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As malditas heranças #2

por João Miguel Tavares, em 20.08.14

Deixem-me então regressar ao fascinante tema das heranças, para tentar explicar por que me parece que ele tem tanto a ver connosco, apesar de não sermos milionários. Todos temos ou tivemos pais, muitos de nós têm filhos, e portanto a questão daquilo que podemos receber de uns ou que iremos deixar aos outros é um tema importante. E sobre isso eu sou muito Buffett-gatiano: as heranças deveriam ser encaradas por cada um de nós como uma dádiva, e não como um direito.

 

Não me refiro a questões legais, obviamente. Refiro-me a questões morais. Quer dizer: não sei por que raio tanto filho está convencido que tem um direito inalienável ao património dos pais, para o qual, regra geral, nada contribuiu. Os nossos pais têm a obrigação de nos oferecer a melhor educação possível, com certeza, mas a partir daí não têm obrigação de nos deixar mais nada.

 

O património é deles. Se quiserem enfiá-lo numa fundação para combater a malária, como os Gates, estão no seu direito. Se quiserem oferecê-lo à igreja, estão no seu direito. Se quiserem fazer um testamento em que os filhos não são tratados por igual, também estão no seu direito. Aquilo é deles. Não é nosso.

 

Infelizmente, não deve haver quem não tenha assistido, na sua família ou em famílias próximas, a conflitos enormes em torno de heranças. Não precisam de ser latifúndios - às vezes basta ser a partilha das colchas da avó. Esses conflitos atingem frequentemente níveis de violência absurdos - há irmãos, sobrinhos, primos que nunca mais se voltam a falar.

 

Tenho um amigo que acha que as heranças são apenas o gatilho que faz disparar conflitos que estavam latentes, e que encontram ali um campo fértil para serem finalmente verbalizados. Ele terá alguma razão. Mas não acho que tenha a razão toda - há gente que efectivamente enlouquece perante a visão de um serviço de cozinha com 60 anos. Há quem antes das partilhas se desse muito bem e deixe de se dar.

 

Eu também assisti a isso quando era novo, e jurei a mim próprio que jamais aconteceria comigo - ainda que eu tivesse que oferecer tudo ao meu irmão e me limitasse a manter na minha posse a meia-dúzia de livros de banda desenhada que já lhe roubei entretanto. Nada justifica aquele género de discussões - não foi pelo nosso mérito que a casa, o carro ou os talheres de prata foram conquistados. E se uma coisa não tem o nosso mérito, nem o nosso esforço, nem a nossa dedicação, não pode ser, moralmente, uma exigência nossa.

 

Ah, e tal, a lei diz que sim. Esqueçam a lei. É evidente que mais vale o património ficar para os filhos do que para o Estado. Os meus pais têm uma relação melhor comigo do que com a Maria Luís Albuquerque. Mas quando a minha atitude deixa de ser de dádiva para passar a ser de dever, invocando para mim o direito a certas coisas que eu não conquistei, cada desacordo com um familiar produz um sentimento semelhante ao de me estarem a assaltar a casa.

 

Não, não, não. Não faz sentido. A partir do momento que os meus filhos deixarem de ser menores de idade e abandonarem a minha dependência, o que pretendo ensinar-lhes é que aquilo que de melhor tinha para lhes oferecer - a sua educação - já está oferecido. A partir daí, desemerdem-se. Façam-se à vida. Conquistem as coisas pelo seu próprio mérito.

 

De resto, pretendo fazer com o meu património o que muito bem me apetecer. E se algum dia, depois de bater a bota, os vir discutir acerca de loiças ou pratas ou livros (enfim, acerca de livros ainda perdoo), hei-de reerguer-me da tumba para lhes azucrinar a vida. Vão trabalhar, malandros. Cada um tem a sua vida para viver. A obsessão com as heranças é uma canibalização da vida dos nossos pais. Deixem-nos em paz e vão dar dentadas para outro lado.

 

  

publicado às 11:36


21 comentários

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De jsgm a 21.08.2014 às 01:26

Há pelo menos um aspecto "moral" em que as leis das heranças dão imenso jeito: os romances policiais!
Quantos de nós não nos perdemos já nas convoluções jurídicas de um enredo à procura de quem beneficia com o crime e cujo desenlace pode depender de uma sequência temporal de mortes ou do local de um casamento ou do reconhecimento de uma assinatura num papel que poderia ser um testamento?

Viva o direito sucessório, que entretém os nossos serões de estio!
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De Ana Maria a 20.08.2014 às 23:22

Onde vivo, e na família alargada onde me encontro inserida (por casamento), a questão das heranças não é pacífica. Se, por um lado, não há grandes lutas pelos bens (pelo menos no que se refere aos meus sogros e marido/cunhado), por outro lado há a defesa do "direito", ou seja, a luta e defesa pela parte que lhes cabe de bens que herdam/herdarão de tios, tios-avós e bisavós. São terrenos, na sua maioria, mas ainda assim fala-se do ter direito a, do querer receber a parte de.
Confesso que é conversa que me incomoda. Não sei se é por ser um "anexo" à família (ainda que tenha, por casamento, direito às heranças e tudo isso), mas incomoda-me que alguém se considere dono daquilo que outros trabalharam para ter. Um tio que morreu solteiro (como a culpa, dizem), deixou o dinheiro a uma instituição e os bens à família. O que eu ouvi, senhores, sobre a decisão do falecido... que não devia, que o dinheiro era dos sobrinhos, dos sobrinhos-netos, enfim. O homem foi, nos últimos de vida, acolhido pela tal instituição. Lá encontrou acolhimento, fez amigos, trataram dele quando adoeceu. E deixou-lhes o dinheiro que ganhou sem ajuda da família.
Enfim, coisas que me incomodam.
Mas, depois, há o outro lado.
Da filha mais nova de um grupo de cinco filhos que ficou a tomar conta dos pais durante toda a sua vida, e que acha que, agora que eles morreram (de velhice, ou de doença causada pela velhice) tem direito a uma maior parte que os irmãos, que viveram a vida deles e só apareciam nas festas. Legalmente, todos terão direito a partes iguais (penso que será assim). Moralmente,... quem passou a vida a trabalhar nas terras dos pais, a tratar do gado da família, a cuidar da saúde e da doença dos pais, não teria direito a mais? Ou, pelo menos, não teria direito a uma maior parte, dado que trabalhou para que ela exista agora?

Não me parece condenável a luta dela. É um caso que não se encaixa no ponto de vista do JMT (que eu partilho), nem no caso que apresenta. É daquelas exceções (até porque, no caso, a senhora será moralmente uma co-proprietária e não uma herdeira :) )
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De vera a 09.09.2014 às 15:11

Qualquer pessoa pode deixar em testamente, a quota disponivel - uma parte da herança, a quem quiser... instituições, terceiros ou beneficiar um dos filhos.
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De marta a 20.08.2014 às 21:57

Concordo 100% ...no entanto a minha única filha, neta e sobrinha única irá herdar casas de algum valor...e como já fui mãe tarde, da-me algum conforto pensar q pelo menos n precisará de recorrer aos *** dos bancos para ter um teto...na minha terra ainda se dá muito valor em deixar o terreno para a casinha :-)
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De Olívia a 20.08.2014 às 20:21

Por aqui pensamos o mesmo!
É dar-lhes as canas, ensinar onde se compra o isco, ensinar-lhes a ir à pesca e depois elas que vão e pesquem tudo aquilo que conseguirem!
Acho que o grande objectivo da maternidade e paternidade é isso mesmo, educar os nossos filhos e dar-lhes as bases, afinal foi isso que nos aconteceu na nossa infância e juventude!
Olívia
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De Mário Cordeiro a 20.08.2014 às 18:36

Até que enfim que alguém consegue expressar tão bem o que sinto... e sou pai de 5 filhos e avô de outros tantos (desde ontem, quando nasceu a quinta).
Se bem que os pais possam considerar dever ser bons gestores do que herdaram, não é obrigatório que assim seja. E o que receberam é, como o fruto do seu trabalho, para fazerem dele o que quiserem.
Sempre tive esse norte: educá-los, apoiá-los até ao fim dos estudos (desde que não sejam como o Dux que estudou 25 anos na faculdade...) e depois... a vida é deles. Uma coisa é apoiar em coisas pontuais, outra será, depois de desaparecer, "repartirem entre is as minhas vestes", mas esta coisa de estar a pensar sempre no que se deixa é sinistro e pode levar, mesmo que inconscientemente, o potencial herdeiro a desejar o rápido final do progenitor. Dirão que não é assim, mas há um factor de inquinação na visão das heranças que o JMT apontou... e que, felizmente, é diametralmente oposta à minha e à dele... até porque o amor é oblativo...
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De José da Xã a 20.08.2014 às 14:43

Caro João,

há uma parte neste seu texto que eu concordo.

- Enquanto forem vivos, os pais devem ser soberanos sobre aquilo que amealharam durante uma vida. Perfeitamente de acordo!
O problema é na altura que a senilidade chega... e o pai ou mãe começam a desbaratar o património sem terem realmente consciência do que estão a fazer. E aí, creio eu, deve-se colocar um travão... pelo filho ou filhos!
Há outrossim uma parte em que não concordo.
- Cabe aos pais dar educação aos filhos. Certo! Mas se um dos filhos sai dos carris e envereda por caminhos ínvios? Será correcto desfazer-se de um património para sustentar um herdeiro problemático? Ora pegando neste exemplo podemos dizer que os filhos também contribuem para o património dos pais. Ou será que não?
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De Sara a 20.08.2014 às 14:39

Concordo, concordo, concordo e concordo. Vivemos num mundo em que os filhos saiem de casa aos 30 anos com licenciaturas, mestrados e doutoramentos, mas sem desenvoltura para se fazerem à vida. É mais fácil receber uma mesada do que começar a trabalhar e ganhar menos do que isso, claro que é. Mas é por isso que depois essa gente acha que o monte alentejano que os avós passaram uma vida a pagar é deles por direito e não dos primos que já têm a vida feita e muito dinheiro no banco. Que mundo mais ao contrário, é só gente interesseira mas sem interesse nenhum.
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De Maria C a 20.08.2014 às 14:33

Não podia concordar mais, estava eu de férias à mesa com a família toda (pais, irmã e cunhado, sobrinhas e filha) e a conversa rodava à volta deste tema, quando revelo que a maior herança que o meu pai me deixará foi ter-me ensinado que cada um trabalha para si. Ainda recordo as suas palavras quando eu tinha 18 anos: " Filha se queres um carro e uma casa tens que trabalhar para isso, eu nunca irei poder dar a ti e à tua irmã um carro ou uma casa. O que der a uma dou à outra também, apenas vos posso ajudar a chegar lá." E em tom de brincadeira viro-me para a minha filha (tem 7 anos) e digo: - Já sabes, tens que trabalhar para ti, que eu quando morrer não te deixo grande coisa. Ela fica escandalizada a olhar para mim, e responde: - Não faz mal, a minha avó vai deixar tudo para mim. (Avó paterna) está visto que ainda tenho muito que lhe ensinar. Mas a tarefa é bem mais complicada quando do ouro lado é a avó que lhe diz que tudo será mais fácil pois tudo será para ela.

Maria C
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De Carla a 20.08.2014 às 14:14

São muitas as pessoas em terras próximas da minha que, mal os pais morreram, foram a correr vender os bens que herdaram porque não queriam a «porcaria» de casa minúscula que os pais construíram, nem se iriam esfalfar a trabalhar nas terras que compraram.

Ironia. Muitos perderam os empregos ou parte dos salários, perderam as casas à maneira que até tinham comprado com o dinheiro da venda dos bens da herança, e ficaram com uma mão à frente e outra atrás.

Mas houve outros que passaram por situações semelhantes, com a diferença de terem conservado as casas dos pais ou dos avós e as respectivas terras, até por questões de afecto e respeito pelo esforço familiar ao longo de gerações, e que agora estão a usufruir desses mesmos bens. As casas podem não ser um estrondo de modernidade, mas têm telhado, janelas e portas, e para quem perdeu o que tinha são uma grande ajuda.

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