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A nossa Carolina já é uma rapariga crescida e tem vindo a ganhar responsablidade - e responsabilidades - de dia para dia, para deleite dos seus papás. A última conquista, proposta por ela, foi entrar na escala de lavar a loiça depois do jantar nos dias da semana, o que muito agradou à sua mamã, em especial.
Mas arrumações não são o seu forte. Aquela coisa chata de ter que dobrar as roupas e arrumá-las nas gavetas bem ajeitadinhas não tem graça nenhuma e passamos a vida a encontrar sapatos da Carolina espalhados pela casa. Felizmente, a pouco e pouco, as coisas têm melhorado.
No fim-de-semana que passámos em Peniche, assim que chegámos ao apartamento lembrei-lhe que ela tinha que tirar a sua roupa do saco e arrumá-la no roupeiro do quarto onde dormiria. Mal acabei a frase, virou-se para mim toda orgulhosa e anunciou que já o havia feito - e seguiu caminho para a sala. Curiosa, fui espreitar a sua arrumação.
Numa das gavetas encontrei a roupa toda amontoada com os produtos de higiene e as sandálias, que - vá lá - estavam, pelo menos, separadas num saquinho.
Já na outra, encontrei os seus dois biquinis meticulosamente arrumados, como se estivessem em exibição para venda numa loja. Tão meticulosamente arrumados, aliás, que não cabia mais nada na gaveta. No que respeita a roupa, dá para ver quais são as prioridades dela, não dá?
Ontem fiquei com os quatro em casa enquanto a Teresa estava no trabalho, e às tantas a Carolina apareceu-me com este vídeo, que o Tomás tinha filmado (de pernas para o ar) no tablet da irmã. São só nove segundos, mas é absolutamente irresistível e tinha de o partilhar convosco.
Eu estava na festa de Natal da escola da Carolina, a olhar para ela ao longe, a vê-la interagir com os colegas e com os professores, a ver a forma como falava, como se mexia, como se relacionava com as pessoas do seu meio escolar, e a ter a perfeita sensação de que eu já não conheço assim tão bem aquela minha filha. Quem és tu, Carolina?
Mas não se assustem. Este não é um desconhecimento no sentido mau da palavra, não no sentido "quem és tu, que não te conheço!", tipo aquela coisa que nós dizemos quando um filho faz alguma coisa muito errada. É, bem pelo contrário, um desconhecimento no sentido bom, de alguém que já é gente fora do seu ninho, alguém que ganhou uma independência própria, uma forma de ser pessoa que é só sua.
A poucos meses dos seus 10 anos, a Carolina não é só uma, mas duas. Há a Carolina da escola e a Carolina de casa, e a Carolina da escola é muito mais crescida do que a Carolina de casa. Parece-me mais educada e mais atenta, mais adulta e mais independente, e desconfio - só posso desconfiar, porque quando me aproximo as coisas mudam - que não tenha as mesmas conversas, nem os mesmos medos, nem sequer diga as mesmas piadas, e - claro - que cultive imensos segredinhos com as amigas.
Há nisso um sentimento de perda, como é óbvio. Ela já não é uma criança totalmente dependente de mim e da Teresa, como ainda são o Tomás, o Gui ou a Rita. Eu estou a perder a Carolina, no sentido em que aos poucos vou perdendo parcelas de conhecimento sobre o que ela faz e sobre o que ela pensa. Crescer é fechar portas e janelas na cara dos pais, abrir novas divisões de privacidade, com direito de admissão reservado. E é inevitável que nós, papás e ex-tudo, fiquemos cada vez mais vezes de fora.
Mas é um estranho sentimento de perda, este, na medida em que ele também me enche de orgulho, porque vem misturado com um certo sentimento de dever cumprido. À medida que vai diminuindo o meu espaço de tutela, vai-se completando o trabalho como pai e educador. Claro que ainda tenho muitos anos pela frente de educação e de cuidado, mas a sensação que me assaltou naquela festa de Natal, vendo a Carolina ao longe, é que para aí 60% está feito. Já não a vou conseguir moldar tanto quanto ela, a partir daqui, se moldará a si própria.
Para pais control freaks, imagino que isso possa ser um pouco assustador. Afinal, há um vasto território desconhecido à nossa frente. Mas eu sou um eterno optimista, e acho que a partir deste ponto vai ser bem mais divertido do que foi na última década. Porque é sempre muito mais interessante descobrir a riqueza única do outro do que construir extensões de mim. E eu tenho a certeza de que a Carolina me vai ensinar muito, me vai desafiar muito e me vai tornar um homem e um pai melhor e mais sábio.
A sabedoria do saber viver é verdadeiramente tudo o que conta nesta vida, e nesse sentido os nossos filhos são dos mais preciosos auxiliares que temos à mão. Vou com certeza adorar vê-los crescer, e por isso aquele breve momento de epifania foi como uma prenda de Natal antecipada: eu já não conheço muito da Carolina, mas gostei muito de ver ao longe o que não conheço.
O que eu vi, na verdade, foi a esperança - não a esperança pura e meio tonta do wishful thinking, mas a esperança à séria, ou seja, aquela que é alicercada em boa dose de certeza - de que eu e a Teresa a tenhamos educado bem e preparado para a vida. E isso foi mais do que bom. Foi óptimo, e, a bem dizer, foi até bíblico: quem perder uma vida por amor, achá-la-á, está escrito nos Evangelhos. Que isso se aplica a nós, eu já sabia. Que isso também se aplique aos nossos filhos, estou agora a aprender.
A Carolina prepara-se para descolar no seu próprio avião
Então, minhas senhoras, não acreditem em tudo o que vos conto. Eu estava a brincar. E nem sequer é por amor à Carolina - é por amor a mim próprio, que sou obrigado a aturar-lhe os pesadelos a meio da noite.
- Tu tens de gostar dos teus manos, Carolina, tens de ficar feliz quando eles estão felizes e sacrificar-te por eles quando vês que precisam de ti.
- (...)
- Se o Tomás caísse para um poço tu não mergulhavas para o salvar?
- Não.
- Não?!?
- Claro que não. Se ele caísse para um poço eu não iria conseguir salvá-lo. Se saltasse, em vez de morrer só um, morríamos os dois.
- Ah, ok. E se fosse para uma piscina?
- Para uma piscina saltava.
Nem imaginam o que a excelentíssima esposa me tem chateado nos últimos tempos por causa disto:
Isto, para quem não sabe, é uma série de banda desenhada chamada Buddy Longway. Em tempos foram publicados os sete primeiros volumes em Portugal, e eu sempre gostei da série, como costumo gostar de quase tudo o que tem a ver com o oeste americano (efeitos de ter passado a infância a brincar aos índios e aos cowboys). Depois, como é habitual nas séries de BD publicadas nesta terra, a edição das aventuras de Buddy Longway ficou pelo caminho, apesar de o seu autor, o suíço Derib, ter continuado a desenhá-la até 2006, assinando um total de 20 volumes, que eu acabei por comprar há não muito tempo nas excelentes edições integrais da Lombard.
O que se passa - e o que interessa para aqui - é que eu decidi ler toda a série à noite, antes de deitar, à Carolina. Os sete primeiros livros ela leu sozinha em português, mas a partir daí há 13 álbuns em francês (mais um epílogo), que ela ainda não consegue ler, e por isso pediu-me ajuda. O meu francês é um bocado manhoso, mas com a ajuda de um dicionário para palavras mais difíceis, passámos numerosos serões a ler as aventuras de Buddy Longway, da sua esposa índia Chinook, e dos seus dois filhos, Jeremiah e Kathleen.
O problema está em que a série não tem nada a ver com o Astérix, o Tintin ou o Lucky Luke, onde o tempo passa mas a cada episódio é como se não passasse - eles têm sempre a mesma idade e estão sempre a começar tudo de novo. Derib criou Buddy Longway em 1974 e desenhou-o ininterruptamente até 1987. Depois, retomou-o em 2002 e foi até 2006, para os últimos quatro episódios. E os anos passam na própria série - os miúdos crescem, as personagens envelhecem e - eis o pior - os livros vão-se tornando cada vez mais negros.
O que começou por ser uma série de aventuras juvenil e animada sobre um caçador de peles no oeste selvagem que se apaixona por uma jovem squaw,
transforma-se aos poucos numa obra madura sobre a separação, a violência, a dor e o envelhecimento.
Isso significa que Buddy Longway se vai tornando cada vez mais negro: Jeremiah, o filho mais velho, morre num dos episódios, e Buddy e Chinook também têm um trágico desaparecimento.
Tudo isto a Carolina viveu com o máximo de intensidade, ao longo de quase 1000 páginas de BD. E consequentemente, houve aqui e ali umas sessões de choro, que a Teresa apreciava pouco, sobretudo porque a seguir vinham as sessões de pesadelos.
"Demorei duas horas a adormecer a tua filha!", protestou a Teresa há umas semanas, após a leitura de uma história especialmente emotiva.
Eu compreeendo a excelentíssima esposa, e os seus instintos proteccionistas, mas eu olho para as lágrimas da Carolina e para os seus pesadelos de um modo inteiramente diferente. Sinto-me orgulhoso das suas lágrimas, porque acho comovente a capacidade que ela já tem de imergir dentro de uma história feita apenas de papel e tinta, sinto-me orgulhoso da intensidade que consegue colocar na leitura de um livro e da sua capacidade de entrega, que qualquer obra de arte exige por parte de quem a lê ou vê. Nas lágrimas onde a Teresa vê tristeza, eu vejo a alegria de uma pequena leitora que descobre o magnífico poder de uma história.
E quanto aos pesadelos... Bom, os pesadelos existirão sempre, com ou sem Buddy Longway. É verdade que ela sonha com o livro, como sonha com o Harry Potter ou com as cenas assustadoras do Indiana Jones. Mas se não fosse com isso, sonhava com cães, lobos, cobras ou gente, e era com eles que se assustaria. Nós temos influência no combustível que colocamos dentro da cabeça das crianças, mas o motor do medo e do pesadelo existirá sempre, e se não se alimentar disto irá alimentar-se daquilo.
Portanto, cara esposa, peço desculpas antecipadas por todos os pesadelos que continuarei a provocar nos nossos filhos. Mas sempre que puder vou definitivamente mergulhá-los no mundo das histórias, umas mais negras, outras menos negras, mas todas elas, quando bem executadas, fonte de um enorme consolo - o consolo da imaginação e da ficção, que até hoje me proporcionou alguns dos momentos mais felizes da minha vida.
E, diante disso, não há pesadelo que me assuste.