Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Depois do ponto prévio, vamos então responder às objecções da Diana Figueiredo, já que ela levanta questões interessantes sobre a forma como falamos sobre sexo com as crianças. Apresento primeiro os seus argumentos, que constam do seu primeiro e do seu último parágrafo, e respondo logo a seguir.
Acho incrível toda a gente ficar chocadíssima com tudo o que tenha a ver com sexo, ou outras expressões de amor menos convencionais, ou mesmo expressões de puro prazer. Se na televisão mostrarem dois homens a dar um beijo na boca é um escândalo e tapam os olhos às criancinhas; se mostrarem o resultado de um carro armadilhado com pessoas ensanguentadas e outras desesperadas com os filhos mortos ao colo, será que tapam os olhos às criancinhas? Eu tapo.
A questão que a Diana aqui levanta, sobretudo na parte final, tem a ver com desquilíbrio entre as exibições de sexo e de violência, que embora seja um problema que vale a pena ser discutido, diria que é mais uma importação americana do que propriamente uma questão portuguesa. Ou seja, na puritana América é possível que um filme com mais pinanço do que o habitual possa receber a classificação de NC-17 (ninguém com menos de 18 anos pode assistir ao filme, o que nos EUA significa imediatamente uma limitadíssima exibição comercial, já que numerosas cadeias não aceitam filmes para além de R), enquanto um filme com muito tiroteio, muito sangue ou muita violência psicológica passa facilmente com um R (o que significa que gente com menos de 18 anos pode assistir desde que acompanhada por um adulto).
A história das classificações da MPAA é fascinante, complexa e contraditória, mas não vale a pena estar a abordar isso aqui, ainda que muito patrioticamente o NC-17 tenha sido atribuído pela primeira vez a um filme onde é Maria de Medeiros que passa a maior parte do tempo nua (Henry & June, de Philip Kaufman). Mesmo a questão da violência tem várias subtilezas, porque muitas vezes a mera exibição de sangue e da violência dita "gráfica" é estupidamente penalizada, como no caso do relançamento do clássico A Quadrilha Selvagem (1969), de Sam Peckinpah, que em 1993 levou com um inacreditável NC-17.
O que interessa sublinhar é que, em Portugal e no resto da Europa (excepção feita à Inglaterra, claro), muito por influência da cultura francófona, a relação com o sexo está longe de ter o puritanismo americano, e ainda bem. Nós temos com fartura filmes para maiores de 12 anos onde há maminhas ao léu, e ninguém se anda a indignar por causa disso. Mesmo em relação à exibição da homossexualidade, progredimos imenso, não só em termos legislativos, com a admissão do casamento gay, como em termos "visuais": já há telenovelas em horário nobre com personagens gay, e aos poucos verifica-se uma genuína saída do armário, não só dos homossexuais, mas de toda a população em relação à homossexualidade. Convém não esquecer que as práticas homossexuais eram consideradas crime até à revisão do Código de Penal de 1982. Isto foi há pouco mais de 30 anos.
Aliás, a palavra gay é abundamente usada cá em casa pelos miúdos, infelizmente ainda de forma muito preconceituosa (parte do caminho ainda está por fazer, como é obvio). O "tu és gay!" aprendido na escola é muito recorrente, e obriga a várias explicações. Mas isso também pode acontecer em relação ao "preto" ou ao "cigano". Suponho que todas as minorias sofram disso, e compete obviamente aos pais criarem filhos sem preconceitos e respeitadores das diferenças. Cá em casa, tenta-se que a questão do sexo seja tratada com a mesma naturalidade que a questão da cor da pele ou da etnia.
Agora, tanto em relação ao sexo como à violência, convém distinguir as coisas. Beijar não é o mesmo que apalpar, apalpar não é o mesmo que pinar, pinar de forma simulada não é o mesmo que sexo explícito, e nalgum sítio teremos de estabelecer uma linha, ou de outra forma vou começar a mostrar cá em casa a pornografia dos anos 70 aos miúdos, que sempre foi um tema que me interessou. Não é a mesma coisa, hão-de admitir, mostrar a um miúdo de 13 ou 14 anos o Boogie Nights, do Paul Thomas Aderson (que se passa no meio da pornografia americana dos anos 70), ou o Garganta Funda.
Mas isso não se aplica só ao sexo. Também se aplica, da mesma forma, à violência, e até posso dar um exemplo muito concreto. Como vocês sabem, cá em casa há um grande interesse pela Segunda Guerra Mundial, e qualquer miúdo adora tiros e tanques e cenas de acção. Nesse campo, em termos de realismo, nada de melhor foi feito do que O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg, que é um filme classificado em Portugal para maiores de 16 anos. A classificação parece-me correcta. Eu não tenho problemas em mostrar quase todo o filme aos miúdos, desde que devidamente explicado e enquadrado. Já o fiz. Mas nunca lhes mostrei esta cena,
em que Goldberg é morto lentamente com um punhal após uma luta violentíssima com um nazi. Há violência e violência. E esta cena, de um realismo assustador, passa dos limites. Não quero que miúdos de oito ou dez anos vejam uma sequência com tamanho horror e dramatismo.
Voltemos, então, à Diana e ao seu parágrafo final.
O recalcamento do sexo é que cria comportamentos agressivos. Ou os pais acham que as suas filhas menores ainda não sabem o que é se pode fazer com a língua, para além de lamber gelados?
Pelo que atrás ficou dito, espero que se perceba que não se trata de "recalcar" - trata-se de não exibir. Não se trata de eles não saberem o que se faz com a língua para além de lamber gelados, trata-se de não lhes mostrar tudo o que se pode fazer com a língua além de lamber gelados.
Da mesma forma que há certa violência que passa dos limites, parece-me óbvio, diante de imagens como esta, retirada da mesma digressão Bangerz que passou pela Meo Arena,
que o espectáculo de Miley Cyrus também passa dos limites.
Aliás, num comentário deixado no meu Facebook, o leitor Luís Matos fez uma observação muito pertinente:
Nada em Miley é novo ou sequer particularmente inesperado. Ela é o que tiver de ser para que a máquina (que é muito maior do que ela, vos asseguro) possa continuar a facturar. O que é central à questão é que o imaginário da mulher adulta que faz o que bem entende com o canal vaginal (um produto em si mesmo, se quisermos, com procura e oferta, etc.) é misturado em palco com o imaginário infantil que ali a trouxe. A coincidência de ambos no palco é o que choca mais. E, agora sim tomemos opinião pelo que as coisas são, esse facto é reprovável.
Eu não vi o espectáculo, naturalmente, mas pelo que se vê na net posso confirmar que os peluches dançarinos e esta mistura entre imaginários infantis e imaginários porno está toda lá. Ora, tal mistura não é, de facto, para maiores de 6 anos, que era a classificação do espectáculo, sendo que a própria promotora portuguesa organizou comboios da CP onde estavam explícitos descontos para crianças. Ou seja, Miley quer chocar, o que me parece completamente legítimo porque já é maior de idade, quem a vende quer chocar, o que também me parece legítimo porque isso dá $$$$ e nós vivemos numa sociedade capitalista. Só que ambos não querem só chocar adultos ou sacar $$$$ aos maiores de idade - pelos vistos, também querem chocar e explorar as crianças.
E isso, por mais volta que demos ao assunto, não é nada bonito. Existe uma época própria para começar a falar de sexo, outra para começar a ficar completamente fascinado pelo sexo e outra ainda para começar a praticar sexo. Parece-me boa ideia respeitar cada uma dessas fases, em vez de ter aulas de bondage aos oito anos.
É por todos sabermos o poder que o sexo tem, para o bem e para o mal, que convém ter por ele o maior respeito. E mesmo que decidamos que chegou a hora de introduzir as crianças a este tema, eu diria que Miley Cyrus está longe de ser a melhor professora disponível no mercado.