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E se ter filhos não for assim tão giro? #1

por João Miguel Tavares, em 23.06.14

Após duas semanas de sabática, conforme prometido à excelentíssima esposa e aos leitores menos dados à ruminação existencial, eis que estou de regresso ao meu tema favorito: os escolhos da paternidade contemporânea.

 

Como também já aqui expliquei, escrevi um texto muito longo para o Público sobre o tema, e tendo em conta que foi a coisa mais elaborada que produzi até hoje sobre um assunto que é central a este blogue, achei que fazia sentido esse texto vir parar aqui, para poder ser comentado pelas sete pessoas que ainda têm pachorra para me ler - e, já agora, porque o digital permite uma contextualização em termos de vídeos, links e imagens que não está ao alcance do papel.

 

O texto original tem sete capítulos, e por isso, ao longo de sete dias, irei oferecê-los em doses homeopáticas, para não enjoar demasiado. Cá vai a primeira parte, cheia de vídeos divertidos.

 

PARTE I

 

O humorista americano Louis C.K. andou a arrastar-se durante 20 anos por bares, palcos e programas televisivos de segunda categoria sem que ninguém lhe prestasse grande atenção. Até que um dia foi pai, e num espectáculo ao vivo, em meados dos anos 2000, decidiu tratar a sua filha por “cara de cu” (“asshole”, no original) e dizer que finalmente “compreendia os pais que atiravam os seus miúdos para o lixo”.

 

 

A reacção estupefacta do público, algures entre o riso desconfortável e a falsa indignação, foi a sua estrada de Damasco. Nos números de stand-up comedy que se seguiram à epifania, Louis C.K. decidiu apostar cada vez mais na temática trauliteira-familiar, e aos poucos foi abrindo a caixa de Pandora doméstica e a retirar mini-esqueletos do seu armário, puxados à força de assholes, bitches e incontáveis fuckings dirigidos às próprias filhas.

 

 

O resultado foi este: os pais começaram a rir-se em uníssono daqueles não-ditos tão sentidos, que eles próprios imaginaram ter de esconder dentro de si e acorrentar às masmorras do superego pela vida fora, fosse por convenção social ou por vergonha pessoal. E com o passar dos anos, esse riso foi-se tornando cada vez mais solto, cada vez mais livre e cada vez mais catártico – ao ponto de Louis C.K., com o seu humor desregrado, desbragado e arriscadíssimo, ser hoje o mais bem-sucedido comediante da América. 

 

Como é que isto aconteceu? Como é que aquele tipo ruivo, gordo, careca e semi-obscuro, de quem se mandavam links do YouTube às escondidas para os amigos pais se consolarem enquanto tentavam adormecer o filho de oito meses pela oitava vez, se tornou subitamente a nova coqueluche da comédia americana, com uma vasta colecção de nomeações para os Emmys, graças à série Louie?

 

A explicação, para um pai de quatro filhos como eu, é relativamente simples: Louis C.K. teve a coragem de dizer aquilo que todos nós, homens heterossexuais e pais de família, sentíamos cá no fundo mas não éramos capazes de verbalizar, mesmo andando há muito a acumular frustrações pessoais e profissionais. A saber: que o discurso sobre a paternidade está todo ele avariado e que ser pai, muitas vezes (demasiadas vezes, até), não tem piada absolutamente nenhuma.

 

E de repente, já não é só Louis C.K. a tirar-nos desse armário. É também, por exemplo, Adam Mansbach, graças ao sucesso planetário de um falso livro infantil chamado Vai Dormir, F*da-se (edição portuguesa da Arte Plural), protagonizado por um pai desesperado que tenta convencer o seu filho a adormecer através de versos tão subtis quanto:

 

O gatinho junto à gata se aninha
E o cordeiro ao pé da ovelha busca calor.
Estás aconchegado na tua caminha,
Agora, f*da-se, dorme por favor.

 

A Lua no céu está a aparecer
E as estrelas já brilham, meu amor.
Leio mais uma história, pode ser,
Mas, f*da-se, depois dorme, por favor.

 

Tanto na sua versão em papel como na versão áudio original lida por Samuel L. Jackson,

 

 

o livro foi um enorme sucesso, ainda que na sua tradução portuguesa haja demasiados asteriscos (o “fuck” passa a um púdico “f*da-se”) e a capa se desdobre em avisos cautelosos, não vá um pai narcoléptico enganar-se no destinatário da obra: “Recomendado a pais com muito sentido de humor”; “Não leia este livro aos seus filhos”.

 

 

Dispensavam-se tantos pruridos. Os pais portugueses, tal como os pais americanos e todos os pais do mundo ocidental, querem cada vez mais quebrar o discurso socialmente correcto e falsamente cor-de-rosa em relação à paternidade. Eles precisam disso, a bem do seu equilíbrio mental, e eu próprio posso testemunhá-lo, tanto em termos pessoais como profissionais: o mais bem-sucedido dos três livros para crianças que escrevi até hoje tem como título O Pai Mais Horrível do Mundo.

 

 

O pessoal está definitivamente a precisar de desabafar.

 

(Parte I de VII. Continua amanhã)

 

publicado às 09:47


5 comentários

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De Ana Mendes da Silva a 24.06.2014 às 23:40

Este seu post é tão tão bom que me restaura a fé num mundo melhor, sem pequenos tiranos e livre do politicamente correcto. E não está sozinho:

"Mas ser mãe não me obriga a ser uma vítima da maternidade, como parece ser a moda actual pelo que vou lendo em blogues, revistas e declarações de mães famosas. É tal esforço destas heroínas da maternidade para apresentar o seu mundo como o paraíso de pequenos almoços idílicos e passeios em praias onde nunca faz frio que uma gaja como eu até fica enjoada, credo. Será que os filhos desta gente nunca vomitam durante a noite? Não chumbam? Não têm momentos insuportáveis que dão vontade de os dar em adopção? E assim se constrói o mito da maternidade-disney.

Lamento, mas essa não sou eu. Hoje escrevo que os meus filhos são uns chatos. Muito lindos, loirinhos e tal, mas uns chatos do caraças. E agora, se me desculpam, vou acabar a minha cerveja. E fumar um cigarro. Os putos estão lá ao fundo no quarto, quem sabe se o terão destruído ou queimado. Não me interessa. Hoje é o meu dia de não querer ser mãe."
http://maequerida.limetree.pt/por-aqui/hoje-e-o-meu-dia-de-nao-querer-ser-mae/#.U6n9RvldUnd
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De Cecília a 24.06.2014 às 10:17

caro João,

leio os seus posts sempre com um sorriso nos lábios.

e só lhe deixo uma achega : se ser "pai" é f***** e apesar de tudo ainda se tem tempo para postar imagine lá como é ser mãe! (espere, já sabe - é criar 4+1 )
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De Bruxa Mimi a 23.06.2014 às 22:31

Não é para me fazer passar por leitora certinha e tal, mas eu li o texto na íntegra quando o partilhou da primeira vez, JMT. Já o meu marido... só teve paciência para ler um bocado! :-)
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De Inês a 23.06.2014 às 21:08

Boa noite,

Quando li este post só me fez lembrar de um vídeo brasileiro que vi recentemente (não tem a melhor da linguagem, mas entende-se pelo título), eu achei hilariante mas não pude deixar de partilhar:
https://www.youtube.com/watch?v=iGcFgk_2mcA

e ainda deixo outro muito hilariante também para uma próxima fase, esperemos que não seja o seu caso e da Teresa:
https://www.youtube.com/watch?v=NEcZmT0fiNM&feature=youtu.be

Boa continuação e cumprimentos alentejanos,

Inês

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De Sofia Lopes a 23.06.2014 às 11:10

nhééé... este post não me enche as medidas, não diz nada de novo

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