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Sobre os métodos naturais #2

por João Miguel Tavares, em 16.10.14

Bom, vamos cá ver se me despacho com este post, porque eu não consigo escrever tão depressa quanto as novas questões que vão surgindo e me dão vontade de contra-argumentar.

 

Os argumentos da Teresa, já citados aqui, vão a itálico e a negro, e aquilo que eu tenho para dizer vai a redondo.

 

Podes usar as pílulas e os preservativos que quiseres, desde que não estejas a chamar à tua relação um espelho da relação entre Cristo e a Igreja, ou seja, um sacramento.

 

Esta é uma entrada da Teresa a pé juntos, mas eu não sou queixinhas. A única coisa que posso garantir é que tenho infinitas falhas no meu casamento, bem mais graves do que o uso de preservativos, até porque nem os uso. Se o espelho está partido, e muitas vezes cai, parte-se, e volta-se a colar, duvido que seja por causa das minhas actividades entre lençóis. Esse é o primeiro problema grave desta questão, que marcou estupidamente a história da Igreja durante toda a metade do século XX: uma obsessão com a moral sexual que a desviou de tanta, mas tanta, coisa mais importante. O papa Francisco parece estar finalmente a corrigir isso e a recentrar prioridades. Abençoado seja ele.

 

Na sua belíssima encíclica, que classificaste de infeliz, a Igreja condena a contraceção porque ela afasta o amor humano da "imagem e semelhança" do amor divino, que é um amor sem limite, abundante, aberto à vida, verdadeiro. Um católico, ao "casar pela Igreja", isto é, ao receber o sacramento, recebe também a responsabilidade de tornar a sua relação semelhante à relação esponsal entre Cristo e a Igreja. O amor de Cristo não é nunca um amor contraceptivo. Não há volta a dar!

 

Segundo problema: eu não quero entrar nas questões teológicas acerca da "relação semelhante à relação esponsal entre Cristo e a Igreja" porque se trata, no meu entender, da mera construção de uma arquitectura argumentativa em cima de um preconceito. Pecado, aliás, que atravessa a Igreja ao longo de séculos. Tipo: "eu acho mal o uso de contraceptivos (até porque o sexo nunca foi coisa bem vista, como é óbvio), agora deixa-me cá encontrar um argumentação que justifique isto".

 

Aos meus olhos, a Humanae Vitae tem essa atitude, do princípio ao fim, daí a ter considerado um momento muito infeliz na história da Igreja - é uma encíclica que tenta justificar um preconceito com uma argumentação com base na Lei Natural, que é aquela coisa que dá absolutamente para tudo. Desde que espremas um bocado a Lei Natural, ela confessa o que quiseres. Afinal, os contraceptivos são uma consequência dessa maravilha natural que é o cérebro humano, que Deus Nosso Senhor nos convida a usar. E os preservativos, quando eram feitos de pele de carneiro, eram super-naturais. Na verdade, não tem fim o cortejo de barbaridades que ao longo da História se apoiou em cima do argumento da "Lei Natural".

 

Mas olhemos mais em detalhe para a encíclica. A Humanae Vitae deriva do velho ensinamento que "qualquer acto matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida", não cabendo ao homem separar o "significado unitivo" do "significado criador". E quando nós perguntamos: porquê? A resposta é: "porque está em contradição com o desígnio constitutivo do casamento e com a vontade do Autor da Vida". Que é uma espécide de "porque sim". Porque Deus assim ordena. Mas eu, que sou teimoso, gosto de compreender aquilo que Deus me ordena. Porque, em geral, não tenho quaisquer problemas de compreensão com aquilo que me é ensinado nos Evangelhos. Apenas como algumas coisas que me são ensinadas no Catecismo.

 

O resultado deste posicionamento unitivo-criador é que a Igreja não se limitou a condenar os contraceptivos na encíclica. As notas pastorais dela derivadas condenam também a fecundação in vitro, e não só por se desperdiçarem potencialmente vidas já geradas (uma preocupação legítima). Tal como condena a laqueação de trompas em qualquer caso, mesmo que uma mulher tenha feito várias cesarianas e uma próxima a coloque em risco de vida. Porque Deus lá sabe o que é melhor para nós.

 

Só que, ao mesmo tempo, como nenhuma espécie de planeamento era impensável em 1968, permite os "métodos naturais", aos quais o Carlos Duarte já chamou nos comentários, e muito bem, uma "batota canonicamente legalizada". Porque a única diferença entre uns métodos e outros é, precisamente, serem "naturais" e convidarem à "castidade". Ora, se há coisa a que um pai de quatro (já para não falar de seis ou sete) não precisa de ser convidado é a praticar a castidade - com a falta de tempo, o stress e o cansaço não fazemos nós outra coisa, não é?   

 

E deixa-me dizer-te, para encerrar o comentário - não comentarei mais sobre este tema - que mesmo que a Igreja dissesse outra coisa, eu nunca voltaria atrás na minha decisão de não tomar medicação para fazer amor.

 

Mas ninguém te pede para voltares atrás. Para mim, é como a castidade dos padres: deveria ser uma opção. Daí eu falar num post anterior "que a Igreja deve reduzir as suas imposições àquilo que é o centro irredutível da fé cristã". Naquilo que não é absolutamente central e não tem uma deriva óbvia dos Evangelhos, como é manifestamente o caso, a atitude da Igreja deveria ser de convite, e não de imposição. Tu podes convidar as pessoas a utilizar os métodos naturais, por entenderes que esse é um caminho mais perfeito, mas não deves condená-las por não o fazerem.

 

Ou seja, eu não tenho qualquer problema com quem utiliza os métodos naturais, se isso os faz mais feliz na sua cama e realizados na sua fé. Mas tenho tudo contra dizerem a um católico que ele não pode chamar ao seu casamento um sacramento só porque utiliza a pílula ou o preservativo. Sorry.

 

Acho triste um marido permitir à sua esposa tomar medicamentos - a pílula é um medicamento, sabias? - para que ela esteja sempre disponível para o sexo. O ciclo natural da mulher é uma das maiores maravilhas da natureza, e conhecê-lo e respeitá-lo em casal é uma das grandes graças que nós tivemos desde que nos casámos.

 

Aqui parece-me que cais no velho preconceito de colocares o marido na posição de quem quer sempre o truca-truca e a mulher na posição do "ok, se tu queres, lá tem de ser". Admito perfeitamente que possa ter sido uma formulação que te saiu mal. Só que, infelizmente, é uma formulação derivada da própria encíclica, que tem passagens como esta: "É ainda de recear que o homem, habituando-se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e psicológico dela, chegue a considerá-la como simples instrumento de prazer egoísta e não mais como a sua companheira, respeitada e amanda." É esta a linguagem empoeirada que tu chamas "belíssima", Teresa?

 

Mais: penso que, 46 anos depois da Humanae Vitae, podemos dizer que o papa Paulo VI se enganou rendondamente: a pílula fez muito mais pela libertação sexual das mulheres - ou, se quiseres, pela sua "licenciosidade" - do que pela libertação sexual dos homens, que sempre estiveram, aliás, bastante libertos.

 

A fertilidade feminina não é uma doença, não precisamos de medicação para viver uma vida sexual plena e feliz. Planeando naturalmente a nossa família, os dias deixam de ser todos iguais... Graças a Deus, a minha vida sexual é plena e abundante, os meus filhos também são numerosos, mas ainda não engravidei sem o desejar.

 

O argumento farmacêutico, de que isto é tudo um complô da indústria, não vou sequer rebater. Mas noto que o preservativo não é um medicamento, e portanto se o problema fosse a medicação, ele tornar-se-ia legítimo. Não é isso que tu defendes. Quanto a nunca teres engravidado sem desejares, fico muito feliz por isso. Como bem sabes, milhões de mulheres em todo o mundo não podem dizer o mesmo. Mas também não vale a pena entrarmos aqui na questão de saber quantos abortos poderiam ter sido evitados se os ensinamentos da Igreja fossem outros.

 

Embora a Igreja ensine que há males menores que devem ser tolerados para evitar males maiores, o importante neste tema é que eu, e milhões de pessoas como eu, por mais que abram o seu coração e tentem estudar os argumentos da Igreja, não encontram a menor lógica na sua posição em relação aos métodos contraceptivos. Não se trata de ser um mal menor. Trata-se de não ser um mal. E de, muitas vezes, ser até um bem.

 

 

publicado às 11:01


65 comentários

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De João Miguel Tavares a 16.10.2014 às 13:41

Sim, mas isso é a questão do sacrifício, ou, se preferires, da renúncia. Como imaginas - ou melhor, como sabes -, é matéria que dá abundantes conversas cá em casa. E tens razão: não compreendo, nunca compreendi e o mais certo é nunca vir a compreender. Mas respeito. Respeito sempre, desde que se mantenha uma profunda coerência de vida.
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De Anónimo a 16.10.2014 às 13:49

Comentário apagado.
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De JP a 16.10.2014 às 16:01

Antes de mais, tenho a dizer-lhe que respeito a sua posição, embora não concorde consigo. Identifico-me, muito, com a argumentação do JMT e apenas me intrometo para discordar de si quando escreve "Na Igreja (...) há muita tolerância e misericórdia para caminhadas diferentes."

Para contextualizar: sou católica e o meu marido agnóstico. Conseguimos casar pela Igreja quando encontrámos um padre disposto a celebrar um casamento misto, entre um crente e um não-crente (curiosamente, fomos encontrar esse padre, de quem ficámos amigos, em Braga!!!).

Enquanto casal, acho que a nossa caminhada tem sido gradual. Decidimos não baptizar os nossos dois filhos. Vivo a minha religião de forma não impositiva e, portanto, entendo que os meus filhos, se assim o desejarem podem ser baptizados quando quiserem. Da mesma forma, quando me recolho em oração/meditação, e se eles querem, juntam-se a mim e oram comigo. Não negamos a educação religiosa aos nossos filhos mas sempre lhes demos as ferramentas para eles se questionarem sobre isso.

Pois este ano pediram-nos para irem para a catequese. Quando fui tentar inscrevê-los, a Igreja que deveria ser tolerante às caminhadas diferentes, fechou-lhes a porta porque não são baptizados. É esta a tolerância e misericórdia que encontramos na nossa Igreja e é esta Igreja que afasta as pessoas. Pergunto-me: onde está a tolerância de que fala?

Eu não me revejo, de todo, numa Igreja que rejeita crianças porque não receberam o baptismo. Os meus filhos estão a fazer uma caminhada diferente e, se ninguém lhes fechar a porta, eles podem vir a encontrar o que procuram na Igreja. Mas é preciso que as portas não se fechem. O baptimo terá de ser uma escolha deles, livre de quaisquer imposições.

A minha esperança é que os exemplos dados pelo Papa Francisco derrubem preconceitos institucionalizados na nossa Igreja. O discurso e as acções deste Papa são mesmo a esperança de que a Igreja se pode aproximar do mundo de hoje, que é muito diferente do que era há dois mil anos atrás. E, indo ao tema em que me intrometi, passados dois mil anos, o mundo é tão diferente que os casais podem viver a sua sexualidade, e celebrar a sua entrega mútua, em liberdade.

Gosto muito de ler o que escreve aqui e no seu blog (também passo por lá) e as suas partilhas abrem caminho para muitas das minhas reflexões. Por isso, lhe agradeço :)
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De Teresa Power a 16.10.2014 às 16:12

Tem toda a razão! Digo-lhe com sinceridade que aqui na minha paróquia, onde sou catequista, nunca se fechou a porta a nenhuma criança por não ser batizada. Temos tido na catequese muitas crianças não batizadas, e temos recebido crianças que entram para a catequese com doze, treze anos, e naturalmente se inserem no grupo dos meninos da sua idade, sem olhar a mais nada, ou seja, sem repararmos se já fizeram a comunhão ou se são batizados. Querem aprender, entram para um grupo de crianças com a sua idade, para poderem caminhar com naturalidade. E depois, claro, adapta-se o programa a elas! Nunca aqui vi fecharem a porta a ninguém! Se conhece o meu blog, então sabe que quando eu falo em tolerância e misericórdia eu estou a falar do que procuro viver e do que procuro praticar :) Bj
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De JP a 16.10.2014 às 16:25

Sim, sei que procura viver, e acima de tudo praticar, o que acredita. É por isso que a admiro a si e à sua família.

Infelizmente, ainda são muitas as paróquias conservadoras a este ponto. Pessoas como a Teresa são a esperança de que as coisas podem mudar; de que há vontade e espaço para a mudança. Obrigada :)

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