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Eu e a Maria João Marques, enquanto pessoas de um outro tempo, estamos a ter a modos que uma polémica epistolar: vamos discordando um do outro a intervalos semanais. O assunto provavelmente só já interessa a nós o dois, mas eu continuo a insistir, até porque desta vez a Maria João clarifica o seu argumento económico-liberal. O texto integral dela está aqui, mas eu deixo um par de citações:
As famílias com crianças são um grande mercado e os proprietários e gestores de hoteis e restaurantes têm noção disso. Se os restaurantes não quisessem receber crianças, não teriam cadeirinhas para elas, estabeleceriam um consumo mínimo para quem ocupasse lugar à mesa, não criariam menus infantis,… E os hoteis, então, se quisessem enxotar crianças teriam boas soluções: camas de bebé e camas extra caríssimas, alimentação de crianças ao mesmo preço da dos adultos (...)
Enquanto as famílias quiserem levar crianças para hoteis e restaurantes, haverá hoteis e restaurantes que aceitam crianças. Pelo melhor motivo de todos (não, não é cumprir a lei): as empresas, para sobreviverem e prosperarem, fazem por agradar aos clientes. E se o mercado resolve – e bem, porque incorporando as decisões livres de consumidores, empresários e gestores – o problema, então o legislador só tem de ficar quieto e não incomodar.
Eu diria que a Maria João é bastante convincente a argumentar que existe oferta abundantíssima de hotéis e restaurantes que aceitam crianças, e que portanto nenhuma família corre o risco de não encontrar um telhado onde dormir ou um restaurante onde alimentar as suas crianças. O problema é que... o problema não é esse.
A Maria João não poderia ser mais clara: para ela, se o mercado funciona, então o legislador só tem de ficar quieto e não incomodar. Só que isto, para mim, nunca fui essencialmente uma questão económica (ainda que, é verdade, eu tenha argumentado com o facto de as crianças serem umas chatas e ninguém estar para as aturar - devo ter escrito isso num dia particularmente difícil aqui em casa).
Não se trata, portanto, de o mercado "funcionar" ou não, porque o mercado - ao contrário do que muitos pensam - não é a bússula que norteia a minha vida. Eu sou mais de esquerda do que pareço à primeira vista. (Deve ser por isso que gosto do Obama e a Maria João nem por isso, naquele que é, sem dúvida, o maior dos seus defeitos.) A minha questão é muito anterior à questão mercadológica - é uma questão de princípio, ou seja, trata-se de acreditar que está errado impedir uma família com crianças de entrar num local de livre acesso.
Claro que chegados a este ponto admito que não há muito por onde contra-argumentar, porque batemos na parede moral do certo e do errado. Para a Maria João defender o que defende implica que ela considere aceitável um estabelecimento dizer "criança aqui não entra porque faz barulho e chateia". Ora, eu considero isso, de facto, uma discriminação. Acho que é um argumento que não pode ser invocado a priori. Certamente que não é uma discriminação tão grave quanto dizer "você não pode estar aqui porque tem a pele preta", nem tão triste quanto colocar sapos de louça ou metal à entrada de lojas para que os ciganos não entrem. Mas é uma discriminação, ainda assim.
E isso, obviamente, é prévio às questões de saber se o mercado dá ou não resposta às necessidades de pais com filhos. Daí que o argumento da Maria João - "se o mercado resolve o problema, então o legislador só tem de ficar quieto" - seja inaceitável para mim. O mercado (é só uma comparação, ok?) também resolvia o "problema" na América dos anos 50 - o meu ponto é anterior a esse, ou seja, é ético e não económico.
Nesse sentido, eu e a Maria João estamos a discordar do assunto em planos diferentes. A sua análise económica parece-me muito bem feita, mas só é possível uma pessoa saltar para ela se não houver nenhum constrangimento ético em relação a esta questão. Eu tenho esse constrangimento. Ela não. E é por isso que - desconfio - nunca iremos chegar a acordo sobre o tema, por muitos posts que continuemos a trocar. É que se a discutir sobre economia já não é fácil duas pessoas concordarem, sobre filosofia, então, é melhor nem falar.