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Esta manhã fugi à família para ir moderar uma conferência sobre a família à Universidade Católica, e entretanto lembrei-me de postar dois textos que li no Observador esta semana e que vinham no contexto da nossa animada conversa de há 10 dias.
O primeiro, com o qual estou em absoluto desacordo, é do padre Gonçalo Portocarrero de Almada (já é habitual) e celebra a beatificação de Paulo VI e da assinatura da encíclica Humanae Vitae.
O segundo, com o qual estou em absoluto acordo, é da Maria João Marques, e recorda aquilo que são para ela - e para mim - os verdadeiros fundamentos do cristianismo. Boas leituras.
Queria terminar a minha resposta aos leitores do post sobre a educação para o desprazer procurando clarificar uma passagem do meu texto, que dizia o seguinte:
Estou com [os meus filhos], em média, seis horas por dia (excepto aos fins-de-semana, claro), e as nove em que não estou com eles são muito mais calmas, repousadas e self-fulfilling. Eu sou, de facto, um pai de quatro criançofóbico (...). Daí a importância da tal educação para o desprazer.
Por favor, não confundam este "desprazer" com a tradicional cultura católica do "sacrifício". O sacrifício, dito de forma bruta, lembra-me sempre gente que coloca o cilício numa perna para se mortificar, e a sua prática cai muitas vezes no lado oposto ao que aqui me quero colocar - uma espécie de recalcamento do "eu" que só serve para causar frustrações e não dá proveito a ninguém, incluindo ao próprio. Não é a isso que me refiro.
A Teresa Power, de quem eu já aqui falei anteriormente, respondeu a esta passagem do meu post (comentário de 23.04.2014 às 14:07), argumentando o seguinte:
O que é self-fulfilling? O que é o prazer pessoal? E já agora, a noção de sacrifício... A que tu avanças no teu post não é a noção católica, mas a noção popular tradicional, ok? Porque sacrifício é tornar sagrado, libertar da escravidão do... prazer! Aprender o desprazer, como tu dizes, é de facto essencial - mas não para aprendermos a aguentar! É essencial para aprendermos a encontrar felicidade e verdadeira realização pessoal naquilo "que tem de ser", naquilo que é a nossa vida real, e não idealizada. A educação para o desprazer é verdadeiramente a educação para a felicidade.
Cuidar de seis filhos é a maior fonte de felicidade que encontro na minha vida. Há muitos anos que deixei de sentir genuíno prazer em coisas que antes me davam prazer, e descobri prazer em gestos rotineiros e sem graça... No meu caso, e por muito lamechas que isto soe, o saldo é francamente positivo. E não trocava os momentos que passamos juntos por nada deste mundo!
O Carlos Duarte entrou no debate da seguinte forma:
Realmente a descrição do sacríficio que o JMT fez não é nada "católica". O sacríficio não é masoquismo (i.e. tentar retirar prazer da dor ou ir atrás de dores e penas), mas sim aprender a vivermos e a pacificarmo-nos com os nossos problemas e incómodos. O resto do post (sobre o dever de "aturar" as crianças - nossas e dos outros - e da noção que o ganho final superará todas as perdas no passado) é que é uma excelente descrição do sacríficio cristão. A ideia (Mt 10:38) é aceitar a nossa cruz, não propriamente ir atrás de uma.
E a Teresa acrescentou, de seguida, mais um ponto:
Sim, mas há aqui outra coisa... Os santos não foram infelizes, nem se limitaram a "aguentar" a sua cruz, não é verdade? O sacrifício cristão traz verdadeiro prazer... São coisas que não se explicam, só se podem viver. Disse S. Paulo que, por Cristo, tudo considerava "esterco"... Não são palavras vãs, é a verdade: quando aprendemos a aceitar a nossa vida, a fantasia deixa de nos dar prazer, e encontramos verdadeiro gozo na nossa pobre rotina. É por isso que não consigo aceitar a ideia de que criar os filhos é uma maçada, por muito necessária que seja... Mas podemos discutir estas ideias no meu blogue (umafamiliacatolica.blogs.sapo.pt), que sobre cristianismo está mais apropriado!
Mesmo estando o blogue da Teresa mais apropriado para discutir ideias sobre cristianismo (e vale a pena visitá-lo também pelos testemunhos de vida em família que ela dá diariamente), ainda assim permitam-me o atrevimento de tentar aprofundar este ponto do sacrifício e do seu prazer.
Se repararem, eu tive o cuidado de colocar "tradicional cultura" antes da palavra "católica", e de seguida até exemplifiquei com o caso do cilício, que como bem sabem muito boa gente católica defende com argumentos bastante convictos (no Opus Dei, por exemplo). Evidentemente, para quem está de fora é algo difícil de compreender, tal como era difícil de compreender as imagens antigas de gente a arrastar-se em Fátima com os joelhos em sangue (isto na era pré-pedra polida e almofadas nos joelhos). Bem ou mal, eu diria que essa imagem de "sacrifício"ainda está marcada na mente de muitas pessoas, até porque a cada Páscoa continuamos a ver gente nas Filipinas a ser pregada a uma cruz.
Portanto, não só percebo o ponto da Teresa e do Carlos Duarte, como concordo com ele: existe uma diferença significativa entre o conceito "popular tradicional" de sacrifício e aquilo que um catolicismo instruído considera ser o verdadeiro sacrifício - que nunca é uma inutilidade, mas um dom.
Onde eu me afasto da Teresa, e daí este post, é no ponto seguinte: o de transformar o sacrifício em prazer. Deixem-me regressar aos seus argumentos:
Aprender o desprazer, como tu dizes, é de facto essencial - mas não para aprendermos a aguentar! É essencial para aprendermos a encontrar felicidade e verdadeira realização pessoal naquilo "que tem de ser".
A verdade é que eu sou um grande adepto do "ai aguenta, aguenta!" imortalizado pelo Fernando Ulrich (embora não pelas razões de Fernando Ulrich). O que a Teresa pede é um passo à frente: é encontrar o prazer no desprazer. Não é tanto libertarmo-nos das correntes que nos oprimem, para utilizar a linguagem marxista, mas passarmos a ter prazer nessas correntes, até porque elas se transfiguram e deixam de ser correntes. Ora, para mim, isso é mais ou menos o mesmo que para um budista encontrar o nirvana, esse estado de total comunhão e transparência - seria fantástico chegar lá, com certeza, mas não é para todos, e uma vida só não costuma ser suficiente.
E, portanto, a pregação entusiasmada dessa possibilidade pode, a meu ver, ser até contraproducente, ao dar a impressão de que se nos esforçarmos muito todos poderemos alcançá-la. E isto pela simples razão de que o processo é contranatura: se prazer e desprazer fossem a mesma coisa uma só palavra bastaria. Juntar os contrários e unificá-los é uma coisa muito bonita, mas 99% das pessoa falharão sempre. Eu falho, com certeza.
É por isso que a educação para o desprazer, de facto, advém, para mim, mais do estoicismo do que do cristianismo. É um aguenta, aguenta e não uma promessa de redenção, e muito menos uma promessa de redenção terrestre - coisa que a fé católica está, aliás, longe de dar como garantida. Na verdade, a Teresa sugere que há um caminho para a felicidade terrestre se nós nos entregarmos suficientemente a Cristo; como que um seguro de consolação já aqui, no planeta azul. Eu estaria disposto a rebater isso entusiasmada e biblicamente. A única consolação segura que os Evangelhos pregam advém da esperança de uma vida celeste - a felicidade desta vida é um bónus, e não uma garantia.
Daí eu entender que o "aguenta, aguenta" é muito mais útil, ao ajudar a uma gestão da frustração, que é aquilo que nós mais precisamos (eu preciso, pelo menos). Garantir a uma pessoa que ela consegue de certeza tirar a felicidade no que "tem de ser", tirar prazer no desprazer, é, aos meus olhos, demasiado ambicioso - quem o consegue fazer (e há quem consiga, com certeza) é um Cristiano Ronaldo da vida familiar. E, como todos sabemos, não é Cristiano Ronaldo quem quer. Só quem pode.
A educação para o desprazer, segundo esta minha teoria mal-amanhada, não é um caminho para a felicidade. É apenas um tampão contra a infelicidade constante. Não é sorrir na tempestade, não é dançar à chuva sobre o mastro partido. É apenas conseguir aguentar o barco na borrasca para poder sorrir quando os raios de sol aparecerem (porque aparecem sempre, graças a Deus).
É um projecto modesto de vida, é um pensamento débil, é uma gestão da dor, e não a promessa de uma epifania. É estar na cruz a cantar "always look at the bright side of life".
Não porque não custe, mas porque, dado o contexto, é a melhor das opções.