo o que escreveu sobre a entrevista ao pediatra espanhol. A mim também me fez confusão que ele pusesse tanto a tónica no amor, no mimo e no carinho aos filhos, dado que me parece que na maioria dos casos é essa já a regra. Sinceramente também acho que nas famílias em que a violência é dominante, não é com livros sobre pediatria que as coisas irão ao lugar. Quem utiliza a violência (física e verbal) como forma de educação, não será o público-alvo deste tipo de literatura. Assim, também a mim me pareceu redundante a insistência na questão do "mimo" que aliás, mesmo sem ler o livro, se compreende pelo apelativo título que é a ideia-chave que se pretende veicular.
A comparação entre adultos e crianças é tão absurda que nem merece discussão. Crianças, e particularmente, crianças pequenas, estão ainda longe de ser adultas e, se as tratássemos como tal, teríamos igualmente de lhes exigir responsabilidades que são até proibidas por lei. Por exemplo, teriam de trabalhar para ganhar o seu sustento e, a isso, parece-me que se chama "trabalho infantil".
Por fim, esta confusão toda que se gera sobre "o castigo" e o "reforço positivo" e o "impor limites" e "disciplinar com respeito", não é mais do que mudar os nomes às coisas para falar do mesmo. A entrevista tem todo um tom demagogo, pretende convencer por veicular brilhantes ideias que se querem originais e, que no entanto, se resumem, no meu entender, da seguinte forma: "Eu sou um pediatra que quero vender livros e tenho de me destacar do meu colega Estivil para parecer original. As crianças são nossos filhos, devemos amá-las e respeitá-las. Não as violentem e todos serão felizes. Parece que descobri a pólvora, mas isto é mais do mesmo e baseia-se num senso comum que eu reparei que muita gente perdeu."
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De Anónimo a 02.06.2014 às 14:27

Perdão, esqueci-me de assinar. É meu o comentário anterior.

Helena Rocha

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Onde o pai fala de assuntos sérios



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