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Brisa suave num campo devastado

por João Miguel Tavares, em 24.01.14

Vou tentar explicar num instante, aproveitando o facto de a excelentíssima esposa estar de banco e não poder corar com os meus elogios, porque é que o comentário anterior da Ana Azevedo me toca tanto. Vocês podem querer dar-me o desconto por aquilo que eu vou dizer ser sobre a minha mulher, mas eu sei que tenho do meu lado, como testemunhas de defesa, não dezenas, mas centenas ou milhares de pessoas que já precisaram da sua ajuda e a quem ela acompanhou nos momentos mais emocionalmente difíceis das suas vidas; aqueles momentos de que a Ana fala e sobre os quais sente tanta necessidade de aprender.

 

Essa é simultaneamente a bênção e a maldição de um médico - viver uma vida de uma intensidade desmedida, ao lado de milhares de doentes que entregam tudo o que têm nas suas mãos. Então quando se trata de uma médica como a Teresa, especialista em hematologia oncológica, que durante muitos anos trabalhou no IPO de Lisboa, esse tudo é mesmo tudo, é habitar um forte isolado numa fronteira hostil, que a morte tenta diariamente assaltar. Não admira que tantos médicos sejam escritores - é uma profissão que pode conferir uma sabedoria imensa a quem estiver disponível para a abraçar de corpo e alma, como a Ana parece estar. Invejo-vos por isso.

 

E a verdade é que a Teresa nasceu para ser médica. Aliás, ela queria ser médica desde que se lembra, por razões que ela vos contará se quiser, e, de facto, mesmo nas alturas em que está mais desiludida com a sua profissão, nunca a imaginei a ser outra coisa. Ela às vezes quer imaginar-se outra coisa, mas no que depender de mim, nunca quererei que se imagine. Por uma razão simples: ela é uma médica extraordinária não por causa do tal "conhecimento médico-científico-orgânico" de que a Ana fala - embora seja impossível alguém ser bom médico sem conhecimentos sólidos na sua área -, mas exactamente por aquilo que a Ana procura e que na Teresa - sorte imensa a dela - é tão natural: saber "o que fazer ou dizer a alguém que chora copiosamente à cabeceira do pai que está a morrer".

 

Nesse sentido, a Ana veio bater a uma porta mais certa do que imagina: naquilo a que tipicamente se chama relação médico-doente, a Teresa tem um talento fora do comum. Eu já insisti com ela muitas vezes para se especializar nisso, para sistematizar isso, para escrever um livro sobre isso, mas ela chuta sempre para canto, dizendo que há óptimos livros sobre o assunto. Nunca me convenceu. Acho simplesmente que, como aquilo lhe sai de forma tão natural, seria como pedir para explicar aos outros aquilo que é óbvio para ela. E no entanto, como a Ana aqui mostrou tão bem, o dom da Teresa não é nada óbvio. E eu que o diga, que fico invariavelmente de boca aberta quando a vejo saber sempre, mas sempre, o que dizer, o que fazer, como tocar (e como o toque é importante!), como estar perante pessoas confrontadas com as situações mais brutais das suas vidas. Seja a sua própria morte, seja a morte das pessoas que mais amam.

 

Acho que seria capaz de ficar aqui a elaborar sobre isto até o Sol nascer. Mas tenho mais coisas para fazer e a Teresa pode ficar embaraçada a tal ponto que me vá querer bater por estar a dizer tudo isto (se eu não postar nos próximos três dias, já sabem: foi ela que me partiu os dedinhos ao chegar a casa). Até porque sendo um dom que a Teresa sabe que tem, e sabe que é raro, e sabe que é valioso, ela parece nunca o valorizar tanto quanto devia - ou então, talvez essa desvalorização seja parte integrante do próprio dom. Não faço ideia. Mas que é um enorme talento, é, e é por mim tanto mais admirado quanto eu sou o seu exacto oposto: muito melhor à distância do que perto; muito melhor a escrever sobre isto num blogue do que a falar disto ao lado de alguém que precise. A mim falta-me absolutamente esse dom.

 

Foi isso que eu tentei explicar num texto que escrevi em Março de 2011, para a página Os Homens Precisam de Mimo do Correio da Manhã, poucos dias após a morte de um dos doentes que mais marcaram a Teresa. O texto chama-se apenas "Filipe", e apetece-me deixá-lo agora aqui, como prenda para a Ana Azevedo, enquanto a Teresa está a trabalhar longe e a fazer aquilo para que nasceu.

 

FILIPE

 

Quando era pequeno, as minhas tias-avós achavam-me o miúdo mais antipático do mundo, porque eu nem um “bom dia” lhes dirigia. O meu irmão, que é quatro anos mais velho e sempre foi um rapaz falador e civilizado, tinha de me enfiar cotoveladas e rosnar baixinho um “diz olá à tia” para que a minha língua descolasse, e assim demonstrar à família que não tinha saído de uma gruta pré-histórica anterior à invenção da linguagem. Ainda hoje ele goza com essa minha absoluta inépcia social, que a idade foi polindo, mas sem curar.

 

Acreditem ou não, estou mais à vontade num anfiteatro a falar para 150 pessoas do que num bar a conversar com alguém que acabei de conhecer. Já a minha excelentíssima esposa é o contrário. Se tem de falar para um grupo de pessoas que está com os olhos espetados nela, parece Colin Firth no ‘Discurso do Rei’, com as palavras numa longa fila dentro da boca, à espera de um semáforo verde que parece não chegar. E no entanto, ela, que é médica, é um verdadeiro génio no um para um: nunca vi ninguém com tamanha capacidade para confortar as outras pessoas, saber ouvi-las e encontrar palavras que curam e acalmam.

 

Não vos vou contar quem era o Filipe porque eu próprio, apesar de lhe ter emprestado a primeira série do ‘Dexter’ e de ter feito alguns desvios nocturnos para lhe comprar pastéis de Belém, nunca cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Apenas através das conversas da Teresa. Da preocupação da Teresa. Da sua angústia. E finalmente, da sua imensa tristeza. O Filipe morreu há dez dias no IPO, aos 20 anos de idade. No velório, a Teresa escutava, abraçava, consolava, como a brisa suave de que a Bíblia fala, num campo devastado. É um dom extraordinário que ela tem. Já eu, regressei à infância: estupidamente mudo, incapaz de dizer o que quer que fosse àqueles pais. Tenho 37 anos e ainda preciso das cotoveladas do meu irmão.

 

publicado às 22:45


19 comentários

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De Etelvina Tavares Alves a 24.05.2016 às 22:26

Eu sou testemunha que tudo o que o João escreve é verdadeiro. Eu ,irmãos e demais familiares ,ficámos para sempre gratos pelo que lhe devemos em amizade, assistência médica,dedicação,gentileza...E outros aspectos a que nem sei dar nome por serem tão especiais. Passaram 4 anos e meio mas é como se não tivessem passado para a gratidão tão viva no nosso coração. O João tem as suas responsabilidades pela generosidade , compreensão e apreço que mostra no respeito e inter-ajuda. Com três filhos menores, a mãe não se poderia ter ausentado tantos fins de semana para ajudar tão incondicionalmente o meu irmão.se o pai não fosse quem e como é...Sempre gratos lembraremos as palavras que, em Proença-a-Nova, disse sobre o meu irmão. Peço desculpa por um comentário tão pessoal,mas quando se fala de dons da (dra) Teresa...Deus abençoe toda a família em saúde e alegria.
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De carla almeida a 18.11.2014 às 11:18

Obrigada à Drª Teresa Mendonça pelo grande carinho e dedicação ao meu primo/afilhado Filipe Sarmento. E também todo o apoio, carinho e palavras à minha tia, mãe do Filipe, no seu último dia de vida. Comprovo, porque estive junto delas, nesse dia, a forma extraordinária como a Drª Teresa nos apoiou, transmitindo um luz imensa, uma enorme paz, num momento tão difícil. É de facto um dom. Um bem-haja à Drª Teresa e sua familia.

E obrigada João Miguel Tavares pela homenagem ao Filipe.

Carla
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De Mafalda a 17.03.2014 às 23:12

Que orgulho tenho em ter amigos como vocês, que tenho a sorte de conhecer há vários anos e que apesar de estarem longe continuam presentes nas nossas vidas.

Beijinhos grandes para os dois Teresa e João continuem a ser Felizes!!!
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De S. a 18.02.2014 às 14:02

Este texto fez-me sorrir e chorar ao mesmo tempo. Sorrir porque a Dra. Teresa parece ser um anjo caído do céu, e chorar porque me recordei, com uma terrível amargura, de uma médica que tratou o meu moribundo pai (que era um jovem de 50 anos!) como um cão. A quem hoje eu adoraria espetar duas bofetadas que lhe ficassem bem marcadas para o resto da sua miserável vida. Antes de partir, o meu pai pediu-me que apresentasse queixa. Fi-lo. Infelizmente, vivendo no estrangeiro, eu não pude levar a minha ação até ao fim, e a minha mãe, achando que, por ter apenas o 6º ano de escolaridade, não poderia medir forças com uma médica, desistiu.
Queria tanto, tanto que o meu pai tivesse tido uma Dra. Teresa para lhe sorrir e agarrar a mão...!
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De Anónimo a 29.01.2014 às 09:47

Bonita homenagem à sua esposa.
Que hajam muitos médicos assim, enfermeiros e outros profissionais de saúde.
Não peço lamechiches mas respeito e sensibilidade na altura mais frágil das nossas vidas - a doença.

Ou até, noutro campo, no nascimento dos nossos filhos. Aquele que devia ser o momento mais feliz das nossas vidas torna-se, por vezes, um pesadelo devido à falta de sensibilidade de quem nos assiste.

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De Joana A a 28.01.2014 às 12:40

Que bom saber de alunos de medicina que se preocupam com este lado humano do tratamento. Precisamos de mais pessoas assim.
Eu perdi uma pessoa de família com um melanoma grave, muito mau e rápido. Durante os tratamentos (uns curtos 3 meses) ela gostou de ir a Espanha a um médico concreto, que era mais caro, longe e fora do conforto de quem estava sempre a sentir-se mal.
Quando lhe perguntei porquê aquele e não os que a seguiam respondeu-me: 'Porque ele me segura na mão e olha-me nos olhos'.
Nenhum a podia 'salvar' (e não me venham com discursos motivadores de optimismo a fazer milagres!), mas olhar nos olhos e segurar na mão no sofrimento fazia muita diferença.
Os nossos médicos - os grandes especialistas que fazem o país de lés a lés e vão a congressos internacionais - ordenaram que desligassem as máquinas em pleno horário de visitas, em frente a pai, mãe, marido, filhos. Assim, sem mais nem menos, uma enfermeira cumpriu ordens e desligou tudo à nossa frente.
Não esquecerei e não há como perdoar tamanha falta de humanidade num serviço de saúde.
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De Anónimo a 27.01.2014 às 15:28

Muito obrigada pelo s/ post!

De facto, para se ser médico é preciso ter vocação. Eu pessoalmente sou mais como o João, mas admiro imenso quem seja como a Teresa.
E o toque, como refere, para quem está doente, vulnerável, frágil, pode ser tudo.
Fez-me lembrar um médico que nunca esqueci - em urgência hospitalar isso é muito difícil... - pelo simples facto de, num exame ginecológico, deitada em cima de uma marquesa semi-nua (que miséria de imagem), em que eu larguei a chorar perante a possibilidade de poder nunca vir a ter filhos (tinha 28 anos), me ter dado a mão, feito uma festa e com as palavras mais calmas que já ouvi e sem saber sequer se a minha situação teria resolução (depois teve felizmente, ainda que passados 3 anos), me ter conseguido sossegar. Nunca mais me esqueci dele. Ele seguramente não sabe quem sou, mas curiosamente - as imprevisibilidades do destino são maravilhosas - ainda assistiu ao final do parto do meu 2.º filho!
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De Ana Maria Ramos a 27.01.2014 às 10:34

Oh, JMT, mas escreve como poucos!
Parabéns aos dois, beijinhos
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De ana rute cavaco a 27.01.2014 às 09:44

É tão bom existirem médicas Teresas!
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De Maria do Rosário Ferreira a 26.01.2014 às 22:46

Obrigada por partilhar connosco tão bonita pessoa.
Obrigada por ser capaz de manifestar a sua grande admiração e o seu amor pela sua esposa.
Hoje mais que nunca, precisamos de ver, olhar e sentir aquilo que as pessoas fazem pelos outros, simplesmente porque AMAM!
A Teresa sabe o que dizer na hora certa porque é com toda a certeza um ser cheio de ternura e amor por aqueles que se cruzam no seu caminho!
Ela é a Brisa Suave de que fala!
Mais uma vez MUITO OBRIGADA

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