De Mara a 30.10.2014 às 11:57
A sobrecarga das crianças tem várias dimensões. Umas são profundamente erradas, e têm a ver com a nossa organização social e a nossa concepção do trabalho, e deviam mudar. As outras têm a ver com as expectativas e os desejos de cada família para os seus filhos, e aqui tenho muita dificuldade em traçar uma linha entre o certo e o errado.
1. As actividades extra escola não deveriam nunca servir para ocupar o tempo dos miúdos à força porque os pais trabalham um mínimo de 8 horas por dia, o que somado ao tempo perdido a andar para cá e para lá dá, para muita gente, dias de 10/12/14 horas em que não têm possibilidade de cuidar dos filhos. Isto é errado. Não devíamos ter tanta gente desempregada e outros a trabalhar tantas horas. O trabalho é um bem público precioso, que dá dignidade, possibilita a integração social e a realização pessoal, bem como o sustento das famílias. Está tudo mal com os nossos empregos e horários de trabalho, mas isso é um problema bem mais vasto.
Tendo um emprego com horário flexível, em que trabalho a partir de casa 60% do tempo, não tenho, felizmente, o problema de ter que ocupar os meus filhos "à força". Aliás, não têm aecs, saem da escola às 16:00, e deixamos sempre duas tarde livres na semana, mais os sábados à tarde, em que me recuso a marcar seja o que for, porque o tempo de não fazer nada também é importante para qualquer ser humano. Almoços de família, torneios desportivos, cinema, passeios, são marcados, e com parcimónia, aos domingos.
Dito isto, os meus filhos têm várias actividades. Há várias razões para, independentemente do tempo de que dispõem, os pais inscreverem os filhos nas actividades.
2. Cá em casa encaramos as actividades extra como portas para o mundo, como algo que os enriquece e faz deles pessoas melhores. Não espero que sejam músicos ou desportistas no futuro. Aliás, espero deles muito pouco de concreto, quero que sejam solidários, atentos ao mundo e aos outros, e que façam todas as coisas da melhor maneira que conseguirem ("para ser grande, sê inteiro" é a frase colada em letras garrafais no quarto deles). Acho que o desporto e a música deveriam ser obrigatórios para todas as crianças e levados a sério, tal como a matemática ou o português e, infelizmente, não são. Como não são, nós procuramos compensar isto.
3. Há muitos pais (no desporto, a partir de certo nível, nota-se muito) que encaram certas actividades extra como um caminho para o sucesso (para a sua própria visão de sucesso) e se projectam de uma forma que me parece um pouco estranha nos miúdos. São estes mesmo pais que promovem uma competitividade quase doentia entre miúdos de 10 anos. Eu acho isto profundamente errado, mas, ao mesmo tempo, a verdade é que muitos se sacrificam (a nível pessoal e monetário) para proporcionar aos filhos o que não tiveram e gostariam de ter tido. São pais que estão lá, em todos os jogos, em todos os treinos.
4. Por fim, é inegável que há coisas que contribuem para o sucesso profissional e que se "compram" nas actividades extra. As línguas são o exemplo típico. Eu adoro aprender línguas e falo bem uma data delas; talvez os pudesse ensinar. Mas tenho consciência de que a melhor aprendizagem é a que se faz com os "nativos". E, de forma ainda mais aguda e cruel, tenho consciência de que não basta saber bem inglês/francês/alemão/russo, é preciso provar que se sabe. Já participei em muitos concursos, como candidata e como júri. Em todos, os certificados de línguas foram um dos elementos que fizeram a diferença entre quem ficou e quem não ficou. Não consigo, em consciência, não os inscrever, tendo possibilidades disso, num instituto, sabendo as consequências que isso pode ter mais tarde.
Tenho amigas que me dizem "só quero que eles brinquem, sejam crianças e estejam felizes". Obviamente, também eu. Mas quero que sejam pessoas felizes e realizadas em todas as fases da vida, e vamos dando as ferramentas que podemos para que isso aconteça, sabendo que grande parte dependerá apenas de cada um deles. Temos um equilíbrio sempre precário e alvo de muito questionamento. É o nosso, de agora. Vamos andando e vamos vendo, tentando sempre respeitar, mas também estimular, os nossos filhos.