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Após duas semanas de sabática, conforme prometido à excelentíssima esposa e aos leitores menos dados à ruminação existencial, eis que estou de regresso ao meu tema favorito: os escolhos da paternidade contemporânea.
Como também já aqui expliquei, escrevi um texto muito longo para o Público sobre o tema, e tendo em conta que foi a coisa mais elaborada que produzi até hoje sobre um assunto que é central a este blogue, achei que fazia sentido esse texto vir parar aqui, para poder ser comentado pelas sete pessoas que ainda têm pachorra para me ler - e, já agora, porque o digital permite uma contextualização em termos de vídeos, links e imagens que não está ao alcance do papel.
O texto original tem sete capítulos, e por isso, ao longo de sete dias, irei oferecê-los em doses homeopáticas, para não enjoar demasiado. Cá vai a primeira parte, cheia de vídeos divertidos.
PARTE I
O humorista americano Louis C.K. andou a arrastar-se durante 20 anos por bares, palcos e programas televisivos de segunda categoria sem que ninguém lhe prestasse grande atenção. Até que um dia foi pai, e num espectáculo ao vivo, em meados dos anos 2000, decidiu tratar a sua filha por “cara de cu” (“asshole”, no original) e dizer que finalmente “compreendia os pais que atiravam os seus miúdos para o lixo”.
A reacção estupefacta do público, algures entre o riso desconfortável e a falsa indignação, foi a sua estrada de Damasco. Nos números de stand-up comedy que se seguiram à epifania, Louis C.K. decidiu apostar cada vez mais na temática trauliteira-familiar, e aos poucos foi abrindo a caixa de Pandora doméstica e a retirar mini-esqueletos do seu armário, puxados à força de assholes, bitches e incontáveis fuckings dirigidos às próprias filhas.
O resultado foi este: os pais começaram a rir-se em uníssono daqueles não-ditos tão sentidos, que eles próprios imaginaram ter de esconder dentro de si e acorrentar às masmorras do superego pela vida fora, fosse por convenção social ou por vergonha pessoal. E com o passar dos anos, esse riso foi-se tornando cada vez mais solto, cada vez mais livre e cada vez mais catártico – ao ponto de Louis C.K., com o seu humor desregrado, desbragado e arriscadíssimo, ser hoje o mais bem-sucedido comediante da América.
Como é que isto aconteceu? Como é que aquele tipo ruivo, gordo, careca e semi-obscuro, de quem se mandavam links do YouTube às escondidas para os amigos pais se consolarem enquanto tentavam adormecer o filho de oito meses pela oitava vez, se tornou subitamente a nova coqueluche da comédia americana, com uma vasta colecção de nomeações para os Emmys, graças à série Louie?
A explicação, para um pai de quatro filhos como eu, é relativamente simples: Louis C.K. teve a coragem de dizer aquilo que todos nós, homens heterossexuais e pais de família, sentíamos cá no fundo mas não éramos capazes de verbalizar, mesmo andando há muito a acumular frustrações pessoais e profissionais. A saber: que o discurso sobre a paternidade está todo ele avariado e que ser pai, muitas vezes (demasiadas vezes, até), não tem piada absolutamente nenhuma.
E de repente, já não é só Louis C.K. a tirar-nos desse armário. É também, por exemplo, Adam Mansbach, graças ao sucesso planetário de um falso livro infantil chamado Vai Dormir, F*da-se (edição portuguesa da Arte Plural), protagonizado por um pai desesperado que tenta convencer o seu filho a adormecer através de versos tão subtis quanto:
O gatinho junto à gata se aninha
E o cordeiro ao pé da ovelha busca calor.
Estás aconchegado na tua caminha,
Agora, f*da-se, dorme por favor.
A Lua no céu está a aparecer
E as estrelas já brilham, meu amor.
Leio mais uma história, pode ser,
Mas, f*da-se, depois dorme, por favor.
Tanto na sua versão em papel como na versão áudio original lida por Samuel L. Jackson,
o livro foi um enorme sucesso, ainda que na sua tradução portuguesa haja demasiados asteriscos (o “fuck” passa a um púdico “f*da-se”) e a capa se desdobre em avisos cautelosos, não vá um pai narcoléptico enganar-se no destinatário da obra: “Recomendado a pais com muito sentido de humor”; “Não leia este livro aos seus filhos”.
Dispensavam-se tantos pruridos. Os pais portugueses, tal como os pais americanos e todos os pais do mundo ocidental, querem cada vez mais quebrar o discurso socialmente correcto e falsamente cor-de-rosa em relação à paternidade. Eles precisam disso, a bem do seu equilíbrio mental, e eu próprio posso testemunhá-lo, tanto em termos pessoais como profissionais: o mais bem-sucedido dos três livros para crianças que escrevi até hoje tem como título O Pai Mais Horrível do Mundo.
O pessoal está definitivamente a precisar de desabafar.
(Parte I de VII. Continua amanhã)