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Fazer o trabalho de casa de Português com os putos proporciona com frequência momentos de grande galhofa, ainda que diferida - num primeiro momento desesperamos, dois dias depois gargalhamos. Os miúdos nesta idade ainda não sabem muita coisa, mas já acham que sabem, e mesmo quando não sabem estão sempre disponíveis para inventar.
Regra geral, eles têm a auto-estima muito lá em cima, e adoram atirar à cara dos irmãos os alegados conhecimentos que já possuem e os outros ainda não. A Carolina adora dizer ao Tomás "o queeê?, não sabes isto?!?". O Tomás adora dizer ao Gui "o queeê?, não sabes isto?!?". E o pobre do Gui, regra geral, não tem ninguém para dizer coisa alguma, porque a Rita ainda é muito pequena para entrar em competições de cultura geral.
Mas o mais divertido é quando os mini-detentores de tão grande sapiência cometem vistosas argoladas. Ainda há dias, o Tomás, que é um barra a cálculo mental e tem um daqueles tiques obsessivo-compulsivos que o levam a querer saber as capitais e as bandeiras e o número de habitantes e os principais monumentos e o tempo que demoraram a ser construídos de todos os países do planeta Terra, estava envolvido numa discordância pouco fraterna com o Gui. Ao querer mais uma vez envergonhar o pobre rapaz, virou-se para ele e disse, em tom de denúncia triunfante:
"És mesmo analfabético!"
O que a gente se riu. "Analfabético" é uma palavra maravilhosa, que utilizada neste contexto (ela existe, de facto, mas para designar línguas que não possuem alfabeto) encerra em si a própria ignorância que pretende denunciar. É uma auto-contradição, um oximoro numa só palavra, que dispensa qualquer argumentação adicional. Cá se fazem, cá se pagam: agora, de cada vez que o Tomás se arma aos cucos (o que acontece com alguma frequência), leva logo com o analfabético em cima, para baixar a crista.
Mas o uso criativo da língua portuguesa é uma constante, e só tenho pena de não conseguir registar no PD4 todos os delírios semânticos produzidos numa família de seis, com elevado número de analfabéticos.
Ontem estava a ajudar num trabalho de casa acerca de um texto de António Torrado, no qual uma formiga muito persistente insistia em subir ao cimo da Torre dos Clérigos, e houve mais jocosidade da melhor.
Um dos exercícios consistia em apontar as palavras do texto desconhecidas do senhor aluno, apontar o que ele achava que elas queriam dizer, ir ao dicionário verificar o que elas efectivamente significavam, e depois escrever uma nova frase onde essa palavra era aplicada. Um bom exercício, sem dúvida.
Eis uma das palavras desconhecidas do senhor aluno:
"abismar",
retirada da seguinte frase de António Torrado: "[A formiga] foi por ali acima numa correria de abismar”.
O senhor aluno achou que "abismar" significava "rápido", mas depois encontrou no dicionário esta definição: "lançar em abismo". Esqueceu-se, claro, que uma palavra pode ter mais do que um significado, e ignorou olimpicamente a alternativa "causar espanto", que vinha na linha seguinte da entrada de "abismar".
E munido dessa definição, o senhor aluno escreveu então uma nova frase:
“Eu vou meter a água no lavatório para abismar.”
E é extraordinário verificar como a ignorância, devidamente vitaminada, se torna quase poética. Bem vistas as coisas, talvez o poeta seja uma espécie de analfabético, que decide sabotar a língua depois de a conhecer muito bem. Claro que cá em casa só tenho analfabéticos que sabotam a língua porque a conhecem muito mal. Mas por vezes fazem-no com tanta criatividade que talvez um dia cheguem lá.
Água a abismar no lavatório