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Partes I, II, III, IV, V e VI. Hoje, a última parte.
PARTE VII
Significa isto que não há esperança? Tem de haver esperança – ninguém aprecia finais infelizes, nem em filmes, nem em artigos de jornal. Deixem-me então convocar, em meu auxílio, Jennifer Senior, que transformou brilhantemente em livro uma intuição muito simples: andamos há tanto tempo obcecados com o impacto que os pais têm nas crianças, mas esquecemo-nos de analisar decentemente o impacto que as crianças têm nos pais. E então ela foi analisar. O resultado chama-se All Joy and No Fun: The Paradox of Modern Parenthood. O livro tem tido críticas entusiásticas e um imenso sucesso nos Estados Unidos. É inteiramente merecido.
Jennifer Senior faz no seu livro o que eu tentei modestamente fazer neste artigo: não deixa pedra por levantar na descrição do impacto devastador que as crianças têm nos pais contemporâneos. Ela cita um estudo levado a cabo em 2004, no Texas, por cinco investigadores (incluindo o prémio Nobel Daniel Kahneman, autor do popular Pensar, Depressa e Devagar), que entrevistaram 909 mulheres perguntando-lhes quais eram as actividades que lhes davam maior prazer. Num total de 19 actividades, tomar conta das crianças ficou em 16º. Atrás de ver televisão. De cozinhar. Ou de limpar a casa.
A grande questão, que ouço ser colocada do outro lado do papel desde o início do meu texto, é esta: então por que raio é que se tem filhos? E, no meu atípico caso, logo quatro de uma vez (segundo o INE, só 2% das famílias portugueses são constituídas por seis membros ou mais). Senior responde a esta contradição com uma belíssima citação de Os Quatro Amores, de C.S. Lewis (a tradução é minha):
Nós alimentamos as crianças para que em breve elas sejam capazes de se alimentar sozinhas; nós ensinamo-las para que em breve não necessitem dos nossos ensinamentos. Uma grande exigência é colocada sobre o Amor-Dádiva [“Gift-Love”, no original, segundo Lewis o tipo de amor característico da relação pai-filho]. Ele tem de trabalhar no sentido da sua própria abdicação.
É uma extraordinária definição daquilo a que eu chamei, sem a sensibilidade nem a sapiência de C.S. Lewis, de síndroma de Estocolmo: estamos apaixonados pelos nossos raptores, mas queremos continuar a ser raptados por eles, e não imaginamos o que seria a nossa vida sem esse permanente rapto. Porque, curiosamente, quando os pais são questionados, não sobre o seu presente afobado, mas sobre quais as suas experiências passadas que foram para eles mais recompensadoras, os filhos estão invariavelmente presentes.
Isso tem a ver com uma diferença fundamental na percepção humana que o já citado Daniel Kahneman, em Pensar, Depressa e Devagar (o livro está traduzido em português pela Temas e Debates/ Círculo dos Leitores), classifica como experiencing self (o “eu da experiência”) e remembering self (o “eu da memória”). Num resumo apressado, a sua tese é esta: existe uma distância substancial entre o modo como experienciamos algo e o modo como nos recordamos posteriormente dessa experiência.
Quem tem filhos sabe isto de cor. O que foi uma pequena tragédia no presente (uma refeição em que tudo corre mal, por exemplo) transforma-se meses depois num momento humorístico ao ser recordado em família. É como nas fotografias: a memória ajuda-nos a sorrir e a mostrar os dentes, ainda que no momento em que a máquina fez clique toda a gente pudesse estar farta uma da outra e a portar-se mal.
Com frequência, nós não suportamos o nosso presente como pais, mas sabemos que iremos ter saudades dele no futuro. Posso garantir que já foram centenas as pessoas que, diante dos meus recorrentes protestos paternos (eles são mesmo muito recorrentes), me disseram: “Você ainda vai ter saudades disto.” Eu respondo sempre, muito convicto: “Ai não vou, não.” Mas vou, claro. Está escrito em todos os livros.
Ser pai, portanto, é insuportável e cada vez mais difícil, enquanto ser solteiro é cada vez mais comum e divertido. Mas como Émile Durkheim, pai da Sociologia, descobriu no distante ano de 1897 ao escrever O Suicídio, as pessoas casadas matam-se menos do que as pessoas solteiras, as pessoas viúvas matam-se mais do que as pessoas casadas mas menos do que as solteiras, e as pessoas com filhos matam-se menos do que todas as outras. Quando um casal tem filhos, diz Durkheim, o “coeficiente de preservação” praticamente duplica. Segundo ele, existe uma relação muito forte entre a formação da família e a preservação da vida.
Muita da angústia moderna terá a ver, a par de todas as mudanças sociológicas, com o facto de o conceito de “prazer” ter ganho demasiado território ao conceito de “dever”. Mas o conceito de “dever”, como prova Durkheim, está lá, bem enfiado no nosso património genético, e merece ser recuperado, a bem da nossa sanidade mental. Se nós pararmos de acreditar que ter filhos é suposto ser uma coisa divertida, e passarmos a aceitar antes que é uma coisa que deve ser feita, e que nos devolverá no futuro, com juros, aquilo que nos tira no presente, talvez o próprio presente se torne mais fácil de suportar.
Em resumo, e avançando para o tal final que se quer feliz: ser pai em 2014 é muito difícil, por vezes desesperamos, e sem dúvida merecemos mais atenção do que aquela que nos tem sido dada. Olhar mais dedicadamente para as angústias da paternidade, exterminar de vez o discurso cor-de-rosa dos bebés cutchi-cutchi, seria uma actividade muito útil e, a bem da propagação da espécie, extremamente proveitosa. Ainda assim, a paixão pelos filhos não diminuiu. Pelo contrário: nunca antes pensámos tanto neles, nunca tivemos tantos problemas de consciência por não estarmos com eles e nunca a nossa vida nos pareceu tão deslocada sem eles. Todos temos consciência disso, a cada minuto do dia. Incluindo naqueles momentos – tão frequentes – em que os nossos filhos nos parecem apenas uns caras de cu.
FIM