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Depois da parte I e da parte II, eis a parte III.
PARTE III
Isso não significa, contudo, que questões como a educação dos filhos tenham sido inventadas nos manuais do doutor Spock ou do doutor Brazelton. A Pediatria, como ramo próprio da Medicina, é ainda uma criação do século XIX, e o primeiro Hôpital des Enfants Malades abriu no distante ano de 1802, em Paris. A preocupação com as crianças não é, obviamente, uma invenção do século XX – aliás, toda a nossa civilização cristã é baseada na concepção de um Deus que entregou o seu único filho, num gesto de amor radical, para a salvação dos homens. Basta recordar o baptismo de Jesus segundo a narração de Lucas:
E uma voz veio do Céu: “Tu és o Meu Filho muito amado; em Ti pus todo o Meu enlevo.”
Uma cultura que tem no seu centro esta intimidade amorosa de pai e filho não é crível que tenha ignorado durante séculos a riqueza de tal ligação.
O historiador francês Philippe Ariès, numa obra fundamental acerca da história da infância – L’Enfant et la Vie familiale sous l’Ancien Régime, de 1960 –, defende que a ideia de infância enquanto conceito etário específico e distinto da idade adulta é algo que se impõe apenas no século XVI, a par do desenvolvimento da esfera privada e do conceito moderno de família. Segundo Ariès, antes disso a criança era apenas o “dependente”, o “não-adulto”, e como tal era representado na iconografia medieval: não como alguém que tivesse uma identidade ou sequer uma morfologia próprias, mas apenas como um adulto miniaturizado. E, a partir desta premissa, o historiador francês formulou a sua máxima mais conhecida: “Na Idade Média a ideia de infância não existia.”
Esta frase de Ariès tem sido alvo, desde então, de numerosas críticas por parte de outros historiadores, que a consideram abusiva e claramente exagerada. Mas seja qual for a data em que se impôs a ideia de infância e da criança como um sujeito capaz de ir muito além do mero “ser dependente”, aquilo que se sabe, para além de qualquer dúvida, é que no final do século XVII a filosofia começou a interessar-se profundamente pelo conceito de educação.
Em 1693, John Locke publicou o influentíssimo Some Thoughts Concerning Education, que logo nas suas linhas iniciais afirmava: “Penso poder dizer, de todos os homens que conhecemos, que nove partes em dez daquilo que eles são, bons ou maus, prestáveis ou não, o devem à sua educação.” Locke generalizava assim a sua concepção da tabula rasa: não havendo ideias inatas, todo o conhecimento tem a sua origem na experiência, na percepção e, claro, na educação.
John Locke
Setenta anos depois, assumidamente inspirado por Locke, Jean-Jacques Rousseau foi ainda mais longe em Émile, ou De l’Éducation (1762), onde encontramos a conhecida formulação de que o homem nasce bom e é a sociedade que o corrompe – uma variação muito optimista do mito do Bom Selvagem. Embora eu tenha em minha casa quatro provas vivas que desmentem efusivamente tal tese, na altura Rousseau foi convincente ao ponto de a sua defesa apaixonada de uma educação para aprimorar os costumes, plasmada em Émile, ter sido adoptada pelos revoltosos de 1789, e tomada como base de partida para o primeiro sistema nacional de educação francês.
Jean-Jacques Rousseau
Ainda assim, dificilmente se pode argumentar que a importância de uma criança ou de um filho, no final do século XVIII, se assemelhasse a qualquer coisa que possamos encontrar nos dias de hoje. De facto, Jean-Jacques Rousseau, homem aparentemente tão cheio de boas intenções e encantado com a ideia do “bom selvagem”, teve cinco filhos com a jovem lavadeira Thérése Lavasseur e a nenhum deles chegou sequer a dar um nome: todos os bebés foram abandonados à sua sorte no Hôpital des Enfants Trouvés. Nas suas Confissões, o filósofo francês haveria de argumentar que ter filhos era “uma inconveniência” a que não se podia permitir. Eu, pelo meu lado, só posso confirmar que ter miúdos atrapalha a escrita.
(Parte III de VII. Continua amanhã)