Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Eu sou egoísta e autocentrado, mas tenho praticado muito pouco. Donde, acumula-se uma dupla frustração: a de andar a praticar muito pouco o meu egoísmo e autocentramento, e a de ser acusado de uma coisa que não tenho tempo para praticar.
Nós, homens, padecemos muito disto.
A propósito do meu post sobre os maus exemplos, mais do que uma pessoa me colocou um link para um texto de uma senhora chamada Beth, intitulado "Porque não obrigo o meu filho a partilhar". O texto em inglês está aqui, a tradução em português aqui. Deixo apenas um excerto da argumentação, mas convém ler o artigo todo:
Há um carro encarnado [de um espaço público] com que o meu filho adora brincar e da última vez que fomos ele conduziu-o durante toda a hora e meia que lá estivemos. Enquanto a maior parte das mães que lá estão andam atrás dos filhos enquanto brincam, o meu tem idade suficiente para eu ficar a vê-lo a brincar ao longe. À distância, eu vi uma mãe a ir ter com o meu filho, vezes sem conta, e a dizer-lhe: “Pronto, é a vez de dares o carrinho a este menino.” Obviamente, ele ignorou-a, e eventualmente ela acabou por desistir. Havia imensos outros carros para o filho dela andar, inclusivamente um quase igual àquele… se não, talvez eu tivesse intervindo.
Eu acho contraproducente ensinar a uma criança que pode ter algo que outra criança tem, só porque ela quer. Eu percebo o desejo dos pais que os filhos consigam ter o que querem nem que seja por uns minutos para os verem felizes. Mas é uma boa lição a reter para o futuro: nem sempre temos ou alcançamos aquilo que queremos, e não é correcto passar por cima de tudo e de todos para consegui-lo. Além disso, não é assim que as coisas funcionam no mundo real. Receio que estas crianças cresçam a achar que vão ter tudo o que querem sem esforço.
Acontece-nos com bastante frequência procurarmos naquilo que lemos argumentos para corroborar os nossos próprios preconceitos - e eu não me estou a excluir disso, como é óbvio. Mas como esta argumentação me dá a volta ao estômago, porque sendo aparentemente muito racional acaba por ser uma mera justificação para o egoísmo, talvez valha a pena regressar ao tema.
Como em tudo, convém não ser radical. Eu obviamente não advogo que se obrigue um filho a dar tudo e mais alguma coisa a quem quer que seja. Uma criança pode ter um objecto que adore e obrigar a partilhá-lo à força com quem não lhe dá um décimo do valor é uma violência imerecida. Até porque, da mesma forma que há crianças insuportavelmente egoístas, há miúdos horrivelmente pedinchões, que querem sempre aquilo que os outros têm nas mãos. A esses, sim, convém explicar que "não é assim que as coisas funcionam no mundo real".
Mas tanto no meu post como no texto da Beth, aquilo de que estamos a falar nem sequer é de objectos privados - é de espaços públicos. Ou seja, de espaços partilhados por uma infinidade de crianças. E não há forma de eu poder considerar legítimo o usufruto durante hora e meia, por uma única criança, de algo que é de todos e que outros também desejam. Da mesma forma que não seria legítimo ocupar um baloiço durante 90 minutos.
É certo que a mãe sublinha que havia outros carros semelhantes àquele disponíveis. E que, se não houvesse, "talvez tivesse intervindo" (o "talvez" é, só por si, inacreditável). Mas se outros miúdos desejavam aquele carro, e se havia outros semelhantes, o que ela deveria fazer não era ficar sentada ao longe à espera que o problema se resolvesse por si. Era ir ter com o filho e dizer: "Já estás há 20 minutos a andar nesse carro, ele também é o carro favorito deste menino, por favor troca para outro." Após um período de divertimento razoável, era o filho da Beth que devia trocar de carro - pela simples razão de que o carro não era dele. Tal como não era daquele único pai e daquele único filho a baliza que eu referi no meu post.
Se as questões da partilha se podem colocar, e de forma muito premente, em relação à propriedade privada das crianças - e, sim, acho que os filhos devem ser convidados (não necessariamente obrigados) pelos pais a partilhar os seus próprios brinquedos com os outros -, elas parecem-me um dever escandalosamente evidente quando estamos a falar de espaços públicos.
Mais: volta a ser usado no texto da Beth um argumento que me parece totalmente ilegítimo, e sobre qual já falei muitas vezes a propósito dos posts sobre bater nos filhos ou não, que é a comparação entre adultos e crianças. Volto aos argumentos da Beth:
Nós não passamos à frente numa fila do supermercado só porque não nos apetece esperar, e não ficamos com o iPhone de um colega só porque queríamos muito ter um…
São exemplos idiotas. Em primeiro lugar, porque crianças não são adultos. Em segundo lugar, porque ninguém fala em não esperar: uma criança tem todo o direito de estar cinco minutos num baloiço enquanto os outros aguardam que ela acabe de se divertir. Em terceiro lugar, porque é mentira: nós não damos o nosso iPhone a um colega, mas certamente o emprestamos se ele precisar de ligar a alguém.
Mas, sobretudo, recuso absolutamente que nós tenhamos de ver a partilha segundo uma perspectiva sacrificial. Embora eu sempre tenha sido uma criança com imensas dificuldades em emprestar coisas de que gostava muito (falo disso de passagem aqui), orgulho-me muito que os meus filhos não sofram do mesmo mal. Até por serem quatro, eles disponibilizam com relativa facilidade as suas coisas aos outros.
Ora, nos exemplos de que tenho vindo a falar, diria que são os pais que estão mais confusos do que as crianças. Nós não emprestamos para aprendermos a sacrificar-nos e a abdicar. Emprestamos para poder proporcionar alegria aos outros. Uma criança não empresta para sofrer, empresta porque tem a oportunidade de fazer outras crianças felizes. É isso que lhes devemos ensinar. Inverter este olhar não é só estúpido, é não perceber nada do significado da partilha.
Mais uma vez, não me quero estar aqui a armar em guru do que quer que seja. Quem escreve estas palavras - ou seja, eu - tem imensa dificuldade em partilhar muita coisa. Mas a existência dessa dificuldade (porque sou muitas vezes egoísta) não invalida o valor que reconheço a quem empresta. Uma coisa é nós termos dificuldade, outra, bem diferente, é usarmos argumentos supostamente racionais para validar o nosso próprio egoísmo.
Ou seja, uma coisa é não ser capaz de praticar o bem, outra, muito diferente, é não reconhecer que é um bem, e inventar argumentos para, afinal, demonstrar que é um mal. Isso, a meu ver, não é aceitável. Aliás, é até bastante indecente.
Ontem à tarde o Tomás e uma amiga sua (mais a mãe do Tomás) insistiram muito comigo para irmos jogar à bola para um parque próximo da nossa casa, onde há um campo que já é velho mas que agora tem balizas novinhas em folha. Os miúdos costumam ser doidos por balizas verdadeiras.
Lá fomos, mas como já estávamos perto das cinco da tarde, ambas as balizas estavam ocupadas. À volta de uma delas estava um enxame de 12 ou 13 putos, com um guarda-redes e duas equipas. À volta da outra estava um único pai e um único filho.
Para meu grande espanto, o Tomás, que costuma ser um envergonhado de primeira, foi ter com o solitário pai (o prazer do futebol dá-lhe uma insuspeita coragem) e perguntou-lhe se nós podíamos jogar com ele e com o filho. Respondeu o pai:
- Ele é que sabe [apontando para o filho], mas vocês têm muito espaço para poderem jogar.
Era verdade quanto ao espaço: havia um bom bocado de campo vazio lá no meio. Só que - claro - não tinha balizas.
Perante aquela resposta do pai, aconteceu o óbvio: o filho disse que preferia continuar a jogar sozinho com o pai, alternando nos pontapés à baliza. E assim continuaram durante uma hora (saíram pouco antes de nós próprios nos irmos embora), pontapé para aqui, pontapé para ali, os dois sozinhos a jogar à bola. Confrontados com a nega, nós acabámos por nos juntar a um outro par de miúdos que chegou a seguir, improvisámos umas balizas no meio do campo, e divertimo-nos na mesma.
Claro que eu não tinha o direito de dizer nada àquele pai - não houve ali nenhuma injustiça evidente cometida. Eles tinham chegado primeiro, apanharam a baliza, e não eram obrigados a aturar-nos. Mas a verdade é que continuo a remoer isto desde ontem, sobretudo por me irritar profundamente a incapacidade daquele pai em perceber o péssimo exemplo que deu ao seu filho.
Nunca perceberei porque se deve perder uma oportunidade para se ser generoso num caso como este, quando é tão fácil sê-lo. Para quê pai e filho ficarem fechadinhos junto de uma baliza, quando um dos encantos do futebol é precisamente ser um desporto colectivo onde cabe sempre mais um?
O filho até podia ser um tímido do caraças e ter vergonha de jogar com os outros. Mas aquilo que aquele pai fez naquele momento foi valorizar o egoísmo e o auto-centramento daquela criança, em vez de a enturmar com miúdos da idade dele. Já que por aqui não me deixam dar nalgadas aos filhos, acham que posso ao menos dar umas nalgadas aos pais?
Eu já aqui referi várias vezes o grande Malomil, que para mim é simplesmente o melhor blogue português, e foi mais uma vez graças a ele que descobri o extraordinário Gustavo Santos, por causa deste post. Como eu vejo pouca televisão, não me recordo de me ter cruzado antes com a sua figura, e muito menos conhecia o seu trabalho como "life coach".
Enquanto aspirante a guru da auto-ajuda, o Gustavo, que se apresenta como "um homem apaixonado por pessoas, palavras e afectos", é uma espantosa máquina de produção de banalidades, apoiado em frases como "tudo é perfeito quando nós escolhemos sentir", ou "tu não és um fazer humano, tu não és o que fazes; tu não és um ter humano, tu não és o que tens; tu és um ser humano", ou ainda - a minha favorita - "a nossa mente chama-se 'mente' porque nos mente todos os dias".
Não, não é por isso que a mente se chama mente, Gustavo, mas deixa estar. E eu deixaria estar, não fosse o facto de que quase tudo aquilo que ele prega - e suponho que haja gente a acreditar no que ele prega, ou não ganharia a vida como "life coach" - ser, pura e simplesmente, horrível. Horrível. Não há outra palavra. Ao contrário de tanto guru inofensivo, Gustava Santos é o rei-sol da auto-ajuda, com um discurso absurdamente auto-centrado, de um tal extremismo solipsista que assusta qualquer um.
O Malomil escolheu postar o vídeo que se segue, particularmente ridículo pelo lado pintarolas e a gesticulação encenada, e por começar com esta frase tão esclarecedora: "o amor da minha vida sou eu, ponto final, parágrafo". É essa a resposta que o Gustavo dá à questão "quanto tempo esperarias pelo amor da tua vida?".
Mas na net há muito mais, incluindo uma série intitulada "cerca de 180 segundos com Gustavo Santos", que tem o apelo próprio dos desastres de automóvel. O seu desejo de pregar a palavra é tal, que o Gustavo nem se apercebe da barbaridade e da insensibilidade que é convocar o exemplo de uma criança internada no IPO para expor a sua filosofia de vida.
Noutros vídeos, Gustavo Santos diz coisas como esta:
"Eu tenho que ser a pessoa mais importante da minha vida. Tudo o resto, todas as outras pessoas têm que estar abaixo de mim. Quando pomos os outros acima de nós, nós geramos dependência, nós somos dependentes desta pessoa, logo, esta pessoa tem-nos na mão."
Claro que o Gustavo alerta que "sermos a nossa prioridade nada tem a ver com o egoísmo - tem a ver com o amor próprio", mas isso é porque parece ter sido precisamente para ele que Caetano Veloso inventou a frase "Narciso acha feio o que não é espelho". Suponho que para o Gustavo o egoísmo nem sequer exista, porque todos os gestos em causa própria serão apenas de fidelidade ao nosso "sentir".
Arriscar-me-ia a dizer que o Gustavo nunca amou verdadeiramente - ou, se amou, correu-lhe mal. Deixem-me por um momento ser eu a tentar a psicologia barata: talvez esta pregação seja um escudo contra as suas próprias insuficiências e infelicidades (eu desconfio sempre de quem diz dez vezes ao dia que é feliz). Embora eu desconheça a sua biografia, duvido que o Gustavo, com este discurso, algum dia tenha tido um filho.
Aliás, contra todas as probabilidades e aquilo que ele prega com tanto entusiasmo, é até possível que nunca tenha vivido. Porque viver é uma entrega permanente nas mãos dos outros, é um gesto de confiança várias vezes ao dia, é dizer a quem amamos, mais por gestos do que por palavras: "eu sou teu e tu és uma pessoa mais importante para mim do que eu próprio". E é - estranhamente - ser feliz assim.
Independentemente de se acreditar em Deus, há religiões desde que existe massa cinzenta nas nossas cabeças exactamente porque o homem sente uma necessidade profunda de não estar só no mundo, sabe que precisa dos outros e que não se basta a si próprio. Claro que podemos recusar isso e ser nihilistas, mas o nihilista ao menos percebe que o mundo é uma merda e que estamos todos lixados.
Gustavo, não. O Gustavo acha que é possível sermos todos simultaneamente super-homens impantes e auto-suficientes e ainda assim este mundo ser um oásis de felicidade. É aquilo a que se chama um alienado. E para o ajudar a voltar à terra sem que tenha necessariamente de tirar os olhos do céu, e a deixar - quem sabe? - de pregar barbaridades aos outros, aqui fica uma das mais belas orações que conheço, em francês, em Taizé, a partir do evangelho de João (Jo 15, 13):
Il n'est pas de plus grand amour
Que de donner sa vie pour ceux qu'on aime.
A canção original de Jacques Berthier, nas estrofes desta oração, é construída a partir de uma das mais comoventes cenas da Bíblia - o lava-pés (Jo 13, 1-17). Com todos os problemas que o mundo tem, e que a Igreja tem, todos os anos, pela Páscoa, há um papa, e centenas de bispos, e milhares de padres, que se continuam a ajoelhar para lavar os pés aos seus próximos, como sinal de humildade. Na última Páscoa, Francisco lavou os pés a jovens presos, incluindo uma muçulmana.
E isto porque sabemos todos - menos o Gustavo - que valemos muito pouco, e que é nas ligações que estabelecemos com os outros que nos engrandecemos e confortamos. No evangelho de Gustavo, infelizmente, jamais haveria espaço para um lava-pés. É por isso que há palavras que duram dois mil anos, e outras pouco mais de dois dias.