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"Saudades dos filhos que nunca tive"

por João Miguel Tavares, em 24.01.14

Eu diria que a publicação do post mais tétrico de todos os tempos no Pais de Quatro ficou inteiramente justificada com a extraordinária partilha desta leitora anónima, que aqui deixo para todos poderem ler no corpo principal do blogue. Muito obrigado a ela, quem quer que seja:

 

É curioso ter-se levantado a questão sobre se existe ou não uma relação directa entre a grandeza da dor da perda de um filho e a sua idade. O que veio de imediato ao meu pensamento, enquanto lia o post, foi a dor imensa e insuportável que, mês após mês, tratamento após tratamento, nos assolou e quase me destruiu (não fosse a força do meu amor e companheiro!) sempre que o filho que tanto desejávamos não surgia na nossa vida. De cada vez, essa dor vinha renovada e mais pesada, acumulada, mês após mês, tratamento após tratamento, e era vivida duma forma quase irracional porque eu sentia (e ainda sinto quando revivo esse período...) saudades dos filhos que nunca tive.


Paralelamente, ainda tinha de suportar o "Então? Quando é vêm os filhos?" . A partir duma determinada altura, para nos deixarem em paz, começamos (por minha iniciativa) a responder que não queríamos ter filhos. Depois desta resposta, ficava um silêncio constrangedor da outra parte que acabou por neutralizar estes ataques indiscretos ao nosso sofrimento. Por outro lado, também era quase insuportável ouvir, por parte de quem sabia o que se passava connosco, coisas como “deixa lá, se não conseguirem podem adoptar”, “há tantas crianças que precisam de uma família e se calhar o vosso filho já está à vossa espera”, … tudo dito com muito amor, muita amizade, muita vontade em nos afagar a alma, mas sem a percepção do desejo infinito de ter um filho feito por nós e não o conseguirmos ter. Houve alturas em que senti que, sendo um casal infértil, tínhamos a obrigação social de aceitar essa condição e avançar logo para a adopção (fica aqui o mote para uma discussão sobre este assunto).


Bom, depois vieram os nossos dois nafagafinhos e essa dor ficou guardada aqui, num cantinho que é só dela, e eu fico mais tranquila e em paz relativamente às saudades que ainda sinto dos filhos que tanto desejei e que nunca tive, quando olho para estes filhos felizes, saudáveis, lindos e tão, mas tão!, desejados e penso que estes são os filhos que nós tínhamos de ter.


Quanto ao "automatismo" do amor de uma mãe por um filho/a, a minha experiência também é um pouco diferente da experiência "romântica" de ser mãe relatada pela maior parte das mães que conheço. Os meus filhos são gémeos mas, quando nasceram, a T. precisou de cuidados neonatais e, portanto, só o E. ficou comigo logo após o nascimento. Eu e o E. tivemos alta do hospital e a T. ficou internada na neonatologia. Claro que eu ia todos os dias ao hospital mas tinha outro filho recém-nascido em casa para cuidar e amamentar e, nas primeiras semanas de vida, eu senti que aquele bebé que estava no hospital e que era meu, também era um estranho que eu tinha de conquistar. Ao fim de 3 dias eu já conhecia tão bem o E.: sabia se o choro dele era sono, fome, fralda, frio, calor ou miminho e não conseguia acalmar os choros da minha T...

 

Finalmente, a T. teve alta e eu estava determinada a conquistar aquela bebé que ainda não tinha tido oportunidade de conhecer. Aí, veio um novo contratempo: o E. precisou de fazer sessões de fisioterapia 3x/semana e, como eu é que tinha a licença de maternidade, obviamente, era eu que o levava às sessões. Eu passava muito mais tempo com o E. do que com a T.. A T. ficava com uma das avós e isto foi assim até ao ano de idade. À medida que o tempo passava, crescia em mim um sentimento de culpa enorme por perceber que a minha relação com cada um deles era tão diferente. Cheguei a pensar que o meu amor por ele era maior do que por ela. Mas não! O que aconteceu foi que houve um conjunto de circunstâncias que fez com que eu demorasse mais tempo a conquistar e desenvolver a minha relação afectiva com a T..

 

Para mim, foi estranho ter esta experiência da maternidade. Estava convencida de que eles iriam nascer e ia haver logo um click igual por cada um deles, mas a verdade é que eu tive de "aprender" a minha filha e acho que só ao fim de 2 anos é que a conquistei em pleno. Nunca a amei menos do que a ele, nem a vou amar mais do que a ele, mas a vida quis que eu demorasse mais um pouco a conhecê-la.

 

publicado às 09:06


29 comentários

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De Ana Azevedo a 24.01.2014 às 15:43

Boa tarde a todos!A publicação do post mais tétrico de todos os tempos é minha culpa!Não, não fui eu quem o escreveu!:)A pergunta que levou à sua escrita é que é minha!
Algures na caixa de comentários alguém perguntava o motivo que me levou a colocar aquela questão. Então cá vai:
- Sou estudante de medicina e até começar a estagiar, o sofrimento humano não fazia parte do meu conhecimento. Não vivia numa redoma é certo, mas também nunca tinha ouvido tantos relatos trágicos por dia. E isso atrapalhava-me imenso, porque me tornava completamente impotente. Sei como tratar uma insuficiência cardíaca, mas não sei o que fazer ou dizer - se é que deva fazer ou dizer - a alguém que chora copiosamente à cabeceira do pai que está a morrer. Considero que, ao contrário do conhecimento médico-científico-orgânico que é tanto maior quanto mais ler sobre o assunto em livros e em artigos científicos, o conhecimento daquilo que é a essência humana do doente e dos familiares e como lidar com esse lado só se adquire com a experiência de vida.Estou a 1 anos dos 24 anos, a 1 anos de exercer medicina!Aos 24 anos ninguém- ou quase ninguém - tem essa experiência logo se eu falar e discutir os assuntos com várias pessoas talvez aprenda com a experiência de vida dos outros.

- A morte na infância e todo o seu ónus sempre foi uma área que me sensibilizou de sobremaneira, pela minha maior ainda impreparação para lidar com o assunto.Na universidade vão- nos falando da morte do velhinho que tinha n patologias e que até estava num sofrimento atroz mas quase ninguém nos fala no menino que morreu com 5 anos.Vamos para os estágios nas áreas pediátricas e o mundo cai-nos aos pés. Li milhares de artigos sobre este assunto, li milhares de testemunhos e de opiniões mas sempre ávida por ler mais e mais.Não posso fazer nada pelo menino que está irremediavelmente doente...mas poderei fazer pelos pais? Se puder, eu tenho que descobrir!

-Sempre pensei que era "melhor" para um pai ou mãe perder um filho com 7 anos do que um filho com 7 dias: dum filho com 7 anos vai poder recordar-se dos momentos felizes que viveram, das coisas boas que ele lhe disse dum filho com 7 dias vai ter saudades de tudo que nunca teve mais o que poderia vir a ter.Depois comecei a ouvir os meus pais assim de levezinho quando anunciavam na imprensa a morte de alguma criança com leucemia comentarem "coitados dos pais.se o final era para ser este mais valia ter morrido ao nascer.", encontrei as crónicas do JMT aquando do nascimento da Carolina e comecei a questionar toda a minha forma de pensar.

Sei que não há medidores da dor. Sei que se alguém perder no mesmo acidente a esposa e a filha se calhar vai ficar profundamente triste com a morte da filha "esquecendo" a morte da esposa enquanto que alguém que perde o marido e tem os filhos bem de saúde vai chorar a perda do marido como a maior das perdas.Sei que a fé pode ajudar a viver as perdas de outra forma. Sei que depois do que li ontem e hoje aqui no blogue estou muito, mas muito mais rica do ponto de vista humano. Só serei melhor médica se tiver a par dum conhecimento científico irrepreensível um conhecimento e um respeito humano profundíssimo!

Queria agradecer ao JMT e a todos os seus caros leitores por partilharem comigo a vossa opinião/ perspetiva. Muito, muito obrigada, do fundo do coração.
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De Ana Mendes da Silva a 24.01.2014 às 15:57

Ana Azevedo, o seu texto sensibilizou-me duma forma que as palavras não conseguem explicar.
Não passei ainda pela dor inevitável da perda dos meus pais nem equaciono passar sequer por uma dor maior. A minha filha tem 18 anos e eu VOU morrer antes dela, porque sei que só pode ser assim. E só consigo viver sabendo que vai ser assim.
Mas, quando as dores inevitáveis me atingirem, espero encontrar, nesse momento, "uma" Ana Azevedo.
MUITO OBRIGADA.
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De Anónimo a 24.01.2014 às 16:29

Será, certamente, uma médica humana com coração. Infelizmente, talvez por uma questão de salvaguarda emocional, muitos profissionais de saúde deixam o coração em casa.
Quando o meu sogro estava a falecer encontrei uma médica assim, que nos fez chorar mais ainda ao não ter sensibilidade para perceber o sofrimento dos outros.
Há coisas que embora tenham de ser ditas, podem ser ditas de muitas maneiras. Acredito que quem lida com a morte todos os dias ganhe uma "capa" mas quem tem os seus ali... precisa de uma "Ana Azevedo" que tente compreender a sua dor.
Nunca deixe de ser assim, por muita desgraça que veja (e vai ver de certeza).
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De Márcia a 24.01.2014 às 17:02

O seu coração lhe dirá o que fazer. Peço-lhe que nas situações em que doentes estejam por horas, deixe os familiares, se eles assim entenderem, passarem os momentos finais com os seu ente querido, não há nada que pague isso. Há uma enfermeira (não sou eu), que contra as indicações dos chefes, tem esta prática, as pessoas a têm como um anjo. Quero desejar-lhe muitas felicidades na sua carreira e tudo de bom na sua vida pessoal e profissional, não desista ao primeiro obstáculo porque vão aparece muito.
Existem profissionais de saúde que mais valiam ficar em casa pela má educação que têm e falta de sensibilidade, existem outros que parecem de pedra, mas só eles sabem como estão por dentro quando chega ou têm alguém ao seu cuidado a morrer e nada podem fazer.
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De Joana a 24.01.2014 às 18:01

Ana,
eu estou no primeiro ano de Medicina. Vinha só partilhar algo que te pode interessar: http://in4med.nemaac.net/conferencias/ vê o quarto percurso, sobre cuidados paliativos.
Cumprimentos a todos!
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De Daniel Pinto a 25.01.2014 às 16:34

Olá Ana,

Também eu trabalho na saúde e apesar dedicado a uma parte diagnóstica em que o contacto se resume muitas vezes a "meia dúzia de minutos" percebo perfeitamente o que diz.

E como já alguém por aqui referiu, acho que o melhor que podem fazer é nunca deixar o coração em casa, nunca esquecer que do outro lado esta uma pessoa que poderia ser o seu proprio filho ou pai.

Os profissionais de saúde têm problemas e nem todos os dias acordamos com a melhor disposição do mundo, mas assim que chamo o meu primeiro doente tudo faço para o receber com um sorriso, para ouvir as suas queixas, as suas histórias, por mais sem sentido ou irrelevantes do ponto de vista clínico. Bem sabemos que o tempo é limitado mas temos que o conseguir fazer.

E é tão bom, tão reconfortante quando no fim conseguimos fazer com que a pessoa fique um pouco melhor ainda que clinicamente tudo esteja bem. É tão bom quando no final merecemos ouvir um sincero obrigado!

Não tenha medo de tocar, não tenha medo de chorar, não tenha medo de sofrer com os seus doentes!

Leia, converse... Mas não tente imitar ou copiar alguém, seja você própria e vai ver que tudo vai correr bem.

Tenho a certeza que virá a ser uma excelente profissional e ser humano.

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