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A minha filha Carolina torce o nariz de cada vez que eu meto música brasileira no carro, pela simples razão de que eu meto mesmo muita música brasileira no carro e a afasto demasiadas vezes da sua querida Katy Perry. No nosso carro, há que admitir, foi imposta uma verdadeira ditadura musical, e eu sou o Pol Pot dos acordes. É fácil compreender porquê: o rádio do nosso monovolume deve ser a única coisa em que eu consigo mandar quando a excelentíssima esposa está por perto. Por isso, há que aproveitar bem o exercício desse modesto poder.
Mas esta noite vai dar-se um acontecimento muito democrático: a Carolina e os seus irmãos vão ficar na cama a sonhar com a Katy Perry enquanto eu e a excelentíssima esposa nos iremos refastelar para o Teatro S. Luiz ao som das maravilhosas músicas do maravilhoso Vítor Ramil - um daqueles segredos da música brasileira que já vai sendo mais do que hora de ser descoberto por mais gente. Eu já escrevi sobre o concerto aqui, mas hoje o Nuno Pacheco, no Público, fala com o senhor e o Daniel Rocha tirou esta bela foto do cantor gaúcho e seus convidados portugueses. Vítor Ramil, Mário Laginha e Gisela João, todos juntos no mesmo palco, não é coisa que aconteça todos os dias.Vai acontecer esta noite, pelas 21 horas.
Foto de Daniel Rocha para o Público
Foto de Filipe Ferreira
Boa parte do dinheirinho que a minha mamã e o meu papá me deram pelos anos foi dirietinha para comprar um camarote de cinco no Coliseu de Lisboa, onde esta noite me vou instalar com a excelentíssima esposa e os excelentíssimos três filhos mais velhos para apreciar o espectáculo "Deixem o Pimba em Paz", uma ideia do Bruno Nogueira maravilhosamente concretizada pelo próprio, com a preciosa ajuda da Manuela Azevedo, do grande Filipe Melo, do mestre arranjador Nuno Rafael e do contrabaixista Nelson Cascais. Só a Ritinha é que fica de fora desta aventura em família, para grande pena dela, que adora o "Ninguém, Ninguém" do Marco Paulo.
Quer dizer: a Ritinha não adora o "Ninguém, Ninguém" do Marco Paulo. O que ela adora é o "Ninguém, Ninguém" do "Deixem o Pimba em Paz", uma extraordinária porta de entrada no mundo da música pimba, que tem o gigantesco mérito de sublinhar a amarelo fluorescente as suas qualidades e enterrar bem fundo os seus defeitos. Isto é o maior serviço feito ao pimba deste a famosa reportagem televisiva (foi na TVI?) que em meados dos anos 90 transformou a famosa canção de Emanuel em sinédoque de todo um género musical.
O meu interesse pelo pimba tem um lado nostálgico - afinal, sou um rapaz de Portalegre que se arrastou durante muitos anos (coisa que então odiava, diga-se) pelos bailaricos da aldeia por causa dos papás -, mas também tem um lado literato, porque o bom pimba é sempre um festim da língua portuguesa. Os trocadilhos malandros, os achados das letras de Quim Barreiros, a borrasca de innuendo, tudo isso compõe uma celebração da língua, tanto no sentido carnal como intelectual do termo. Há mais génio artístico em
Qual é o melhor dia p'ra casar
Sem sofrer nenhum desgosto
O trinta e um de Julho
Porque depois entra Agosto
do que em muitas dezenas de romances portugueses.
Há mais habilidade literária em
E porque a couve tem talo
E o bacalhau tem rabo
Se o feijão verde tem fio
Porque não tem talo o nabo?
do que em 95% da música pop portuguesa.
Aquilo que o Bruno Nogueira veio fazer (para mais, cantando com uma competência e uma ginga desconhecidas) foi precisamente sublinhar o lado artístico e literário da música pimba, sem nunca a apoucar. Bem pelo contrário: ao embrulhá-la em competentíssimas arranjos, trouxe o bom gosto harmónico a um material que é muito pujante em termos melódicos, mas que quase sempre soçobra na produção e nas interpretações. A música pimba é frequentemente como uma mulher gira que se veste e se pinta muito mal. O que Bruno Nogueira e companhia fizeram foi colocar roupa de luxo em cima dos melhores corpinhos do género - e o resultado, na minha modesta opinião, é notável.
Embora aquilo que mais me diverte no projecto sejam as canções maliciosas como o genial "Porque Não Tem Talo o Nabo", nada ali é tão impressionante quanto o trabalho do grupo sobre duas canções de Ágata, "Sozinha" e "Comunhão de Bens". A primeira é transformada num tango fortíssimo que poderia fazer parte, sem retoques, do reportório de qualquer fadista atrevida ou intérprete do dito bom gosto. A segunda é elevada aos píncaros por Manuela Azevedo, com uma interpretação de tal forma pungente, dramática e sentida que parece que está a recitar Shakespeare.
Ora, foi tudo isto, todas estas canções, que dominaram o nosso Verão familiar: eu escutei o disco "Deixem o Pimba em Paz" aproximadamente 364 vezes no carro, até à beira do colapso. A forma como as crianças ficaram hipnotizadas pelas canções - todas elas - é deveras impressionante, e a mim serviu-me para lhes dar umas aulinhas de português, tentando explicar-lhes porque é que "podes ficar com o resto e dizer que eu não presto" é um excelente achado (porque não é uma rima óbvia, porque é uma rima rica, que emparelha um substantivo com um verbo, porque é uma rima que surge com grande naturalidade e grande força musical) ou porque é que rimar "tens" com "comunhão de bens" é absolutamente horrível.
Claro que o disco tem um problema: os putos estão proibidíssimos de cantar em público metade daquelas canções. Mesmo que não percebam a letra - ou, sobretudo, quando não percebem a letra. A Carolina teve de recorrer a uma prima dois anos mais velha para lhe explicar o significado de "A Garagem da Vizinha" (embora nenhuma delas tenha chegado a qualquer conclusão sobre o significado dos versos "o meu carro fica dentro/ os cocos ficam de fora", o que é bom sinal), e claro que a semântica de "Porque Não Tem Talo o Nabo" permanece um mistério. Eu prometi-lhe que lhe explicava porque é que o público se ri tanto se ela tivesse sete cincos no quinto ano.
Enquanto isso não chega, lá estaremos esta noite no Coliseu, em família, para celebrar o pimba em coro. Embora seja uma quinta-feira (deveria ser uma sexta ou um sábado), a festa vai com certeza ser em grande. E viva o povo.
Nota final: O Bruno Nogueira dá hoje uma entrevista ao Gonçalo Forta, no Público, sobre o projecto. Podem lê-la aqui. Tenho imensa pena que a maior parte da crítica tenha passado completamente ao lado do disco. Não me lembro de o ver criticado nos jornais nem nas revistas de referência. É lamentável que a desatenção e os preconceitos da crítica portuguesa não tenham contribuído para dar o devido valor a um trabalho profundamente original e meritório. Ainda assim, silenciado ele não foi, e vai certamente fazer o seu caminho.
A Diana Figueiredo tem uma opinião muito diferente da minha sobre a questão Miley Cyrus, portanto vale a pena trazer para aqui o seu comentário:
Acho incrível toda a gente ficar chocadíssima com tudo o que tenha a ver com sexo, ou outras expressões de amor menos convencionais, ou mesmo expressões de puro prazer. Se na televisão mostrarem dois homens a dar um beijo na boca é um escândalo e tapam os olhos às criancinhas; se mostrarem o resultado de um carro armadilhado com pessoas ensanguentadas e outras desesperadas com os filhos mortos ao colo, será que tapam os olhos às criancinhas? Eu tapo.
No Facebook permitem partilhas de vídeos de acidentes em que se vêem pessoas cortadas ao meio; mas vídeos com mamas, nem pensar, é imoral!
Os pais proíbem as filhas de ir ver a Miley, pode dar-lhes ideias esquisitas, mas aposto que muitos desses pais já ofereceram um telemóvel/ smartphone a essas mesmas filhas, quando elas ainda tinham 8 ou 9 anos, mesmo podendo estar a contribuir para um cancro, e que as deixam beber Coca-Cola.
O recalcamento do sexo é que cria comportamentos agressivos. Ou os pais acham que as suas filhas menores ainda não sabem o que é se pode fazer com a língua, para além de lamber gelados?
A pergunta é boa. Resposta minha amanhã. Os caros leitores façam o favor de dizer coisas no entretanto.
Uma querida leitora já encontrou o link para a referida reportagem da SIC Notícias. Aqui está ele.
A parte educativa da Miley a bater no mega-bum-bum da senhora vestida de vermelho está por volta dos 45 segundos, e as miúdas ali entre os oito e os dez anos, ainda com buracos à frente da boca por causa da queda dos dentes de leite, mas que mesmo assim já gritam "Miley dá-me a tua língua!", vêm logo a seguir, por volta dos 50 segundos de reportagem.
Mesmo correndo o risco de parecer o Avô Cantigas, não percam.
Acabo de assistir à reportagem da SIC sobre o concerto de ontem à noite da Miley Cyrus (lamento, mas não encontrei o link, se acaso alguém encontrar eu depois coloco), e qual não é o meu espanto quando vejo umas miúdas de nove ou dez anos a comentarem entusiasmadíssimas o espectáculo, como se ainda estivéssemos a falar de uma visita da Hannah Montana a Lisboa.
Embora a Miley me irrite um bocadinho nesta sua fase cão cansado, como já mostrei aqui, está fora de questão pôr em causa a legitimidade de ela andar a mostrar a língua, as mamas, o pipi ou o que quer que lhe apeteça mostrar, como forma de exprimir a sua arte e de matar a figurinha da Disney que lhe estava colada à pele.
Parece-me demasiado um decalque dos percursos de Madonna e de Britney Spears para a coisa me chegar a entusiasmar, mas a sua música não é má e, hoje em dia, a única forma de inovar pelo choque sexual no mundo da pop é mesmo ir subindo a parada. A menina é maior de idade, e embora eu tema que lhe possa vir a acontecer o mesmo que à Britney e ao Bieber, não sou pai dela e ela que faça o que quiser.
Agora, miúdas de oito, nove, dez ou 11 anos a assistir ao concerto da Miley? Não, senhores, não. Eu sei que os promotores do concerto apostam nisso, eu sei que vivemos numa sociedade hiper-sexualizada, eu sei que a Miley quer fingir que é grande ao mesmo tempo que procura manter parte do público Hannah Montana junto de si, como se pode perceber por estas suas ridículas declarações
Embora os pais provavelmente não concordem, eu acho que o meu concerto é educativo para as crianças. Elas vão estar expostas a arte desconhecida para a maior parte das pessoas. As pessoas são ensinadas a ver as coisas a preto e branco, especialmente em cidades pequenas. Estou entusiasmada por levar esta digressão a locais onde arte como esta não seria aceite, onde os miúdos não aprenderiam sobre este tipo diferente de arte.
eu sei isso tudo, mas há limites, caraças. Os miúdos não estão prontos para ver tudo, a partir de qualquer idade, como é óbvio, se não mais vale acabar com as classificações etárias dos espectáculos. Aliás, colocar este concerto para uma idade mínima de seis anos, como aconteceu em Portugal (ver aqui), parece-me, no mínimo, um escândalo.
Chamem-me esquisito, mas eu não queria que um filho ou uma filha minha com menos de 15 ou 16 anos fosse ao Meo Arena ver a Miley a enfiar palmadas no volumoso rabo desta senhora (Amazon Ashley, de sua graça), ou a enfiar-lhe a cabeça no decote, como tem sido prática na digressão.
Nesta fase de desejo assolapado de fazer todas as vontades aos filhinhos, dá-me ideia que muitos pais estão a perder qualquer espécie de critério e a ficar sem uma gotinha de bom-senso. Ou então estão enfiados numa gruta há vários anos e ainda confundem a Miley de 2010 com a de 2014.
Como vocês sabem, nada tenho contra tau-tau no rabinho, nem entre crianças desgovernadas, nem entre relações consensuais. Mas há um tempo para tudo, bolas.