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O Salgueiro Maia da paternidade recalcada

por João Miguel Tavares, em 24.04.14

Bom, devo confessar que não estava à espera que o meu post sobre a educação do desprazer causasse tamanha enxurrada de reacções. Já vai em mais de meia centena de comentários, e o interessante não é tanto o número quanto o conteúdo - acho que há por aí muita gente a precisar de desabafar. Assim que um maluco (neste caso, eu) se chega à frente para dizer que ser pai, durante boa parte do tempo, não tem lá assim muita piada, eis que se dá um 25 de Abril doméstico (embora a 23), e de repente toda a gente se sente livre para deitar cá para fora o que lhe vai na alma. Que bonito.

 

Obrigado, leitoras e leitores, por me terem feito sentir o Salgueiro Maia da paternidade recalcada. Existe, de facto, um regime opressivo que nos manda pintar de cor-de-rosa a verbalização do nosso interior sempre que falamos de filhos, porque confessar o nosso desespero ocasional ainda é tristemente sinónimo de sermos maus pais ou más mães. Isso é, obviamente, estúpido, e não foi para isso que se fez o 25 de Abril. Embora eu não seja, de todo, adepto da auto-comiseração, nem acho que devamos andar sempre por aí em choradinhos pelos cantos, tenho a profunda convicção de que o recalcamento constante de certos estados de alma interiores apenas agravam os problemas, e que temos toda a vantagem em ter a coragem de mandar cá para fora aquilo que nos consome - nem que seja no anonimato de uma caixa de um modesto blogue, como o Pais de Quatro.

 

Diante de algumas partilhas fiquei até com a ideia de que eu deveria fundar um MPA - Mães e Pais Anónimos -, só para o pessoal poder desabafar um bocado: "Boa noite a todos, eu sou a Virgínia e sou mãe." A coisa por vezes pode parecer um padecimento de hiper-sensibilidade, porque existe aquela tendência de olhar para a história da Humanidade e pensarmos: já cá andamos há milhares e milhares de anos, só agora é que o pessoal se pôs com mariquices? Mas, na verdade, no que diz respeito à família e à relação com os filhos, eu acredito que estamos a viver, de facto, uma revolução copernicana: os filhos deixaram de rodar em torno dos pais e os pais passaram a rodar em torno dos filhos. Isso muda tudo, como é óbvio. E causa angústia.

 

Esse suplemento de angústia é alimentado por duas fontes. Por um lado, o peso da responsabilidade que sentimos por causa dos miúdos, que já não são apenas um no meio de cinco, de oito ou de dez; já não servem para cavar a terra nem morrem aos magotes em tenra idade; são para nós o que o "precious, my precious" é para o Gollum do Senhor dos Anéis. Por outro lado, existe o peso das nossas próprias expectativas, um desejo individual de felicidade que é muito superior ao de há 200 anos, sobretudo a partir do momento em que o outro mundo, aquele enorme latifúndio por onde Deus passeava, foi perdendo território, e a vida terrestre foi-se tornando muito mais importante do que a vida celeste (mesmo para boa parte dos cristãos).

 

Ou seja, nós não queremos apenas que eles - os nossos filhos - sejam muito felizes. Nós queremos que eles sejam muito felizes sem que estejamos dispostos a abdicar da nossa felicidade. Aqui. Na Terra. E ainda bem que assim é. Mas equilibrar todos estes pratos em apenas duas mãos, e mantê-los a girar, não é para todos. O bom de partilhas como esta é o sentimento de identificação que elas provocam - as pessoas lêem e pensam: não sou só eu. Estou acompanhado. Afinal há mais. E há, claro que há. E felizmente, existe esta coisa curiosíssima que é vivermos num mundo obcecado pela originalidade e a individualidade, e depois descobrirmos um consolo imediato por não nos acharmos únicos, por nos sentirmos acompanhados no sofrimento e nas frustrações.

 

Já escrevi imenso e ainda não respondi a ninguém. Peço desculpa. As respostas virão. Mas isto tinha de ser dito.

 

publicado às 12:58


26 comentários

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De MIsabel a 28.04.2014 às 09:39

Há uma coisa que não percebo, porque é que a felicidade dos nossos filhos implica abdicar da nossa. Essa parte não percebo.
Ter filhos não é fácil, é cansativo, implica jogo de cintura, correrias mil, barulho....
Mas nunca fui tão feliz como a partir do nascimento do meu filho.
Também nunca precisei de tomar café antes...
Ter filhos foi uma opção. Até mais do que isso, foi uma luta (contra a infertilidade).
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De Anónimo a 26.04.2014 às 18:50

Concordo totalmente consigo: de facto é ainda visto de mau tom (isto é um eufemismo) que se admita que nem sempre gostamos de ser pais. Mas pergunto se esta sua honestidade abrange a questão da maternidade. É que foi com muito espanto que vi uma sua entrevista no programa da manhã (não sei se é este o nome) na TVI em que depois das suas habituais gracinhas sobre como é difícil ser pai e como é um papel que nem sempre gosta de ter, com a rapidez de um relâmpago salvaguardou logo que isso já não acontecia com a sua excelentíssima esposa (seguido de imediato pelo seu co- entrevistado Tiago Cavaco que fez questão de afirmar o mesmo sobre a sua própria esposa). Aliás, afirmou que nunca a tinha visto cansada do seu papel de mãe. Pergunto-me se não se apercebeu da incongruência que terá caído nesse momento: sim, porque deu à maternidade praticada pela sua esposa o tom cor-de-rosa (e que eu acredito que também nesse caso não será sempre verdade) que tanto critica...Pelos vistos ainda é mais tabu falar de como ser mãe também tem os seus dias maus e também elas, às vezes, se sentem cansadas de serem mãe (ui! Agora é que foi… que sacrilégio!). Pelos vistos ainda está para chegar o Salgueiro Maia da maternidade recalcada…
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De Sara Rodi a 26.04.2014 às 00:51

Bravo, João! Este blog inquieta e ainda bem, porque sem inquietação não há reflexão. Ninguém é obrigado a concordar contigo em todas as matérias, mas não concordar já obriga a que se pense no assunto, e só por isso acho que já valeu a pena.
Tenho de vir aqui mais vezes ler-te. E lançar-te uns tópicos com as minhas próprias inquietações, para tu trazeres à luz do dia, se te interessarem. Ultimamente ando às voltas com o ensino (http://coisasdepais.blogspot.pt/2014/04/coisas-de-mae-de-6-e-o-tanto-que-o-pais.html). Tema igualmente quente, mas que é tão urgente debater...
Um beijinho!
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De Carolina a 25.04.2014 às 23:19

Olá João! Já há alguns meses que sigo o vosso blog! Admiro imenso a clareza com que escreve e identifiquei-me particularmente com este post! Obrigada por estes momentos de reflexão! E bom trabalho!
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De Pat a 25.04.2014 às 16:40

Este blog era visitado por mim todos os dias, como faço com tantosoutros. Quando digo era, efectivamente é porque o vou deixar de fazer. Sim... Já sei...não gosto não "venho", não gosto não leio, e nem sequer "posso" opinar, diriam uns quantos. Mas, "against all ods" vou opinar uma última vez... Não há paciência! Por mero acaso, ou talvez não, os temas deste blog são cada vez mais absurdos, e mais ainda o desenvolvimento dos mesmo feito pelo próprio autor. E que não consegue resistir a uma provocação, ou dizer o que pensa... Pois já se sabe que assim é. Eu, é que perdi a paciência e o interesse por estas bandas.
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De Bruxa Mimi a 25.04.2014 às 22:06

Desejo-lhe então boas leituras por outras bandas. Eu continuarei a vir aqui. Este post foi mais um dos que gostei!

Ah! Espere! Estou a escrever-lhe em vão, pois como já não vai voltar, não vai ler a minha resposta (ou será que vai acontecer como naqueles relacionamentos em que "can't live with *, can't live without *"?)
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De Anónimo a 26.04.2014 às 18:39

"os temas deste blog são cada vez mais absurdos"

Apesar de não concordar consigo, tenho de aceitar a sua opinião.

"e mais ainda o desenvolvimento dos mesmo feito pelo próprio autor"

Seria difícil um tema absurdo ter um desenvolvimento não-absurdo. Se o tivesse, discutir-se-ia ad eternum a ab-surdez do tema.

"E que não consegue resistir a uma provocação, ou dizer o que pensa... "

Como é que se faz isso? Não resistir a uma provocação sem se dizer o que se pensa? Será qualquer coisa do género: "Deixa-me ir ali aos Lusíadas ver o que o Camões diria sobre esta provocação. Nada!!! Que chatice, nunca mais inventam um Dicionário de Respostas a Provocações!!! Talvez Kafka..."

(é melhor assinar isto para não criar confusões: autora da piadinha-que-afinal-pareceu-uma-provocação)
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De Carla Formiga a 25.04.2014 às 16:03

Já para não falar do apoio familiar que a maior parte dos nossos pais tiveram e que agora é muito mais escasso. Eu lembro-me que as férias do Natal, do Carnaval, da Páscoa eram passadas invariavelmente em casa dos avós ou de uma tia... Mas agora os avós trabalham até aos 65 anos, toda a gente tem empregos e nós temos pudor de pedir ajuda... Ainda bem que existe este blog para nos sentirmos menos sozinhos.
Obrigada pela sinceridade!
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De Lucia Soares a 25.04.2014 às 15:38

Adorei o texto. O meu já está crescido mas continua a falar pelos cotovelos e a ter aquelas atitudes malucas de desatar a falar quando estou ao telefone, só responder depois do berro, fazer as coisas ao centésimo pedido. Enfim....um jovem normal. Também lhe pedi muitas vezes para se calar um bocadinho para eu poder pensar.
Acho que a uma Associação de Pais Anônimos ajudaria muita gente. É avançar com ela.
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De Joana Melo Tassal a 25.04.2014 às 17:57

É, pois é.
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De aboutmeandsometimestherestoftheworld a 25.04.2014 às 10:24

Tenham calma e aguardem serenamente... Eu tenho uma com 22 e outra com 20 e já sairam de casa para estudarem na faculdade. Agora as minhas semanas são de silêncio, tempo para ler, ver séries, escutar atentamente as notícias... Mas sabem que mais? sinto imensas saudades do barulho, do atropelo das conversas, do "calem-se um bocadinho se faz favor". Adoro os fins de semana cheios de ruído: "Mãe, fizeste panquecas?" "Mãe, o sumo é de quê?" "Mãe, olha a mana". "Mãe, já viste como é que a Inês me trata?".
Sinto mesmo saudade da palavra mãe dita, repetida exaustivamente, até eu me lamentar: "Vocês gastam-me o nome". Que na verdade nem é mãe, é Graça.
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De ... a 25.04.2014 às 13:51

É bom o feedback de alguém que vai mais à frente no filme :) Eu pedia uma coisa, ter família perto. Acho mesmo que faz toda a diferença (família em quem se possa confiar e disponível claro). Porque assim eu podia ter ajuda e poupar-me deles nos dias em que estou super doente, nas vésperas de deadlines de artigos, nas vésperas de deadlines de seminários, em dias em que simplesmente estou exausta, podia ir ao cinema nem que fosse 1 vez em 6 meses, podia ir jantar com o marido volta e meia, podia ir ao aniversário da amiga, podia ter vida e programa de adulto esporadicamente, ser eu e não apenas a mãe deles. Porque assim dá a ideia que estamos insatisfeitos quando são pequenos e nos limitam, estamos insatisfeitos quando se vão e já não nos limitam mas fica o vazio, com a moderação de poder volta e meia dividir a responsabilidade deles, haveria um maior equilibrio, eu recuperaria ânimo e descanso e sobretudo ter aquela certeza de haver alternativa caso precisemos..às vezes podemos nem recorrer aos avós mas só o facto de sabermos, naquele dia que estamos tão exaustos, que há sempre uma alternativa caso nos esgotemos, é um consolo psicológico tremendo.
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De aboutmeandsometimestherestoftheworld a 25.04.2014 às 15:26

Tem toda a razão. Porque tal como você eu também me lamentava nos dias em que o cansaço era tal que chegava a pensar: "Mas porque é que eu tive filhas?". Dá muito jeito ter alguém por perto para dar uma ajudinha, sem dúvida. Porque como eu, você e todos os pais e mães, nós continuamos a ser pessoas e muitas vezes sentimos que a nossa identidade está confusa, perdida no meio do quotidiano e das necessidades dos nossos filhos. Mas, à luz atual, aproveitem ao máximo. É desesperante? É. É de enloquecer? Muitas vezes? É cor de rosa? Quase nunca, é mais para o cinza escuro com nuvens, mas é BOM. Muito bom. Como agora também o é. É uma fase nova e diferente, mas igualmente maravilhosa. Afinal são duas mulheres que eu formei, eduquei (e continuo a educar), que me enchem de orgulho todos os dias. Mas a saudade. senhores... Essa não dá tréguas.
Só para ter uma ideia, e se tiver um bocadinho, leia: http://aboutmeandsometimestherestoftheworld.blogs.sapo.pt/8248.html
Isto foi o que senti no dia que partiram. E o que continuo a ser até hoje.
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De Anónimo a 28.04.2014 às 10:13

É esta parte que me frusta mais: saber que não consigo aproveitar como deveria estar a aproveitar (pelo cansaço, pelo stress, enfim, pela falha humana de nunca estarmos satisfeitos com aquilo que temos) e ter perfeita consciência que mais tarde vou ter saudades do que hoje não consigo valorizar como devia ser.
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De sn a 24.04.2014 às 22:30

http://www.youtube.com/watch?v=LJ-vin0tSEE

OS TRABALHADORES DO COMÉRCIO - OU 'TÁS QUIETINHO OU 'LEBAS NO FUCINHO'.

Este Blog merece ter banda sonora.
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De Célia a 24.04.2014 às 21:46

Em tempos lia um blogue que se chamava mmas mães mulheres anónimas. Será que ainda existe?
Também quero ser do MPA!

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Onde o pai fala de assuntos sérios



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