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Na sequências dos posts desta semana, tenho recebido algumas sugestões de artigos e vídeos que debatem o assunto da obsessão securitária no mundo actual, no que às crianças diz respeito. Uma das sugestões mais proveitosas (obrigado, Miguel Barroso), e que aconselho a todos, é uma conferência de Tim Gill, intitulada Risk and Childhood.
Tim Gill
A sua intervenção tem cerca de 25 minutos (seguem-se outras intervenções igualmente interessantes), e o inquérito inicial com que provoca a audiência é extraordinariamente esclarecedor. Tim Gill começa por pedir ao público que tente recordar a melhor memória da sua infância. De seguida, pede para se levantarem aqueles cuja memória feliz foi vivida fora de casa, ao ar livre. Praticamente toda a gente se levanta. Finalmente, pede para se levantarem aqueles cuja memória feliz foi vivida fora da vista de adultos. De novo, praticamente toda a gente se levanta.
Eu também pensei nas minhas mais felizes memórias de infância. E sim, foram ao ar livre. E sim, foram longe da vista de adultos. Infelizmente, as crianças que estamos a criar não vão ter tantas oportunidades para poder responder o mesmo no futuro.
Gill aborda - e desmonta - os medos mais comuns dos pais, centrando-se nos parques infantis e no abuso de crianças. E a conferência, curiosamente, vem na sequência de um trabalho seu que foi publicado pela secção inglesa da Fundação Gulbenkian. Existe um pdf da sua obra, No Fear: Growing up in a risk averse society, totalmente gratuito aqui.
Não quero estar a chatear-vos novamente com isto, porque acaba por ser uma forma cientificamente fundamentada daquilo que já defendi nos dois textos anteriores. Contudo, não posso estar mais de acordo com Tim Gill quando ele afirma, ao concluir a sua intervenção, que a questão que merece ser mais discutida actualmente talvez não seja a do mimo, a do carinho ou a da disciplina, mas sim aquilo a que Gill chama "benign neglect" - uma muito útil "negligência benigna", sem a qual nos transformamos não só em pais obcecados, como abafamos os nossos filhos com tanto aperto e preocupação.
Só mais um ponto: na parte final do vídeo da conferência, já da boca de um outro interveniente (Tom Malarkey, da Royal Society for the Prevention of Accidents), sai uma magnífica frase, que eu estou a pensar transformar em mantra pessoal, e procurarei repetir muitas vezes: "try to make children lives as safe as necessary, not as safe of possible".
"Tentemos que as vidas das crianças sejam tão seguras quanto necessário, não tão seguras quanto possível."
A diferença entre uma coisa e outra é, de facto, gigantesca.
Escreveram duas leitoras na caixa de comentários, a propósito do meu post anterior:
João, peço desculpa mas este assunto deveria ter ficado na esfera privada. Se fosse a sua esposa não gostaria de ler este post. Como mãe de um adolescente de 17 anos, digo-lhe que, ainda hoje, fico à espera do sms a dizer que já chegou a casa...
Isto disse a Isis. A MP defendeu uma posição muito semelhante:
A Teresa sabe que escreveu este post? Se ela estava muito reticente com esta ideia, agora não sei se será mesmo contra. Então vem dizer para um blog público, com fotografias dos seus filhos, que um deles pode passar a ir/vir sozinho da escola, e ainda dá a localização aproximada?
Ora bem. Faço notar que no meu post anterior eu remetia para um texto onde um pediatra português denunciava aquilo a que chamou a "cultura de segurança fóbica". Donde, embora as preocupações da Isis e da MP sejam perfeitamente legítimas e compreensíveis, elas vêm de encontro precisamente àquilo que eu criticava no meu texto de ontem.
É muito natural que a Teresa não tenha gostado do que escrevi, no sentido em que eu acho que ela também partilha um bocadinho dessa fobia securitária, e estamos todos a precisar de trabalhar cá em casa as questões da autonomia e da independência. No artigo do Público referido acima, Helena Sacadura, da Associação Portuguesa de Segurança Infantil (APSI), diz algo com que também concordo muito:
"A APSI anda há 21 anos a chamar a atenção para o facto de não podermos pôr as crianças dentro de redomas. Uma criança que não corre riscos não aprende os riscos que pode correr [mais tarde]. Hoje, temos crianças superprotegidas na área do brincar, não têm autonomia e não são responsáveis. São analfabetos do corpo."
São analfabetos do corpo quando andamos a correr atrás deles nos parques infantis, e são analfabetos do corpo e da mente, na minha opinião, quando não os deixamos andar sozinhos ao lado de casa aos 10 anos de idade.
Eu ando a picar a Teresa a ver se ela vem dizer de sua justiça aqui para o blogue. O PD4 tem apenas um décimo da graça que pode ter quando sou só eu a escrever posts. O PD4 nasceu como um projecto a dois, e não tem graça ser só eu a amamentar a criança. Este filho é claramente desprezado em relação aos outros quatro. De qualquer forma - e antecipando a sua intervenção -, a excelentíssima esposa dirá que é a nossa filha mais velha que ainda não se acha preparada para dar esse passo de ir sozinha. Eu acho que somos nós que não estamos a fazer o suficiente para a preparar.
Mas deixem-me dizer só mais uma coisa em relação à "vida privada" e ao facto de eu não dever estar a contar isto num blogue. Este blogue nasceu por várias razões, e uma das principais - digamos que está no top 3 das razões decisivas - tem a ver com um combate, chamem-lhe missionário, se quiserem, contra o desaparecimento das crianças - e, por arrasto, da família - do espaço público. Não gosto de viver num mundo de crianças com caras pixelizadas, a não ser por razões óbvias (se foram abusadas, por exemplo). Esse desaparecimento faz parte de uma mesma cultura securitária que, paradoxalmente, empurra os mais pequenos para a sombra na civilização de todos os holofotes.
A Teresa não partilha totalmente desta minha opinião, e portanto eu acabo por ter algum cuidado com a exposição dos nossos filhos. Mas recuso-me - e recuso-me mesmo, apesar dos medos que todos temos, e eu também - a esconder os filhos só porque apareço na televisão, escrevo nos jornais, e alguém pode querer fazer-lhes mal por eu ser mais de direita do que de esquerda. Como dizem os americanos, "shit happens", mas eu não vou viver a minha vida atemorizado por isso.
Eu não sou diferente dos outros pais: da primeira vez que a Carolina for para a escola sozinha também vou querer receber um sms quando ela chegar à porta. Mas não deixo que os meus medos se sobreponham à convicção - que quaisquer estatísticas demonstram com facilidade - de que vivo num mundo muito mais seguro do que há 100 anos, ainda por cima sendo eu um optimista que acredita que 98% das pessoas é gente decente, que tenta agir correctamente no dia-a-dia - e que estaria pronta a ajudar os meus filhos se eles precisassem, mesmo não os conhecendo.
Eu sou jornalista. Eu vejo as notícias. Eu fui editor da secção de Sociedade do Diário de Notícias durante boa parte do caso Maddie McCann. Mas o impacto destes casos é proporcional à sua raridade. Estatisticamente, a minha filha mais velha corre mais perigo de vida quando se enfia no carro comigo para ir para Portalegre do que quando vai sozinha a pé para a escola.
Os nossos filhos têm medo do escuro. Nós temos medo que qualquer coisa de terrível aconteça aos nossos filhos. Acham mesmo que só os medos deles é que são irracionais?
O Observador continua a apostar em entrevistas sobre as questões da paternidade, e depois de Carlos González e Eduard Estivill, foi a vez, na semana passada, da psicóloga portuguesa Cristina Valente, a propósito do lançamento do seu livro Coaching Para Pais – Estratégias e ferramentas práticas para educar os nossos filhos.
Cristina Valente é assumidamente mais González do que Estivill, e utiliza frases como "a educação tem de ser democrática", que teriam tudo para me pôr os dentes a ranger. Por exemplo:
A pergunta que coloco é: onde fomos buscar a ideia tonta que, para querermos que o miúdo se porte melhor, primeiro temos de o fazer sentir pior? O castigo é algo que humilha o miúdo, enche-o de culpa, de vergonha e de medo. Que relação vamos ter com essa criança para o resto da vida, com base no medo, na insegurança, na culpa e na vergonha?
Isto é a teoria das catástrofes aplicada à educação: um "vai já para o teu quarto!" aos seis anos de idade irá causar um adulto inseguro e infeliz. Santo exagero.
Ainda assim, cada vez mais tenho a sensação, à medida que vou lendo psicólogos, pediatras e leitores, que estamos frequentemente a falar das mesmas coisas, só que utilizando palavras diferentes. Claro que continua a haver um certo lirismo irritante, patente em respostas como esta:
Mas como devemos reagir quando uma criança se porta mal?
Na altura, não reagimos. Quando um filho se porta mal, o pai também não está muito bem disposto. Duas pessoas mal dispostas, uma em frente à outra… não vai sair nenhuma lição dali. Mas isto depende das situações. Tomemos, por exemplo, uma criança que se porta recorrentemente mal em determinada situação. Eu posso planear com ela antes, numa conversa em que estamos as duas de cabeça fria, quais as consequências dessa acção. No momento em que ela comete o erro, aplica-se a consequência. Mas aplica-se mesmo — há pais que, depois de o dizerem, não o fazem.
Ora, esta resposta parece esquecer que a maior parte dos maus comportamentos não são planeados, nem nos dão oportunidade para manter a cabeça fria. A vida não é como os jogos de basquetebol - raramente dá para pedir um "time out". A mim interessa-me pouco traçar cenários que supõem um universo perfeito e ordenado, tipo família do Ruca, onde as birras acontecem à hora certa e nunca ninguém abandona o seu estado zen.
Mas em relação ao tema do castigo, que já aqui tanto deu que falar, tenho, de facto, cada vez mais a sensação de que a maior parte das pessoas discorda apenas por razões semânticas. Ora reparem:
Qual a diferença entre o castigo e a consequência?
O castigo traz sentimentos negativos. A consequência implica eu dizer à criança “tu és livre de escolher fazer errado e, caso o faças, tens uma consequência”. O castigo, ao contrário da consequência, não tem um valor duradouro. O castigo interrompe, no momento, o mau comportamento. É um facto. Mas não ensina competências. A criança deve ter alguma autonomia, dependendo da idade. É a autonomia que a vai treinar para ser responsável na adolescência.
Eu não tenho nada contra isto, e suponho que a maior parte das pessoas também não tenha. Portanto, talvez seja útil, da próxima vez que tivermos, aqui no blogue, uma daquelas sempre animadas discussões sobre autoritarismo e laxismo, começar por definir previamente um glossário, para saber do que estamos a falar.
Os fãs da educação positiva podem estar muito rodados neste vocabulário século XXI, mas a maior parte de nós, comuns mortais, continua a gritar "já de castigo!" em vez de "já de consequência!". E, no entanto, a maior parte dos nossos castigos são efectivamente - ou, pelo menos, pretendem ser - "consequências", e não apenas gestos vazios de simples autoritarismo.
Aliás, até o desvalorizado castigo "agora senta-te aí a pensar no que fizeste" tem a consequência de levar a criança a reflectir sobre o que fez e a não repetir. Às tantas somos todos bué González e não sabemos.
Depois do ponto prévio, vamos então responder às objecções da Diana Figueiredo, já que ela levanta questões interessantes sobre a forma como falamos sobre sexo com as crianças. Apresento primeiro os seus argumentos, que constam do seu primeiro e do seu último parágrafo, e respondo logo a seguir.
Acho incrível toda a gente ficar chocadíssima com tudo o que tenha a ver com sexo, ou outras expressões de amor menos convencionais, ou mesmo expressões de puro prazer. Se na televisão mostrarem dois homens a dar um beijo na boca é um escândalo e tapam os olhos às criancinhas; se mostrarem o resultado de um carro armadilhado com pessoas ensanguentadas e outras desesperadas com os filhos mortos ao colo, será que tapam os olhos às criancinhas? Eu tapo.
A questão que a Diana aqui levanta, sobretudo na parte final, tem a ver com desquilíbrio entre as exibições de sexo e de violência, que embora seja um problema que vale a pena ser discutido, diria que é mais uma importação americana do que propriamente uma questão portuguesa. Ou seja, na puritana América é possível que um filme com mais pinanço do que o habitual possa receber a classificação de NC-17 (ninguém com menos de 18 anos pode assistir ao filme, o que nos EUA significa imediatamente uma limitadíssima exibição comercial, já que numerosas cadeias não aceitam filmes para além de R), enquanto um filme com muito tiroteio, muito sangue ou muita violência psicológica passa facilmente com um R (o que significa que gente com menos de 18 anos pode assistir desde que acompanhada por um adulto).
A história das classificações da MPAA é fascinante, complexa e contraditória, mas não vale a pena estar a abordar isso aqui, ainda que muito patrioticamente o NC-17 tenha sido atribuído pela primeira vez a um filme onde é Maria de Medeiros que passa a maior parte do tempo nua (Henry & June, de Philip Kaufman). Mesmo a questão da violência tem várias subtilezas, porque muitas vezes a mera exibição de sangue e da violência dita "gráfica" é estupidamente penalizada, como no caso do relançamento do clássico A Quadrilha Selvagem (1969), de Sam Peckinpah, que em 1993 levou com um inacreditável NC-17.
O que interessa sublinhar é que, em Portugal e no resto da Europa (excepção feita à Inglaterra, claro), muito por influência da cultura francófona, a relação com o sexo está longe de ter o puritanismo americano, e ainda bem. Nós temos com fartura filmes para maiores de 12 anos onde há maminhas ao léu, e ninguém se anda a indignar por causa disso. Mesmo em relação à exibição da homossexualidade, progredimos imenso, não só em termos legislativos, com a admissão do casamento gay, como em termos "visuais": já há telenovelas em horário nobre com personagens gay, e aos poucos verifica-se uma genuína saída do armário, não só dos homossexuais, mas de toda a população em relação à homossexualidade. Convém não esquecer que as práticas homossexuais eram consideradas crime até à revisão do Código de Penal de 1982. Isto foi há pouco mais de 30 anos.
Aliás, a palavra gay é abundamente usada cá em casa pelos miúdos, infelizmente ainda de forma muito preconceituosa (parte do caminho ainda está por fazer, como é obvio). O "tu és gay!" aprendido na escola é muito recorrente, e obriga a várias explicações. Mas isso também pode acontecer em relação ao "preto" ou ao "cigano". Suponho que todas as minorias sofram disso, e compete obviamente aos pais criarem filhos sem preconceitos e respeitadores das diferenças. Cá em casa, tenta-se que a questão do sexo seja tratada com a mesma naturalidade que a questão da cor da pele ou da etnia.
Agora, tanto em relação ao sexo como à violência, convém distinguir as coisas. Beijar não é o mesmo que apalpar, apalpar não é o mesmo que pinar, pinar de forma simulada não é o mesmo que sexo explícito, e nalgum sítio teremos de estabelecer uma linha, ou de outra forma vou começar a mostrar cá em casa a pornografia dos anos 70 aos miúdos, que sempre foi um tema que me interessou. Não é a mesma coisa, hão-de admitir, mostrar a um miúdo de 13 ou 14 anos o Boogie Nights, do Paul Thomas Aderson (que se passa no meio da pornografia americana dos anos 70), ou o Garganta Funda.
Mas isso não se aplica só ao sexo. Também se aplica, da mesma forma, à violência, e até posso dar um exemplo muito concreto. Como vocês sabem, cá em casa há um grande interesse pela Segunda Guerra Mundial, e qualquer miúdo adora tiros e tanques e cenas de acção. Nesse campo, em termos de realismo, nada de melhor foi feito do que O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg, que é um filme classificado em Portugal para maiores de 16 anos. A classificação parece-me correcta. Eu não tenho problemas em mostrar quase todo o filme aos miúdos, desde que devidamente explicado e enquadrado. Já o fiz. Mas nunca lhes mostrei esta cena,
em que Goldberg é morto lentamente com um punhal após uma luta violentíssima com um nazi. Há violência e violência. E esta cena, de um realismo assustador, passa dos limites. Não quero que miúdos de oito ou dez anos vejam uma sequência com tamanho horror e dramatismo.
Voltemos, então, à Diana e ao seu parágrafo final.
O recalcamento do sexo é que cria comportamentos agressivos. Ou os pais acham que as suas filhas menores ainda não sabem o que é se pode fazer com a língua, para além de lamber gelados?
Pelo que atrás ficou dito, espero que se perceba que não se trata de "recalcar" - trata-se de não exibir. Não se trata de eles não saberem o que se faz com a língua para além de lamber gelados, trata-se de não lhes mostrar tudo o que se pode fazer com a língua além de lamber gelados.
Da mesma forma que há certa violência que passa dos limites, parece-me óbvio, diante de imagens como esta, retirada da mesma digressão Bangerz que passou pela Meo Arena,
que o espectáculo de Miley Cyrus também passa dos limites.
Aliás, num comentário deixado no meu Facebook, o leitor Luís Matos fez uma observação muito pertinente:
Nada em Miley é novo ou sequer particularmente inesperado. Ela é o que tiver de ser para que a máquina (que é muito maior do que ela, vos asseguro) possa continuar a facturar. O que é central à questão é que o imaginário da mulher adulta que faz o que bem entende com o canal vaginal (um produto em si mesmo, se quisermos, com procura e oferta, etc.) é misturado em palco com o imaginário infantil que ali a trouxe. A coincidência de ambos no palco é o que choca mais. E, agora sim tomemos opinião pelo que as coisas são, esse facto é reprovável.
Eu não vi o espectáculo, naturalmente, mas pelo que se vê na net posso confirmar que os peluches dançarinos e esta mistura entre imaginários infantis e imaginários porno está toda lá. Ora, tal mistura não é, de facto, para maiores de 6 anos, que era a classificação do espectáculo, sendo que a própria promotora portuguesa organizou comboios da CP onde estavam explícitos descontos para crianças. Ou seja, Miley quer chocar, o que me parece completamente legítimo porque já é maior de idade, quem a vende quer chocar, o que também me parece legítimo porque isso dá $$$$ e nós vivemos numa sociedade capitalista. Só que ambos não querem só chocar adultos ou sacar $$$$ aos maiores de idade - pelos vistos, também querem chocar e explorar as crianças.
E isso, por mais volta que demos ao assunto, não é nada bonito. Existe uma época própria para começar a falar de sexo, outra para começar a ficar completamente fascinado pelo sexo e outra ainda para começar a praticar sexo. Parece-me boa ideia respeitar cada uma dessas fases, em vez de ter aulas de bondage aos oito anos.
É por todos sabermos o poder que o sexo tem, para o bem e para o mal, que convém ter por ele o maior respeito. E mesmo que decidamos que chegou a hora de introduzir as crianças a este tema, eu diria que Miley Cyrus está longe de ser a melhor professora disponível no mercado.
O jornal online Observador, depois de ter efectuado uma polémica entrevista ao pediatra catalão Carlos González, que muito deu que falar neste blogue, regressa agora com uma nova entrevista, desta feita à nemésis de González, o igualmente pediatra e igualmente catalão Eduard Estivill.
Que os senhores devem gostar muito um do outro fica bastante claro pela resposta de Estivill à seguinte pergunta:
Para Carlos González, todos os castigos são inúteis. Que opinião tem dele e das suas teorias – porque acha que é um sucesso de vendas?
Não conheço esse senhor, pelo que não posso comentar.
Não sei porquê, fiquei desconfiado de que não se frequentam.
Ainda assim, nesta batalha de gigantes da pediatria catalã, desconfio que não me seja lá muito difícil escolher o lado. Reparem como até no campeonato da foto-foleira-com-a-mão-na-bochecha (juro que não sei como é que alguém continua a tirar fotos deste género em 2014), González e Estivill têm posturas inteiramente diferentes.
Carlos González nunca perde o ar beatífico. Ele sorri, sim, mas é um sorriso de quem já atingiu um patamar superior de sapiênca pediátrica. A mão direita apenas faz o favor de amparar uma cabeça que já não é deste mundo. Ele paira acima de nós.
Já Eduardo Estivill segura a bochecha esquerda de uma forma completamente diferente. Está com o dedo apontado, provavelmente para mais depressa o virar na direcção de um puto irritante, se for preciso colocá-lo no seu lugar. Além disso, não há nada de beatífico no seu sorriso. É um sorriso de um gajo normal, que está ao nosso nível, e os dentinhos de coelho ajudam a acreditar no que ele diz. Se ele tivesse pinta de ariano, a gente tinha mais receio da sua paixão pelas regras e pela autoridade. Num tipo com dentes de coelho, é sempre muito mais fácil acreditar.
Como se vê por esta minha equilibradíssima e justíssima apreciação dos dois pediatras só com base em fotografias, eu acho que sou mais Estivill. E, na verdade, não é só por causa das fotos. É mesmo por causa de respostas como estas:
Acha que as crianças devem ser castigadas?
O castigo é um acto negativo que a criança pode entender com ansiedade. Ao invés, regras firmes em todos os hábitos dão segurança às crianças. O importante é que os pais comuniquem as regras e os limites como uma coisa natural e não como um castigo.
Quais as consequências da culpabilização dos pais no desenvolvimento dos filhos?
Os pais inseguros, com baixa autoestima e problemas pessoais têm uma maior tendência a proteger em demasia os filhos. Assim, passam-lhe as suas carências, o que os torna mais inseguros. O contrário acontece com os pais que são seguros de si mesmos.
Acha que tem um discurso centrado nos pais?
Todos os estudos científicos mostram-nos que, na questão dos hábitos de ensino, os responsáveis são os pais. As crianças não aprendem sozinhas, mas sim aquilo que lhes ensinamos. De pais seguros saem crianças seguras. De pais inseguros saem crianças sem bons hábitos. Quando uma criança come bem, dorme bem e está bem educada, o mérito é dos pais. O mesmo acontece no sentido contrário.
Mas leiam toda a entrevista, porque vale a pena.
A Diana Figueiredo tem uma opinião muito diferente da minha sobre a questão Miley Cyrus, portanto vale a pena trazer para aqui o seu comentário:
Acho incrível toda a gente ficar chocadíssima com tudo o que tenha a ver com sexo, ou outras expressões de amor menos convencionais, ou mesmo expressões de puro prazer. Se na televisão mostrarem dois homens a dar um beijo na boca é um escândalo e tapam os olhos às criancinhas; se mostrarem o resultado de um carro armadilhado com pessoas ensanguentadas e outras desesperadas com os filhos mortos ao colo, será que tapam os olhos às criancinhas? Eu tapo.
No Facebook permitem partilhas de vídeos de acidentes em que se vêem pessoas cortadas ao meio; mas vídeos com mamas, nem pensar, é imoral!
Os pais proíbem as filhas de ir ver a Miley, pode dar-lhes ideias esquisitas, mas aposto que muitos desses pais já ofereceram um telemóvel/ smartphone a essas mesmas filhas, quando elas ainda tinham 8 ou 9 anos, mesmo podendo estar a contribuir para um cancro, e que as deixam beber Coca-Cola.
O recalcamento do sexo é que cria comportamentos agressivos. Ou os pais acham que as suas filhas menores ainda não sabem o que é se pode fazer com a língua, para além de lamber gelados?
A pergunta é boa. Resposta minha amanhã. Os caros leitores façam o favor de dizer coisas no entretanto.
Uma querida leitora já encontrou o link para a referida reportagem da SIC Notícias. Aqui está ele.
A parte educativa da Miley a bater no mega-bum-bum da senhora vestida de vermelho está por volta dos 45 segundos, e as miúdas ali entre os oito e os dez anos, ainda com buracos à frente da boca por causa da queda dos dentes de leite, mas que mesmo assim já gritam "Miley dá-me a tua língua!", vêm logo a seguir, por volta dos 50 segundos de reportagem.
Mesmo correndo o risco de parecer o Avô Cantigas, não percam.
Acabo de assistir à reportagem da SIC sobre o concerto de ontem à noite da Miley Cyrus (lamento, mas não encontrei o link, se acaso alguém encontrar eu depois coloco), e qual não é o meu espanto quando vejo umas miúdas de nove ou dez anos a comentarem entusiasmadíssimas o espectáculo, como se ainda estivéssemos a falar de uma visita da Hannah Montana a Lisboa.
Embora a Miley me irrite um bocadinho nesta sua fase cão cansado, como já mostrei aqui, está fora de questão pôr em causa a legitimidade de ela andar a mostrar a língua, as mamas, o pipi ou o que quer que lhe apeteça mostrar, como forma de exprimir a sua arte e de matar a figurinha da Disney que lhe estava colada à pele.
Parece-me demasiado um decalque dos percursos de Madonna e de Britney Spears para a coisa me chegar a entusiasmar, mas a sua música não é má e, hoje em dia, a única forma de inovar pelo choque sexual no mundo da pop é mesmo ir subindo a parada. A menina é maior de idade, e embora eu tema que lhe possa vir a acontecer o mesmo que à Britney e ao Bieber, não sou pai dela e ela que faça o que quiser.
Agora, miúdas de oito, nove, dez ou 11 anos a assistir ao concerto da Miley? Não, senhores, não. Eu sei que os promotores do concerto apostam nisso, eu sei que vivemos numa sociedade hiper-sexualizada, eu sei que a Miley quer fingir que é grande ao mesmo tempo que procura manter parte do público Hannah Montana junto de si, como se pode perceber por estas suas ridículas declarações
Embora os pais provavelmente não concordem, eu acho que o meu concerto é educativo para as crianças. Elas vão estar expostas a arte desconhecida para a maior parte das pessoas. As pessoas são ensinadas a ver as coisas a preto e branco, especialmente em cidades pequenas. Estou entusiasmada por levar esta digressão a locais onde arte como esta não seria aceite, onde os miúdos não aprenderiam sobre este tipo diferente de arte.
eu sei isso tudo, mas há limites, caraças. Os miúdos não estão prontos para ver tudo, a partir de qualquer idade, como é óbvio, se não mais vale acabar com as classificações etárias dos espectáculos. Aliás, colocar este concerto para uma idade mínima de seis anos, como aconteceu em Portugal (ver aqui), parece-me, no mínimo, um escândalo.
Chamem-me esquisito, mas eu não queria que um filho ou uma filha minha com menos de 15 ou 16 anos fosse ao Meo Arena ver a Miley a enfiar palmadas no volumoso rabo desta senhora (Amazon Ashley, de sua graça), ou a enfiar-lhe a cabeça no decote, como tem sido prática na digressão.
Nesta fase de desejo assolapado de fazer todas as vontades aos filhinhos, dá-me ideia que muitos pais estão a perder qualquer espécie de critério e a ficar sem uma gotinha de bom-senso. Ou então estão enfiados numa gruta há vários anos e ainda confundem a Miley de 2010 com a de 2014.
Como vocês sabem, nada tenho contra tau-tau no rabinho, nem entre crianças desgovernadas, nem entre relações consensuais. Mas há um tempo para tudo, bolas.
Vale sempre muito a pena ler os comentários do Carlos Duarte, desta vez em resposta aos argumentos da Teresa Power:
Cara Teresa,
Acho que depende muito do "conceito" [de amar um filho]. O que o João quereria dizer - e ele que confirme ou desminta - era que as crianças são, nos dias de hoje, alvo de muito mais "atenção formal" (obviamente, e pegando no comentário do LA-C, de classe média para cima - nas classes mais baixas as diferenças em relação ao passado serão menores ou nulas). Se quiser, e concordo plenamente com isso, trocou-se parte do "amor" como sentimento por um "amor" como obrigação (muitas vezes obrigação material).
Enquanto no passado, a falta de amor paternal (mais que o maternal) apenas era censurado socialmente quando se verificava situações de abandono (i.e. o pai "deixava" a família), sendo admitidas mesmo situações de negligência ou violência (o pater familias exclusivamente como ganha-pão e disciplinador), nos dias de hoje passou-se do 8 ao 80 e a censura social ocorre não só em situações de acção deliberada (i.e. o abandono, a violência), mas também de actuação passiva (não ir assisitir às actividades dos filhos). Mais, e parece-me que este é o ponto principal do João: passou-se de uma situação em que a Sociedade dava total liberdade (e quase total poder) aos pais sobre os filhos para uma em que a Sociedade se substitui à própria família, estabelecendo normas de conduta admíssiveis ou não que vão para além do razoável.
Entretanto, a Teresa Power concordou, e incluiu um exemplo concreto, bastante divertido, até porque eu próprio iria certamente comprar esse DVD:
Perfeito! Estamos a dizer o mesmo... O que é o amor? Recebi outro dia uma carta de uma empresa fotográfica através da pré-escola dos meus filhos, e que dizia assim: "É obrigação dos pais não só amar os filhos, mas também assegurar que acompanham a sua escola, fazendo e mantendo registos fotográficos de todos os momentos significativos... Sugerimos a compra de um DVD com as actividades escolares dos seus filhos ao módico custo de 22 euros..." Naturalmente que ofereci a carta aos meus filhos para eles usarem a página de trás para desenharem (somos muito poupadinhos aqui!) e só voltei a recordar esta carta agora, ao escrever este comentário.
A Ana Rute Cavaco traduziu e colocou neste seu blogue um texto do pastor Kevin DeYoung, retirado do seu livro Crazy Busy. Vale imenso a pena lê-lo, pois ele aborda, de forma bastante clara, muito daquilo que eu tenho andado a discutir neste blogue. Deixo esta citação apenas como aperitivo (vão lá ler o resto que vale muito a pena):
Vivemos num mundo estranho. As crianças estão mais seguras do que em qualquer outra altura, mas a ansiedade parental é cada vez maior. As crianças têm hoje mais oportunidades e possibilidades de escolha, mas os pais vivem mais preocupados e aborrecidos. Despendemos uma quantidade inédita de energia, tempo e atenção nas nossas crianças. E ainda assim, assumimos que as falhas serão culpa nossa porque não fizemos, eventualmente, tudo o que pudemos. Vivemos num tempo em que a felicidade e o sucesso futuro das nossas crianças está presente em todas as nossas outras preocupações. Nenhum esforço é demasiado exigente, nenhuma despesa muito elevada e nenhum sacrifício desmesurado se for para as nossas crianças. É como uma pequena vida pesada na balança, tudo depende de nós.
Podemos justificar esta obsessão com as crianças como uma espécie de amor sacrificial e devoção. E poderá ser. Mas também lhe poderemos chamar Kindergarchy: um governo infantil. Em “Debaixo de um governo infantil”, Joseph Epstein diz: “Toda a agenda está feita em função das crianças: da escola delas, das audições, saraus, com o seu cuidado, saúde, alimentação – as crianças são quem dá o nome a este jogo.” Os pais tornam-se pouco mais do que empregados presentes para os seus filhos, como se elas fossem descendentes directas do rei sol.