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O tempo da Carolina

por Teresa Mendonça, em 30.09.14

Depois de basicamente ter sido intitulada mamã galinhola, hiperprotectora e obcecada em manter as grilhetas nas patas dos meus elefantezinhos para que eles não corram riscos, resolvi vir pôr ordem no galinheiro.

 

Quando se trata de perceber a partir de que momento uma criança deve/pode ir sozinha para a escola há muitas questões, sobejamente já discutidas aqui no PD4, a ter em conta - a responsabilidade e capacidade de "desenrascanço" da criança, que obviamente muito dependem da educação que os pais lhe deram até essa altura; as contingências físicas e económicas do núcleo familiar (se mora longe ou perto, se tem irmãos espalhados pelas escolas públicas da terra onde vive, se os pais têm horário de trabalho compatível com o da sua escola); se o trajecto até à escola coloca a criança em situação de perigo (bem diferente de correr riscos controlados); e por aí fora.

 

A decisão, obviamente, terá que ter em conta as necessidades da família, mas deveria focar-se acima de tudo na criança. E cada criança é uma criança, pelo que penso que não existe uma data a partir da qual todas as crianças têm obrigação de acordar mais responsáveis e independentes e passar a fazer o trajecto para a escola sozinhas. Convém falar com elas, perguntar-lhes a opinião, e garantir que elas se sentem confortáveis com este importante passo na sua vida cada vez mais autónoma e independente dos pais.

 

Ora, no caso concreto da nossa família, o excelentíssimo esposo e pai cá da casa resolveu decidir que a nossa Carolina estava pronta para ir para a sua escola,  sozinha, a partir do primeiro dia do ano lectivo 2014/2015, indiferente à opinião que ela tivesse acerca do assunto. Pregou-lhe vários sermões sobre como era inaceitável que ele estivesse a perder 14 minutos (7 de ida e 7 de volta) da sua existência atarefada para a acompanhar num trajecto ridiculamente simples e inofensivo, e quando ela ousou murmurar que não se sentia preparada para o fazer sozinha, obviamente a culpa era da mamã-galinha da casa que insistia em não cortar o cordão umbilical e dar asas aos seus filhotes. 

 

Para quem é frequentador do PD4, a auto-confiança da Carolina é muito bem conhecida. Ela adora ser independente e passa os dias a dizer que é uma pré-adolescente, pedindo constantemente para aceder a patamares habitualmente só acessíveis aos mais crescidos. Falta-lhe ainda muita responsabilidade mas está mais do que apta a fazer o trajecto da escola para casa com autonomia e segurança. A primeira vez que foi fazer uma pequena tarefa (comprar pão) sozinha em Lisboa tinha 5 anos (não atravessou nenhuma estrada, mas parte do trajecto não estava no raio de visão da nossa janela onde eu fiquei à espreita), e quando está nos Montes da Senhora a passar férias anda pela aldeia (que não é nada pequena) com total autonomia. Passa a vida a pedir-me para eu não sair do carro quando vou buscar a Ritinha ao infantário, ficando muito ofendida quando alguma auxiliar se mostra receosa de a deixar descer as escadas com a Rita ao colo. Adora ser crescida, ter o seu cartão de acesso ao refeitório e não precisar dos pais para a controlar na escola. É destemida e trepa em segundos aos pontos mais altos de todas as torres de cordas e redes dos parques infantis.

 

Mas pediu um período de adaptação até passar a ir sozinha para a sua nova escola. 

 

A Carolina vê muitos filmes. E lê muitos livros. E fala com muitas pessoas. Ora, os livros e filmes que vê, especialmente os que o seu papá lhe mostra, além de muito interessantes e imaginativos, tratam de situações limite que a fazem (e bem) pensar na fragilidade da vida humana. Ultimamente tem-me falado repetidas vezes numa das primeiras sagas de banda desenhada que o João lhe mostrou - Buddy Longway - e que acaba com a morte cruel da personagem principal e da sua família, sem que eles tivessem feito alguma coisa de mal ou merecessem (se é que alguém merece) tão triste fim. Esta história que ela tanto adorou, ficou imersa na sua consciência e insiste em vir à superfície sempre que ela se sente insegura. Além disso, a zona onde vivemos tem sido muito vandalizada ultimamente e o nosso prédio já foi assaltado duas vezes este mês. Ora, a Carolina ouve os vizinhos falarem sobre esses acontecimentos e sobre a insegurança que sentem.

 

É assim tão difícil de aceitar que a Carolina se sinta ainda pouco confortável em fazer o simples trajecto de casa para a escola, sem a presença de um adulto? Será desejável obrigá-la a enfrentar os seus medos de repente quando ainda agora começou uma nova etapa da sua vida, numa nova escola, onde só conhecia uma colega, que nem sequer era da sua turma? Onde está agora o papá que me obrigou a tirar o Tomás das aulas de futebol (nas quais o Tomás me pediu para o inscrever durante 3 anos consecutivos) por causa de um simples problema de balneário? Será que o excelentíssimo papá não se reviu no filme que o seu elefantezinho estava a viver e resolveu retirá-lo daquele ambiente agressor até que ele se sentisse mais robustecido e auto-confiante?

 

Não tenho dúvidas que as inseguranças e ansiedades dos pais passam para as crianças e podem prejudicá-las irremediavelmente na sua aquisição de autonomia e auto-confiança. Não acho que seja benéfico para ninguém superproteger as crianças e escondê-las da sociedade numa redoma à prova da insanidade de algumas (poucas) pessoas que todos sabemos que vivem as suas vidas algures ao nosso lado. Devemos, sim, garantir que as nossas crianças aprendem a correr riscos evitando os perigos descontrolados. E isso custa, é claro. Mas faz parte do pacote da maternidade/ paternidade.

 

A Carolina sabe que esperaremos o tempo que for necessário para ela. Mesmo que o tempo dela não seja o nosso tempo.

 

publicado às 10:18


28 comentários

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De Silvia a 30.09.2014 às 13:49

Excelentes alegações finais :))
E com o direito de escolha a caber à criança - no fundo a principal interessada a ser ouvida. Coisa muito rara nos dias que correm. Que sorte tem a Carolina de a ter como mãe (sem menosprezar o pai que vem dando um excelente contributo para o bom e saudável equilibrio familiar).
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De Conceição M. a 30.09.2014 às 13:45

Bem que me parecia ser importante ouvir as contra-alegações da excelentíssima esposa e o que a Carolina tinha a dizer sobre o assunto!! Afinal, a questão não era assim tão linear...
A posição da Carolina só revela que é uma menina responsável e madura para a idade que tem. Não tenho dúvidas que antes do final do ano letivo ela fará o tal percurso sózinha - mas ela dirá quando estiver preparada para o fazer.
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De Maria a 30.09.2014 às 12:21

Bem respondido mamã.
Não existe dúvidas que as mamãs são mais coerentes e perspicaz que os papás.
Não estou a dizer que somos melhores, no conjunto interessa que sejamos uma boa equipa.

Outra mamã.
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De Susana Fonseca a 30.09.2014 às 12:20

Gostei. Cá em casa também acontecem destas coisas, os pais tendem a conhecer uma data de regras que dificultam a vida das mães. Os meus filhos tendem a contar mais coisas à mãe mesmo que digam respeito ao pai mesmo que ele seja um pai acessível. Depois na soma disto é com alguma discussão/conversa que se chega a boas conclusões como é o caso. Neste caso ganha a mãe, mas às vezes estas conversas também servem para as mães verificarem que estão a complicar coisas simples.
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De Sn a 30.09.2014 às 12:14

O meu filho mais velho adora rotinas e odeia fazer coisas novas. É muito auto-confiante na sua escola, na sua turma, na sua zona de conforto.
Reage mal quando tem de fazer coisas completamente novas e que o fazem sentir como peixe fora de água (nós também não gostamos nada que mexam no nosso queijo, certo?). E fica com um medo que o deixa paralisado. E lá lhe sai uns "eu não quero, eu não consigo". E eu não o quero paralisado pelos seus medos e a virar costas a um desafio. Confesso que o obrigo. Vai em lágrimas, mas vai. Vai com medo, mas vai. E a recompensa que tem é a de descobrir que conseguiu vencer os seus medos. E que, apesar de não se sentir preparado, afinal, estava.
Claro que eu avalio o custo/benefício. E fico com um nó na garganta e, quantas vezes, de lágrimas nos olhos.
Se há assaltos, se há estradas, se há carros, se a mãe não tem a certeza, então não há condições para dar um empurrão à Carolina. Pois aos medos dela juntam-se os da mãe ( que terão toda a legitimidade!).
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De Ângela Ribeiro a 30.09.2014 às 11:59

Não podia estar mais de acordo. De facto a mãe Teresa rules! :-) A mim aconteceu o mesmo, quando era pequena vi muitos filmes e séries, de qualidade é certo, contudo que me faziam conhecer uma realidade má. Para além disso, sei por experiência própria que o inimigo pode ser aquele que aos olhos dos outros é a pessoa mais adorável que existe. Ainda bem que respondeu Teresa, estava a sentir-me um pouco galinha com os posts anteriores. Obrigada! :-)
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De Olívia a 30.09.2014 às 11:45

Parece-me que ficou 3-0: ganham a mãe e a Carolina, mais o Tomás e a história do balneário...
Olívia
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De Anónimo a 30.09.2014 às 11:19

A isto se chama: lavar roupa suja, em publico.
Pelo "tom" a coisa aqueceu e bem aí por casa...
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De Joana Silva a 30.09.2014 às 11:19

Muito bem escrito Teresa. É mesmo isto. Tive um professor que nos comparava a nós, alunos, com lombo assado. Todos temos o seu tempo de preparação e cozedura. E se devemos privilegiar a autonomia, devemos garantir a individualidade de cada um.
Vamos vencendo, vamos conquistando.
Sempre me pareceu que havia uma versão da história por contar, e que o lado do João, seria a da baleia no quarto! :)
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De gralha a 30.09.2014 às 11:06

Assim se comprova como é importante ouvir os dois lados de uma discussão. Acho que tem toda a razão, Teresa.
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De João Miguel Tavares a 30.09.2014 às 11:09

Mas para ouvir o da Teresa, o melhor é esperar sentada. Ah, ah, ah.
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De Nicole I. a 01.10.2014 às 10:13

Mas o João ouviu a Teresa e a sua opinião em casa e não nos deu todos os factos.
Assumimos sim que é bom dar autonomia a criança e afins e é preciso também a criança sentir-se segura, caso ela não se sinta é necessária novas estratégias. E muita calma e paciência. Os medos raramente são racionais, diga lá a uma pessoa com medo de andar de avião que em terra tem mais probabilidade de morrer, no entanto aquela pessoa hiperventila e entra em pânico. Com os nossos medos não podemos fazer muito senão arranjar estratégias para os enfrentar. Sejam eles andar de carro, avião, ir a escola sozinhos, ou medo do escuro.

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