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Eu sou um bocado guloso. Se às vezes vou a passar pela cozinha e um doce qualquer se cruza comigo, rapidamente lhe dou o prazer de uma visita aos meus compartimentos interiores. Com o chocolate, então, a coisa funciona assim: se não o vir, posso passar meses sem comer, mas se houver uma caixa aberta ao meu lado, marcha em dois dias. Daí a Teresa esconder todos os chocolates que temos cá em casa, como se eu fosse uma criança de quatro anos.
E foi precisamente imbuído desse espírito, a que poderemos chamar Monstro das Bolachas, que há uns tempos me alambazei com dois ou três rebuçados que estavam em cima do aparador do meu quarto. Eu, de facto, estranhei que aqueles rebuçados estivessem ali, mas o meu aparelho digestivo não é dado a elucubrações demoradas, e portanto eles lá marcharam, apesar de nem sequer ser grande fã de rebuçados. Foi simples gulodice.
Comi um, comi dois, comi três, até que a Teresa, dias mais tarde, descobriu e perguntou-me:
- És tu quem tem andado a comer os meus rebuçados?
- Ah, desculpa, não sabia que os rebuçados eram teus.
- De quem é que haviam de ser?
- Não sei. De anónimos. Pensei que fossem apenas rebuçados que tivessem vindo viver para nossa casa, e não tivessem nenhum dono em particular.
- São meus.
- OK, desculpa. Tu até és tão dada à partilha. São só rebuçados, não são?
- Não, não são. Olhaste bem para eles?
Bom, de facto, eu não tinha olhado bem para eles. Nem bem, nem mal. Eram apenas pobres rebuçados sem identidade, que eu havia instrumentalizado para divertir a minha pança.
Até que fui olhar para o último sobrevivente, o derradeiro rebuçado, que havia ficado viúvo após eu ter dado cabo de toda a sua família e amigos, e aquilo que vi foi isto:
E mal vi isto, soltei um grande "aaaahh!". "Desculpa, desculpa, desculpa, eu não tinha visto."
Big asneira.
O que eu tinha comido não eram simples rebuçados. Era memorabilia. Eram doces recordações. Eram provas vivas de grandes momentos de felicidade.
O Carmine's, para quem não sabe, é um dos mais populares restaurantes de Nova Iorque, daqueles com fila quilométrica à porta, onde se serve comida italiana em doses tão generosas que um jantar daria para alimentar Andorra. Eu e a Teresa estivemos lá em Setembro e achámos muito divertido, gostámos bastante, comemos que nos fartámos, passámos uma bela noite juntos.
Pelos vistos, e sem eu saber, ela trouxera de volta para Portugal alguns rebuçados do restaurante. E contou-me o que habitualmente fazia com eles:
- Costumo levá-los para o hospital. Sempre que estou mais em baixo como um.
Uau. Que bonito foi ouvi-la dizer aquilo. Nunca imaginei que dar trincas a um rebuçado pudesse ser uma declaração de amor, e que enquanto a minha excelentíssima esposa fazia uma punção lombar ela estaria a recordar-se dos nossos tempos juntos em Nova Iorque. Uau mesmo. Isto dá dez a zero a qualquer ramo de flores. Mas que romântico.
Talvez até um pouco romântico de mais, no sentido em que ainda fiquei com maiores problemas de consciência, e a reflectir demoradamente sobre a pertinência de a gula ser um dos sete pecados mortais. Mas, enfim, já nada podia fazer. Regurgitar os rebuçados não era opção.
Portanto, à falta de melhor, e sem obstaculizar futuras penitências, achei que a única coisa que me restava era escrever este post para imortalizar na blogosfera os rebuçados Carmine's e dar conta do gesto tão bonito da Teresa.
Afinal, nós teremos sempre Nova Iorque.