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Miley e o sexo #2

por João Miguel Tavares, em 18.06.14

Depois do ponto prévio, vamos então responder às objecções da Diana Figueiredo, já que ela levanta questões interessantes sobre a forma como falamos sobre sexo com as crianças. Apresento primeiro os seus argumentos, que constam do seu primeiro e do seu último parágrafo, e respondo logo a seguir.

 

Acho incrível toda a gente ficar chocadíssima com tudo o que tenha a ver com sexo, ou outras expressões de amor menos convencionais, ou mesmo expressões de puro prazer. Se na televisão mostrarem dois homens a dar um beijo na boca é um escândalo e tapam os olhos às criancinhas; se mostrarem o resultado de um carro armadilhado com pessoas ensanguentadas e outras desesperadas com os filhos mortos ao colo, será que tapam os olhos às criancinhas? Eu tapo.

 

A questão que a Diana aqui levanta, sobretudo na parte final, tem a ver com desquilíbrio entre as exibições de sexo e de violência, que embora seja um problema que vale a pena ser discutido, diria que é mais uma importação americana do que propriamente uma questão portuguesa. Ou seja, na puritana América é possível que um filme com mais pinanço do que o habitual possa receber a classificação de NC-17 (ninguém com menos de 18 anos pode assistir ao filme, o que nos EUA significa imediatamente uma limitadíssima exibição comercial, já que numerosas cadeias não aceitam filmes para além de R), enquanto um filme com muito tiroteio, muito sangue ou muita violência psicológica passa facilmente com um R (o que significa que gente com menos de 18 anos pode assistir desde que acompanhada por um adulto).

 

A história das classificações da MPAA é fascinante, complexa e contraditória, mas não vale a pena estar a abordar isso aqui, ainda que muito patrioticamente o NC-17 tenha sido atribuído pela primeira vez a um filme onde é Maria de Medeiros que passa a maior parte do tempo nua (Henry & June, de Philip Kaufman). Mesmo a questão da violência tem várias subtilezas, porque muitas vezes a mera exibição de sangue e da violência dita "gráfica" é estupidamente penalizada, como no caso do relançamento do clássico A Quadrilha Selvagem (1969), de Sam Peckinpah, que em 1993 levou com um inacreditável NC-17.

 

O que interessa sublinhar é que, em Portugal e no resto da Europa (excepção feita à Inglaterra, claro), muito por influência da cultura francófona, a relação com o sexo está longe de ter o puritanismo americano, e ainda bem. Nós temos com fartura filmes para maiores de 12 anos onde há maminhas ao léu, e ninguém se anda a indignar por causa disso. Mesmo em relação à exibição da homossexualidade, progredimos imenso, não só em termos legislativos, com a admissão do casamento gay, como em termos "visuais": já há telenovelas em horário nobre com personagens gay, e aos poucos verifica-se uma genuína saída do armário, não só dos homossexuais, mas de toda a população em relação à homossexualidade. Convém não esquecer que as práticas homossexuais eram consideradas crime até à revisão do Código de Penal de 1982. Isto foi há pouco mais de 30 anos.

 

Aliás, a palavra gay é abundamente usada cá em casa pelos miúdos, infelizmente ainda de forma muito preconceituosa (parte do caminho ainda está por fazer, como é obvio). O "tu és gay!" aprendido na escola é muito recorrente, e obriga a várias explicações. Mas isso também pode acontecer em relação ao "preto" ou ao "cigano". Suponho que todas as minorias sofram disso, e compete obviamente aos pais criarem filhos sem preconceitos e respeitadores das diferenças. Cá em casa, tenta-se que a questão do sexo seja tratada com a mesma naturalidade que a questão da cor da pele ou da etnia.

 

Agora, tanto em relação ao sexo como à violência, convém distinguir as coisas. Beijar não é o mesmo que apalpar, apalpar não é o mesmo que pinar, pinar de forma simulada não é o mesmo que sexo explícito, e nalgum sítio teremos de estabelecer uma linha, ou de outra forma vou começar a mostrar cá em casa a pornografia dos anos 70 aos miúdos, que sempre foi um tema que me interessou. Não é a mesma coisa, hão-de admitir, mostrar a um miúdo de 13 ou 14 anos o Boogie Nights, do Paul Thomas Aderson (que se passa no meio da pornografia americana dos anos 70), ou o Garganta Funda.

 

Mas isso não se aplica só ao sexo. Também se aplica, da mesma forma, à violência, e até posso dar um exemplo muito concreto. Como vocês sabem, cá em casa há um grande interesse pela Segunda Guerra Mundial, e qualquer miúdo adora tiros e tanques e cenas de acção. Nesse campo, em termos de realismo, nada de melhor foi feito do que O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg, que é um filme classificado em Portugal para maiores de 16 anos. A classificação parece-me correcta. Eu não tenho problemas em mostrar quase todo o filme aos miúdos, desde que devidamente explicado e enquadrado. Já o fiz. Mas nunca lhes mostrei esta cena,

 

 

em que Goldberg é morto lentamente com um punhal após uma luta violentíssima com um nazi. Há violência e violência. E esta cena, de um realismo assustador, passa dos limites. Não quero que miúdos de oito ou dez anos vejam uma sequência com tamanho horror e dramatismo.

 

Voltemos, então, à Diana e ao seu parágrafo final.


O recalcamento do sexo é que cria comportamentos agressivos. Ou os pais acham que as suas filhas menores ainda não sabem o que é se pode fazer com a língua, para além de lamber gelados?

 

Pelo que atrás ficou dito, espero que se perceba que não se trata de "recalcar" - trata-se de não exibir. Não se trata de eles não saberem o que se faz com a língua para além de lamber gelados, trata-se de não lhes mostrar tudo o que se pode fazer com a língua além de lamber gelados.

 

Da mesma forma que há certa violência que passa dos limites, parece-me óbvio, diante de imagens como esta, retirada da mesma digressão Bangerz que passou pela Meo Arena,

 

 

 

que o espectáculo de Miley Cyrus também passa dos limites.

 

Aliás, num comentário deixado no meu Facebook, o leitor Luís Matos fez uma observação muito pertinente:

 

Nada em Miley é novo ou sequer particularmente inesperado. Ela é o que tiver de ser para que a máquina (que é muito maior do que ela, vos asseguro) possa continuar a facturar. O que é central à questão é que o imaginário da mulher adulta que faz o que bem entende com o canal vaginal (um produto em si mesmo, se quisermos, com procura e oferta, etc.) é misturado em palco com o imaginário infantil que ali a trouxe. A coincidência de ambos no palco é o que choca mais. E, agora sim tomemos opinião pelo que as coisas são, esse facto é reprovável.

 

Eu não vi o espectáculo, naturalmente, mas pelo que se vê na net posso confirmar que os peluches dançarinos e esta mistura entre imaginários infantis e imaginários porno está toda lá. Ora, tal mistura não é, de facto, para maiores de 6 anos, que era a classificação do espectáculo, sendo que a própria promotora portuguesa organizou comboios da CP onde estavam explícitos descontos para crianças. Ou seja, Miley quer chocar, o que me parece completamente legítimo porque já é maior de idade, quem a vende quer chocar, o que também me parece legítimo porque isso dá $$$$ e nós vivemos numa sociedade capitalista. Só que ambos não querem só chocar adultos ou sacar $$$$ aos maiores de idade - pelos vistos, também querem chocar e explorar as crianças.

 

E isso, por mais volta que demos ao assunto, não é nada bonito. Existe uma época própria para começar a falar de sexo, outra para começar a ficar completamente fascinado pelo sexo e outra ainda para começar a praticar sexo. Parece-me boa ideia respeitar cada uma dessas fases, em vez de ter aulas de bondage aos oito anos.

 

É por todos sabermos o poder que o sexo tem, para o bem e para o mal, que convém ter por ele o maior respeito. E mesmo que decidamos que chegou a hora de introduzir as crianças a este tema, eu diria que Miley Cyrus está longe de ser a melhor professora disponível no mercado.

 

publicado às 11:05


13 comentários

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De Limonada a 03.11.2014 às 17:37

Lamentavelmente só agora encontrei este texto, pois gostaria de ter participado do debate em devido tempo. Eu sou uma dessas mães que não deixou a filha ir ver esta "nova Miley", e explico porquê nest post de Julho deste ano (aqui para quem quiser ler http://alimonadadavida.blogspot.pt/2014/07/ja-disse-que-nao-vais-e-nao-se-fala.html).
Ainda hoje a minha pré-adolescente é uma grande fã da Miley, mas creio que compreendeu que, apesar de o sexo não ser pecado, é suposto ser uma coisa privada e íntima, e não uma forma de vender discos ou fazer concertos.
Mais ainda, percebeu que a Miley (ou qualquer outra artista) deve valer pelos seus dotes musicais e talento (que os tem desde muito nova), e não pelos atributos que ultimamente faz questão de salientar.
Parabéns pelo tema!
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De José Dias a 19.06.2014 às 14:36

Sem dúvida uma boa desconstrução ao comentário da Diana Figueiredo. E vou acrescentar mais umas coisas. Para além de ser um espectáculo deprimente, eu diria mais, a música e a qualidade é muito questionável. Eu não colocaria uma criança a ver aquele espectáculo, não só pela imagem que é passada naquele palco, mas principalmente porque prefiro educar uma criança a ouvir boa música para que no futuro não tenha, em casa, problemas auditivos. Isto de Miley Cyrus é um verdadeiro vírus para qualquer sistema auditivo e visual. E também ninguém venha com o argumento de que as crianças devem ver tudo. Afinal de contas como queremos educar as crianças. Tal como o João Miguel Tavares disse, há um tempo para tudo. E não me parece que aos 6 ou 7 anos seja uma boa altura para as crianças perceberem que imagem é que aquela menina quer passar.
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De Joana Mendonca a 19.06.2014 às 12:54

Já quanto a isto, concordo em absoluto :)
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De Fernando Miguel a 19.06.2014 às 02:53



Que saudades da censura que se foi há 40 anos.

Depois esta "arte" pela qual não dei, nem daria 1 €, existe porque enche e de que maneira os bolsos de quem a faz e promove.

Mas são valores caros a João Miguel :: $$$$$$$$$ / €€€€€€€€
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De Nuno a 18.06.2014 às 17:03

Tenho de concordar com a Diana.
E aproveito para perguntar onde está a indignação por a idade limite para assistir a espetáculos de tauromaquia ser os 6 anos?
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De Nelson a 18.06.2014 às 17:36

Olá,

na minha opinião, tauromaquia não é um espetáculo, é uma espécie de carnificina, mas isso sou eu que digo e que sou barbeiro.

E, obviamente, por esse motivo, essa idade limite é ridícula.

Essa coisa nem deveria existir, mas existindo, a idade deveria ser no mínimo para 17/18 anos.
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De Bruxa Mimi a 19.06.2014 às 18:44

Concordo com a última frase a 100%.
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De LA-C a 18.06.2014 às 16:01

Deixa lá a Miley Cyrus e as suas patetices em paz.
Tenho uma novidade para ti, o impacto que o espectáculo da Cyrus vai ter nas vidas futuras das miúdas de 8 anos que a foram ver é nulo.
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De Nelson a 18.06.2014 às 16:15

Concordo com a LA-C.

Isto é só uma moda.

Lembram-se da febre dos "Tokio hotel" ?

Se não for tão rápido como estes, serão mais 3 ou 4 anos, e depois passa.
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De Bruxa Mimi a 19.06.2014 às 18:44

Na vida futura espero que seja nulo, de facto, na vida atual não sei se será...
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De Rita Paula Lopes a 18.06.2014 às 15:44

Boa! Sem tirar nem por!

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De JP a 18.06.2014 às 15:02

Nem mais!
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De mãe sabichona a 18.06.2014 às 13:31

Excelente post! É que da repressão à banalização há uma linha considerável.

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