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A propósito deste post da Carolina a ir sozinha para a escola pela primeira vez, houve quem perguntasse como é que tão badalada questão se resolveu a contento do pai. Ou melhor: a contento de todos. Pois bem, resolveu-se como é suposto: ao fim de 15 dias de aulas, a Carolina pediu finalmente para ir sozinha para a escola. Por um lado, já estaria farta de ouvir o pai resmungar; por outro, fez uma nova amiga, com a qual se encontra a meio caminho, e depois seguem juntas para as aulas.
A mamã da Carolina, depois de me ter humilhado em público, terá também sentido algum rebate de consciência, e é possível que tenha feito trabalho de bastidores para que a sua filhinha se resolvesse a saltar mais depressa do ninho. Não sei. Elas não me contam muita coisa. Da minha parte, tratou-se basicamente de utilizar as tácticas habituais do contra-terrorismo feminino: aparente mão de veludo, camuflada de um eficientíssimo pilão pica-miolos, que conduz nove vezes em dez à rendição do gajo.
Comigo, costuma resultar: no que diz respeito a discussões com a excelentíssima esposa, eu acabo quase sempre com as duas mãos levantadas e a abanar a bandeira branca. Sinto-me frequentemente a encarnação sapiens sapiens do provérbio "cão que ladra não morde". Em 100 assuntos respeitantes aos miúdos, há 99 em que eu digo "ok, leva lá a bicicleta" - só que de vez em quando aparece um que eu considero mesmo, mesmo, mesmo essencial. E a Carolina ir sozinha para a escola no quinto ano era um deles. Nesses casos, transformo-me numa gaja. E não desisto.
A Teresa escreveu no famoso post em que me atropelou com um rolo compressor que eu teria pregado à Carolina
vários sermões sobre como era inaceitável que [eu] estivesse a perder 14 minutos (7 de ida e 7 de volta) da [minha] existência atarefada para a acompanhar num trajecto ridiculamente simples e inofensivo
mas a crítica - posso dizê-lo agora - é altamente injusta. Foi isso que eu, por antecipação (ao fim de 22 anos já as vejo chegar à distância), quis dizer com o post "tanta fama para tão pouco proveito":
Eu sou egoísta e autocentrado, mas tenho praticado muito pouco. Donde, acumula-se uma dupla frustração: a de andar a praticar muito pouco o meu egoísmo e autocentramento, e a de ser acusado de uma coisa que não tenho tempo para praticar.
De facto, o meu desejo de a Carolina ir sozinha para a escola não tem nada a ver directamente com a minha independência. Tem a ver com a independência dela, e de como isso é importante numa família numerosa: nós não nos podemos dar ao luxo de não empurrar para a frente os filhos mais velhos. Pela simples razão de que precisamos da ajuda deles para não darmos em doidos.
Lembram-se de eu uma vez ter dito que a Teresa não tinha quatro filhos mas quatro vezes um filho? Ela é uma mãe de altíssimas rotações, e eu tenho manifestas dificuldades em acompanhar o seu ritmo. Ora, ao contrário dela, eu não vejo o meu - o nosso - descanso como um luxo, com o qual necessito desesperadamente de adornar a minha vida burguesa. O nosso descanso e a independência dos nossos filhos não são luxos - são peças essencias na nossa qualidade de vida e na qualidade da paternidade que praticamos junto deles.
Eu sou um péssimo pai quando estou esgotado e impaciente. Ter uma noção de família em que nos entregamos tanto aos filhos que quase nada sobra para nós não é só mau para marido e mulher - é mau para os próprios filhos. Porque somos piores pais e porque eles vivem excessivamente dependentes do nosso empenho. A Carolina ir sozinha para a escola melhora a nossa qualidade de vida enquanto família, com certeza. Mas não só: dá-lhe uma liberdade e uma independência que melhoram a sua própria qualidade de vida. Todos ficamos a ganhar.
E quanto a estar a chover no dia 1, conhecem o clássico provérbio: independência molhada, independência abençoada.
Ontem foi um dia muito importante.
Eu não queria voltar ao tema da autonomia, mas a leitora Ana Isabel escreveu nos comentários a este post uma coisa que me parece muito importante:
Já se sabe que é perigoso [os miúdos] fazerem uma data de coisas sozinhos, mas realmente tem de ser porque não existe outra maneira de aprenderem a defender-se. Garanto que é pior [os pais] andarem sempre em cima deles, pois correm o risco de os superprotegerem e isso pode ter consequências muito graves para toda a vida.
Eu, infelizmente, sei [do que estou a falar], pois tenho um caso na família, em que tenho acompanhado, sem poder fazer nada, uma mãe a estragar dois filhos. Como ela não consegue lidar com os seus medos, resolveu prender completamente as crianças, e além disso ainda as "informa", assustando-as, das consequências que os seus actos podem ter. Tanto [assim é] que nunca tinha visto uma criança de três anos que, quando dá um passo fora da porta, pede para pôr o chapéu, pois o sol faz mal. Tudo o que é exagero [é que] faz mal.
Esta partilha da Ana Isabel fez-me recordar uma história recente que eu próprio vivi, num jogo de bola com outras crianças. A certa altura, a bola saltou para trás de uns arbustos que davam pelo joelho de um miúdo que teria talvez 11 ou 12 anos. Era um puto enorme. Qualquer criança normal pularia por cima daquilo para agarrar a bola, e depois voltaria rapidamente para o jogo. Não custava nada. Mas ele ficou a meditar um pouco, "consigo ou não consigo?", e depois achou que não era capaz. E decidiu ir dar uma volta de 20 metros para circundar o mini-arbusto e apanhar a bola.
Fiquei muito impressionado com aquilo. Era claramente um miúdo super-protegido, filho daquilo a que chamamos pais-colchão - ainda as crianças não estão a cair e eles já estão a agarrá-las. O exagero nessa obsessão securitária está nisto: de tanto serem marteladas com "tem cuidado!" e "não podes!", às tantas os miúdos já acham que não são capaz de fazer as coisas mais básicas, que estão completamente ao seu alcance. O arbusto é como o outro - o problema, mais tarde, pode vir a ser o emprego, as relações amorosas, tudo aquilo que na vida é realmente difícil.
Conhecem a história dos elefantes no circo? Diz-se - não sei se é mito - que desde pequenos lhes colocam grilhetas nas patas, presas por uma corrente, da qual não se conseguem libertar, porque ainda não têm força. E depois, quando são elefantes adultos, continuam a estar presos à mesma corrente, embora nessa altura já tenham força mais do que suficiente para rebentar com ela - simplesmente, nem sequer tentam, porque acham que não conseguem. Foram educados assim.
Dizer que andamos a criar pequenos elefantes de circo nas nossas casas seria um manifesto exagero. Há imensos pais que se esforçam por empurrar as crias para fora do ninho. Agora, que quase todos temos, nalguma altura das nossas vidas, de fazer um esforço genuíno para não acorrentar os filhos às pernas dos sofás, isso temos.