Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
O LA-C chamou-me a atenção para este excelente texto que a Inês Teotónio Pereira escreveu no i de sábado, sobre um tema que temos vindo a abordar no blogue, e que eu vou roubar escandalosamente por todas as razões e mais uma, que tentarei explicar um dia destes:
Um dos meus filhos tinha dificuldades de aprendizagem. Começou a ler tarde, dava erros ortográficos, distraía-se com as moscas (literalmente), não decorava coisa alguma e sempre que podia deixava os trabalhos de casa por fazer. Também se esquecia de tudo, era desorganizado, não dava importância aos testes nem percebia o fundamento das avaliações. Não era competitivo e tinha dificuldade em perceber a importância que os pais e os professores dão à escola. Desde cedo que desenhava com pormenor e aos cinco anos já fazia desenhos em perspectiva e com profundidade, mas não tinha paciência para pintar ou para fazer os traços direitos.
Um dia, numa luta renhida com as contas de dividir, levantou a cabeça e desabafou: "Gostava de saber o que é que este lápis pensa se ele conseguisse pensar." Foi mais ou menos nessa altura que descobrimos que usava a parede junto da secretária para desenhar enquanto fingia que estudava. Era também talentoso a representar e conseguia inventar uma história interminável a partir de dois palitos. Da escola chegavam-nos notícias de "falta de interesse", "falta de concentração" porque "é muito distraído" e "trabalha pouco". Em casa, nós, pais, pressionávamos, castigávamos e espremíamos a criança cada vez que chegava mais um recado ou mais uma nota. Sobre os talentos pouco lhe dizíamos porque o tempo era escasso e o calendário escolar não dava tréguas: antes do teatro está a Matemática e antes da criatividade está o Português, sentenciávamos.
No 4.º ano conheceu os livros do Harry Potter e foi assim que se viciou na leitura. Os erros, esses, persistiam e as notas continuavam a sair esforçadas. A motivação era mínima e a escola continuava a ser um mal necessário na qual passava os dias. O Harry Potter era o seu esconderijo. No 6.º ano chegaram os exames e com eles a possibilidade real de fracassar. Assustou-se com a eventualidade e, ajudado pela maturidade, estudou três semanas seguidas sem levantar cabeça, com horas marcadas para as refeições e com objectivos diários impostos por nós. Conseguiu a melhor nota da escola e da vida dele no exame de Matemática e deixou pais e professores de queixo no chão. Gostou da experiência e ainda mais da sensação. Nunca mais repetiu o resultado, mas as notas nunca mais saíram esforçadas, os trabalhos de casa nunca mais ficaram por fazer e nunca mais se denunciou a sua falta de concentração.
Para trás ficou o teatro e do desenho nunca mais ouvimos falar. Diz ele que não desenha bem porque não consegue fazer traços direitos ou imitar paisagens. A comparação com os desenhos fotográficos dos colegas e as classificações suficientes dos professores esfriaram o seu empenho e comprovaram que o seu talento afinal era apenas suficiente. Com a ajuda do tempo acabou por desistir. Dos oito anos da vida escolar do meu filho tiro duas conclusões. A primeira é que durante anos dei mais importância à escola e às considerações dos professores que ao meu filho, dei mais importância às dificuldades denunciadas pelos professores que aos talentos que eu conhecia. Sem saber cavei um fosso de frustrações que aumentava cada vez que chegava uma nota ou um recado, como se cada um deles fosse mais uma prova do seu fracasso (e do meu). Sem querer amolguei-lhe a auto-estima e eduquei-o tendo como referência as pautas escolares.
A segunda é que apesar de mim e da escola ele conseguiu. Conseguiu porque quis, porque um dia resolveu querer. As ameaças, as pressões, os castigos e o desespero perante cada má nota não tiveram qualquer efeito positivo, apenas negativo. As dificuldades de aprendizagem são apenas isso, dificuldades. E não querem dizer mais nada sobre os nossos filhos. No dia em que os confundimos com as dificuldades deles, em que olhamos para eles e em vez de crianças vimos problemas de matemática, os nossos filhos facilmente acreditam que são eles próprios os erros e os problemas. E então sim, as dificuldades perpetuam-se e podem ultrapassar em muito o âmbito da escola. A felicidade e o futuro dos nossos filhos não se medem pelo seu desempenho escolar - que mais cedo ou mais tarde, com mais ou menos trabalho, acaba por se cumprir - mas podem estar comprometidos se nós, pais, os julgarmos e medirmos por isso. O principal problema das dificuldades de aprendizagem é a dificuldade dos pais - não dos filhos - em lidar com elas.
Eis uma belíssima partilha de uma leitora, a propósito deste post, que nos demonstra como ainda estamos tão longe de compreender como funcionam as nossas cabeças e as cabeças dos nossos filhos. Talvez sirva para acalmar os pais mais ansiosos (os cá de casa incluídos):
A opção de procurar um psicólogo (um bom) parece-me a melhor, pois ajudará a perceber o que se passa e a definir as estratégias adequadas e que não prejudiquem a relação mãe-filha (que não deve ser mãe/professora-filha!).
Mas já agora conto um pouco da minha história: Também eu tenho um irmão mais velho muito inteligente, bom aluno e que sempre teve boas notas a tudo (5 a quase todas as disciplinas). Era daqueles meninos que as professoras adoram e consideram exemplar! Eu não. As notas eram medianas, os professores diziam que eu era pouco interessada, pouco aplicada, faladora, distraída, etc... Aparentemente também diziam de mim "ela até é inteligente, mas isso não se vê nos resultados". É verdade que eu sabia muitas coisas, mas nada daquilo que era perguntado nos testes. A questão da comparação com o mais velho não ajudava, claro. E sei que os meus pais sofriam bastante com isto.
À medida que o tempo foi passando, as coisas foram mudando um pouco, apesar de eu não saber exactamente qual foi o mecanismo. É verdade que os meus pais sempre foram exigindo que eu tivesse boas notas. Penso que com o avançar da escolaridade, os temas me iam interessando cada vez mais (o salto maior no meu desempenho foi a partir do 9.º ano, altura em que há uma maior especialização das matérias escolares, indo mais ao encontro do que os alunos gostam). Acho também que é a partir dessa altura que se valoriza mais um pensamento menos convencional (e eu acho que às vezes era um pouco "fora da caixa")...
Hoje posso dizer que sou um exemplo de sucesso académico: sou doutorada, sou boa no que faço, sou procurada pelos meus colegas para fazer - ou ajudá-los a fazer - as coisas complicadas.Na altura (isto foi há 30 anos) não havia o acesso a psicólogos que há hoje. Não sei se teria ajudado ou não. Continuo a achar que para o seu caso, o psicólogo é a melhor opção. Mas acrescento que às vezes também é preciso saber entender a inteligência dos miúdos e utilizar estratégias alternativas de aprendizagem, pois eles não são todos iguais. Alguns são apenas menos convencionais e mais "out of the box"! (JMT, acho que se calhar é isto que se passa como o Gui!)
Porque o PD4 também é dos seus leitores, fica aqui a partilha desta mãe, muito preocupada com as aparentes dificuldades de aprendizagem do seu segundo filho. O seu pedido de ajuda estava na caixa de comentários deste post, onde vários leitores já opinaram sobre o tema, mas aqui ele tem mais destaque e outras pessoas podem ajudar com dicas e palpites.
Se me permite vou deixar o meu "problema", quem sabe algum dos comentadores me ajude com as suas experiências de vida.
Tenho dois filhos. O mais velho (7.º ano) sempre foi bom aluno, estudioso e, verdade seja dita, nunca me deu problemas com a escola. Talvez seja este o problema, por eu "pensar" que seria assim com a segunda filha. Ela está agora no 2.º ano. Desde o ano passado que a professora me diz que "é distraída, faladora e desconcentrada" (noto isso também), que demora a entender os conceitos e ... que tenho de trabalhar muito com ela em casa.
Mas aqui está o problema. Eu sinto que não estou a conseguir contribuir para melhorar o seu desempenho e o (pouco) tempo que estou com ela à noite e aos fins de semana está a tornar-se num suplício. Tentar explicar-lhe matemática é para esquecer! Parece que não percebe mesmo...
O estranho (ou talvez não, já nem sei nada) é que é uma miúda inteligente, muito perspicaz, decora o sítio de tudo (se eu não souber de algo em casa, ela sabe de certeza), é responsável, faz a mochila e o saco da piscina sozinha, nunca se esquece de nada. Será que é mesmo "limitada" para a matemática? Como poderei ter a certeza?
Tudo me tem passado pela cabeça. Pô-la em explicações (coisa que sempre me pareceu absurdo no 2.º ano...), levá-la a um psicólogo para tentar avaliar a sua capacidade (se ela não tiver realmente capacidade, vou andar a massacrá-la?). Não sei mais o que fazer. Só sei que me sinto a falhar sempre que falo com a professora, que me diz que tenho de "trabalhar muito com ela".
Eu faço o que posso, mas nunca é suficiente. Já não brincamos, já não saímos... Estou a ficar desesperada! Há alguém na mesma situação?
Depois de ter sido vilmente acusada pelo meu excelentíssimo marido de querer transformar os nossos fins-de-semana familiares em prolongamentos dos centros de treino para os exames nacionais do 1º ciclo, como se eu fosse o implacável professor do Tom Sawyer, achei que deveria dar a minha versão sobre o tema.
Nas circunstâncias em que vivemos (que são tão diferentes das dos países nórdicos!) não me parece desajustado criar exames nacionais no final de cada ciclo de ensino para aferir os conhecimentos que cada aluno obteve. Todos sabemos que há diferentes métodos de ensino e de avaliação, mas há um determinado número de conhecimentos básicos (e não estou a discutir, nem me compete a mim fazê-lo, se eles foram correctamente avaliados nestes exames) sem os quais a progressão do ensino na criança é dificultada, pelo que me parece sensato verificar a sua preparação antes de iniciar um novo ciclo na sua vida pessoal e académica.
Esta avaliação deveria ser encarada com a mesma naturalidade e seriedade que qualquer teste na vida curricular de um estudante, de acordo com a idade de cada um. E para ela se deveriam preparar com rigor. Não é isso que acontece a cada dia na nossa vida profissional?
Ora, é aqui que começam as divergências de opinião com o excelentíssimo esposo. Eu acho que compete aos pais vigiar e apoiar, quando necessário, a educação dos filhos. Ele acha que os pais devem respeitar a autonomia do estudo dos seus filhos desde o primeiro momento, só devendo intervir a pedido dos próprios filhos. Portanto, ele assume que os miúdos adquirem métodos e interesse pelo estudo assim por... geração espontânea.
No primeiro ano de escolaridade, a esmagadora maioria das crianças precisa de apoio em casa para criar hábitos de trabalho, gosto pela leitura, curiosidade pela pesquisa, prazer pelo conhecimento. E não consegue isso (mais uma vez, na maior parte dos casos) só com aquilo que aprende na escola. Nem só a observar os pais desenfreadamente absorvidos pelo seu trabalho. É preciso inevitavelmente acompanhamento em casa, porque nessa altura os filhos não têm a autonomia e a responsabilidade que o meu excelentíssimo esposo tão eloquentemente advogou.
Há que suar as estopinhas para o conseguir, não só no estudo acompanhado, mas utilizando os momentos em família para jogos e discussões interessantes sobre os mais variados assuntos (que não incluam a vida dos vizinhos e os acontecimentos das telenovelas/ programas de televisão mais populares). Como é que os miúdos hão-de formar um imaginário rico o suficiente para escreverem composições criativas se não lêm livros variados, não vão a museus, não falam com pessoas de diferentes idades e contextos sociais, não rebolam na erva e exploram matas e florestas, não conhecem ambientes bucólicos e cosmopolitas (seja presencialmente seja via filmes/ reportagens/ relatos)?
Já os métodos usados para o conseguir são muito diversos e eu sou completamente contra fazer a papinha aos meninos, resolver-lhes os TPCs, fazer resumos da matéria ou questioná-los até à exaustão acerca do seu conteúdo (e são vários os exemplos desses que encontramos à nossa volta). Um educador deve ensinar a fazer perguntas e não a decorar respostas, e isso faz toda a diferença na preparação de um estudante e no sucesso de um adulto trabalhador.
A partir do momento em que esses hábitos estão conseguidos, claro, surge a autonomia, mas ainda assim nos primeiros anos com alguma vigilância e orientação. Não me esqueço de há um ano ter descoberto, na véspera do teste final de Matemática da Carolina, que ela não sabia usar o algoritmo da multiplicação. O mesmo é dizer que ela errava quase todas as operações que envolviam a multiplicação de números "compridos". Como a Carolina gostava de usar o cálculo mental, ia-se safando o suficiente para nunca termos dado conta disso (nem a sua professora), e nem sequer ela percebia a razão pela qual errava invariavelmente os problemas que envolviam cálculos mais complicados. Só me apercebi disso (devia estar com a cabeça no ar quando a professora explicou o algoritmo ao resto da turma) depois de me ter sentado ao lado dela, antes do teste, e lhe ter pedido para me mostrar a matéria que iria ser avaliada.
Claro que isto não deveria ter implicações graves no futuro da Carolina, mas aquela revisão forçada da matéria impediu que ela passasse a fazer contas de multiplicar com uma perna coxa. E são tantos os exemplos infelizes à nossa volta em que a inexistência de bases de formação bem sedimentadas incapacitam a progressão e o gozo da aprendizagem nos anos seguintes....
Dito isto devo dizer que, nos fins-de-semana anteriores aos exames de Matemática e Português, eu não estudei um único minuto com a promitente examinada, já que ela ouviu atrás da porta a minha conversa com o seu advogado-papá e acabou por invocar o direito inalienável aos dias de reflexão pré-examinal. E assim foi.