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Esta manhã fugi à família para ir moderar uma conferência sobre a família à Universidade Católica, e entretanto lembrei-me de postar dois textos que li no Observador esta semana e que vinham no contexto da nossa animada conversa de há 10 dias.
O primeiro, com o qual estou em absoluto desacordo, é do padre Gonçalo Portocarrero de Almada (já é habitual) e celebra a beatificação de Paulo VI e da assinatura da encíclica Humanae Vitae.
O segundo, com o qual estou em absoluto acordo, é da Maria João Marques, e recorda aquilo que são para ela - e para mim - os verdadeiros fundamentos do cristianismo. Boas leituras.
Bom, acho que a maior parte dos leitores já encheu a barriga de discussões teológicas na semana passada, e vou poupá-los a nova dose. Houve gente que me deixou perguntas muito interessantes nas caixas de comentários, às quais gostaria de responder, mas permitam-me agora fazer um período sabático em termos de debate religioso, até porque esse nunca foi o tema do PD4.
Chamo apenas a atenção para dois textos que a Maria João Marques escreveu sobre o tema no blogue O Insurgente (aqui e aqui), que têm tanto mais graça quanto nós fomos colegas de CPM nos idos de 2001, nos tempos em que ambos frequentávamos o CUPAV, ali no Lumiar. Éramos jovens, solteiros, loucos e sem filhos - mas hoje em dia estamos todos muito mais giros e interessantes.
Já de seguida, há uma prometida conclusão a uma conversa que ficou a meio. Ela ainda virá em tom melancólico, porque está escrita desde a semana passada, faltando-lhe aquele humor que alguns leitores já reclamam. Peço desculpa por isso e prometo ir tentar amanhã vasculhar álbuns de casamentos russos, para desanuviar. Afinal, todos nós sentimos saudades disto:
Deixem-me só dizer uma palavrinha sobre a agressividade argumentativa e a forma como eu a encaro, já que hoje a Teresa Power e o João Miranda Santos voltaram a queixar-se disso.
Escreveu a Teresa:
Enquanto se ler o meu primeiro comentário como se fosse um post, e não se ler como comentário a um post, e portanto intimamente relacionado com um post, post esse que ridicularizava a posição da Igreja e a posição dos pobres católicos (um em cada dez) que a seguia, então faz sentido apelidar-me de todos os nomes que me chamaram até agora. Mas eu escrevi na sequência de um post bastante agressivo, e portanto procurei explicar, em termos propositadamente agressivos também, porque é a posição da igreja tão séria neste assunto. Enfim, podem continuar a atacar e a deixar impune quem fala com tanta ligeireza destas coisas. Não há problema!
Concordou o João:
Nisto tenho mesmo de concordar e apoiar a Teresa Power, a agressividade começou e está bem patente na forma como o JMT falou da Humanae Vitae e dos católicos que a seguem. Nós reagimos, com certeza, acho que temos o direito de sair em defesa da nossa "família"!
Passemos por cima do facto de eu achar que a minha "família" é a mesma que a do João, e recuperemos os meus argumentos do post inicial, que deu origem a este muito útil e instrutivo debate:
Mesmo os católicos ignoram olimpicamente as directrizes da Igreja em relação aos anticoncepcionais, e eu não tenho dúvidas em classificar a famosa encíclica Humanae Vitae (1968) e a sua visão da regulação da natalidade como um momento muito infeliz na história da Igreja. Espero que essa visão venha a mudar brevemente, porque nove em dez católicos não conseguem sequer perceber - porque, simplesmente, não se percebe - por que raio a utilização de um preservativo interfere na sua relação com Deus.
Foi este parágrafo, apelidado de "bastante agressivo", que deu origem a um comentário, que ela própria também já classificou como "em termos propositadamente agressivos", da Teresa Power, cuja primeira frase era:
Podes usar as pílulas e os preservativos que quiseres, desde que não estejas a chamar à tua relação um espelho da relação entre Cristo e a Igreja, ou seja, um sacramento.
Neste post, eu chamei a esta frase uma entrada "a pés juntos". Mas acrescentei: "eu não sou queixinhas".
E não sou mesmo queixinhas, por uma razão muito simples: eu ganho a minha vida a opinar sobre tudo e mais alguma coisa, e nunca o fiz, nem aqui nem nos jornais, com paninhos quentes e mãos de veludo. Adoro debates, contra-argumentos, contraditórios, sempre gostei, desde criança. Da mesma forma que correr me faz bem ao corpo, discutir faz-me bem à cabeça.
Por isso, tenho uma enorme tolerância em relação a posts que discordam de mim, modero os comentários ao mínimo e adoro debates musculados - eles são uma tradução desse extraordinário bem chamado liberdade de expressão.
Em momento algum eu me senti ofendido com as observações da Teresa Power ou do João Miranda Santos. Mas agradecia, por amor de Deus, porque não acho que seja pedir muito, que subitamente não me transformem a mim no ofensor dos católicos que praticam os métodos naturais, ok?
Caro João: em momento algum eu fui agressivo para com os católicos que recusam a contracepção. Dizer que que nove em dez católicos não percebem por que raio a utilização de um preservativo interfere na sua relação com Deus, e que eu não atinjo os argumentos que defendem essa posição, não significa que quem utiliza os métodos naturais mereça alguma crítica da minha parte por essa prática.
A diferença entre nós é muito simples: eu acho que a questão da contracepção está fora da revelação bíblica e acho que tem tanta importância na minha relação com Deus como eu comer à mesa com pratos do IKEA ou da Vista Alegre. O João acha que a minha concepção de contracepção diminui, efectivamente, a perfeição da minha relação com Deus.
Embora muitas críticas à vossa intolerância me pareçam descabidas, e daí ter dado voz às queixas da Teresa, elas são compreensíveis dentro de uma mera perspectiva lógica, que podemos resumir desta forma: eu não acho (de um modo geral) que quem utiliza os métodos naturais seja prejudicado na sua relação com Deus, você acha (de um modo geral) que quem não utiliza os métodos naturais é prejudicado na sua relação com Deus. Portanto, é óbvio que a sua posição é mais limitadora de um determinado agir - daí alguns lhe chamarem, ainda que abusivamente, intolerância. Não é difícil perceber isso.
Tal como não é difícil, cara Teresa, perceber porque é que tanta gente te achou mais agressiva do que eu. Também é muito simples: eu fiz uma crítica abstracta à Igreja - ou, para ser mais correcto, à posição oficial do Vaticano sobre esta matéria, porque como dirás tu, e bem, Igreja somos todos nós - e tu rebateste-a com uma crítica concreta à minha relação, dizendo que não lhe posso chamar "um sacramento". Foi isso que chocou muitas pessoas, que obviamente sentem que existem diferenças entre o geral e o particular.
Como já disse anteriormente, eu sou muito, muito difícil de ofender. Sempre fugi a sete pés de pessoas susceptíveis, daquelas junto às quais temos de andar cuidadosamente a policiar as palavras, a ver se não amuam. Mais do que isso: sem esperar que qualquer um de nós mudasse a sua posição inicial, como referi aqui, o teu comentário musculado permitiu um debate que me pareceu frutuoso para muita gente e deu-me oportunidade para eu falar da minha própria fé, uma promessa antiga mas sempre adiada. Agradeço-te por isso.
Peço, contudo, tanto ao João como à Teresa, que de repente não tomem para vocês um papel de perseguidos e de ofendidos. Diante daquilo que aqui foi dito, parece-me uma posição francamente deslocada.
Num outro comentário, a Guida utilizou uma expressão que me parece de um acantonamento impróprio do espírito do catolicismo. Escreveu ela:
Só deve seguir as orientações da Igreja quem está dentro dela, pelo que não entendo porque é que tanta gente que se diz ateia está preocupada e até indignada com o que a Igreja pensa sobre o assunto...
Lamento, Guida, mas não posso estar mais em desacordo. A Igreja tem uma vocação universal e não pretendeu nunca falar apenas para dentro dela. Despachar as críticas aos métodos naturais com um "mas o que é que vocês têm a ver com isso se não pertencem à Igreja?" não é apenas um afastamento em relação a um espírito missionário que se recusa a pregar apenas para os convertidos - é, também, um caminho muitíssimo perigoso para trilhar. Será que utilizarias esse argumento, por exemplo, em relação ao aborto? Parece-me evidente que não.
As pessoas aderem ou não aderem àquilo que defendemos, mas os argumentos não têm de ser debatidos apenas por membros do clube.
E se eu escrevi ainda mais este post, que já não planeava escrever, é porque, aos poucos, me foi ficando uma certa sensação de defesa do meu quadrado - se estão de fora, não se metam; se o ambiente está muito agressivo, então não quero estar aqui.
Os primeiros apóstolos morreram crucificados, apedrejados, queimados. Será que hoje em dia, nós, católicos, para defendermos as nossas convicções, já nem sequer aguentamos comentários discordantes ou mais ou menos desagradáveis nas redes sociais? Se assim for, eu diria, muito sinceramente, que alguma coisa de fundamental se perdeu pelo caminho.
Depois de me dar conta da cavalgada retórica e espiritual a que se assistiu neste blogue no dia de ontem, não podia deixar de vir aqui dar a minha opinião como segunda metade do casal cuja compostura sacramental foi posta em causa. Antes de mais, deixem-me dizer-vos que tenho pena de não ter pedalada para acompanhar o decorrer das discussões interessantes que se geram neste blogue. Imagino até que por vezes pareça leviano deixar de o fazer. Mas a minha vida profissional não me permite andar a tratar da vida das pessoas com os neurónios cansados por noitadas ao computador, descontando as que por obrigações familiares e profissionais me são impostas.
Contudo, tenho algumas coisas a dizer. Comecemos pelos métodos anticonceptivos naturais, que foram aqui ridicularizados e elogiados. Factos são factos, e nem sempre o que anda na boca de toda a gente é verdade. Há vários métodos chamados naturais, com eficácias muito diferentes. O método da ovulação Billings (lamento contrariar a maioria das pessoas) é tão eficaz na prevenção de uma gravidez como a pílula, desde que seja escrupulosamente cumprido e em mulheres em que possa ser aplicado.
Isto é válido para a grande maioria das mulheres que têm ciclos "irregulares" e até para pessoas iletradas ou cegas. Há estudos fidedignos, controlados pela World Health Organisation, que assim o confirmam. E é preciso entender que este método não serve só para evitar uma gravidez, mas também para ajudar mulheres a engravidar e a cuidar da sua saúde ginecológica e endocrinológica. Acho, muito sinceramente, que deveria ser ensinado nas escolas para que todas as meninas pudessem entender melhor os seus ritmos fisiológicos e identificar sinais de alarme na sua saúde futura.
Dito isto, urge explicar então o grande busílis do método - as regras altamente rigorosas que é preciso cumprir se o queremos usar para prevenir uma gravidez. Em traços muito grosseiros:
1) Não pode haver actividade sexual nos dias de maior fluxo menstrual.
2) Desde a menstruação até à identificação do "pico de fertilidade" (que precede em menos de 24 horas a ovulação) a actividade sexual tem que ser praticada em dias alternados, para o sémen não mascarar as características do muco.
3) Depois do pico identificado devem ser cumpridos três dias de abstinência.
4) A partir do quarto dia até ao próximo fluxo menstrual não há qualquer restrição na actividade sexual.
Pessoalmente, acho óptimo que haja imensos casais felizes que conseguem controlar a sua fertilidade com este método e parece-me completamente lógico que ele (e não o dos calendários ou das temperaturas isoladamente) faça parte da orientação da Igreja para a vida sexual dos casais católicos. Mas falo em orientação. Não em imposição.
Isto porque há imensos casos em que este método não pode ser aplicado eficaz e salutarmente por múltiplas e variadas razões. É bem verdade que a grande maioria das pessoas usa a desculpa dos ciclos irregulares para nem sequer tentar. É bem verdade que é muito mais fácil tomar um comprimido ou levar uma injecção mensalmente para conseguir viver uma vida sexual descontraída. É bem verdade que o valor da renúncia não é universal.
Mas não vejo como a Igreja deva impor (para dar dois ou três exemplos) a um casal que está a viver o drama de um cancro na sua vida, em que um deles está a fazer quimioterapia ou algum medicamento teratogénico e que por isso não pode engravidar, que não pode manter a vida sexual que a sua reduzida líbido lhe permitir e que tão bem lhe fará ao corpo e à alma. Nem como um casal que trabalha por turnos e que raramente se encontra entre os lençóis deva sentir o peso de estar a cometer um pecado quando o cansaço e o horário lhes permite fazer amor. Nem como pessoas que vivem em contextos sociais complicados, com dificuldades em entender a mensagem que lhes é transmitida, não poderão controlar a sua própria fecundidade sob pena de não serem aceites pela sua comunidade. Para mim, não é nada disto que o Deus Amor quer.
É claro que a pílula é um medicamento, e como tal serve, para além de anticonceptivo, para tratar muitas mulheres. É claro que não deve ser tomada por períodos muito longos e se isso acontece em geral está errada a abordagem médica subjacente. É claro que os efeitos secundários devem ser ponderados e evitados/ tratados. Mas há muitas situações, sim, em que a toma da pílula é recomendável.
Falou-se aqui de preservativos e como eles podem não ser um método eficaz em determinados contextos para evitar DSTs. Claro que sim. Nunca me esqueço, quando estive a trabalhar em Cabo Verde depois de acabar o curso de Medicina, de me aparecer na Delegacia de Saúde um homem zangado por ter feito como lhe recomendaram, usando o preservativo sempre que teve relações, e estar novamente com gonorreia. Foi uma situação anedótica: o homem vinha com o preservativo no dedo, e fora assim que o tinha usado durante as relações sexuais, tal como a higienista lhe tinha explicado.
Há muita dificuldade em transmitir informação por múltiplas e variadas razões, mas a utilização do preservativo já evitou incontáveis mortes por doença e há situações em que não existe alternativa. E a Igreja deve carimbar de pecador esses homens? Por favor. É claro que ainda temos muito caminho a percorrer até que cada pessoa neste mundo possa escolher responsável e livremente a sua vida sexual e a sua fertilidade, mas devemos dar um passo de cada vez, protegendo sempre (e para mim incondicionalmente) a vida humana.
A Teresa Power faz uma observação pertinente sobre a tolerância nos comentários a este post:
João, um pequeno - mas importante - comentário sobre algo que me está a irritar: o tema da tolerância. Se um ateu ou um "católico ateu" diz algumas coisas com tom de certeza e, como tu próprio bem sabes, sem qualquer intenção de mudar de ideias, ninguém lhe chama intolerante. Se um católico "conservador" ou lá o que isso seja diz de sua justiça no mesmo tom, já é considerado intolerante.
Queria apenas esclarecer isto: a intolerância ou a tolerância testam-se na vida, e se alguém aí me viu alguma vez com atitudes intolerantes, então tem toda a razão em afirmar que o sou. Até lá, não dei a ninguém o direito de me chamar intolerante. Sou muito segura das minhas ideias e muito convencida da minha verdade? Sim, sou, de algumas, que outras estão em contínua mudança e, como já afirmei aqui, o que penso hoje não pensei sempre, o que faço hoje não fiz sempre. Mudo de opinião muitas e muitas vezes na minha vida, graças a Deus. Mas não sou intolerante.
Nunca julgaria ninguém pelo tipo de método que utiliza - aliás, nunca o perguntei a ninguém, nem diretamente, nem indiretamente - e nunca julgaria ninguém pela sua religião ou outra opção de vida. Como sabes, os retiros que organizo estão abertos a ateus e a pessoas de outros credos, e os meus amigos contam-se entre todos estes. Haja paciência!
Nos comentários a este post, o João Miranda Santos levanta mais uma série que questões que merecem uma explicação da minha parte. Eis a segunda metade da sua argumentação:
É verdade que não sei muito a respeito da vida religiosa do JMT (prometeu falar disso mas ainda não chegou a hora), mas pelo menos já sei que para si rezar sempre foi embater no silêncio, e que a sua fé tem a espessura de um fio de cabelo. Também não percebi se se identificou aqui como católico progressista (seja lá isso o que for), o que implicava assumir-se como católico.
Ora, os católicos acreditam que quando um sucessor de Pedro se pronuncia numa encíclica, o que ali se diz é mais do que uma conversa de café, é mais do que um qualquer comentário a um jogo de futebol. Por isso eu entendo que o facto de o JMT classificar a Humanae Vitae como um momento muito infeliz da história da Igreja é de uma grande arrogância, se se assumir como católico. Se não se assumir, então é jogar completamente fora de campo...
O JMT tem direito à sua opinião e às suas convicções, claro que sim. Mas quando se trata de atirar por terra uma encíclica, e ainda para mais quando se reconhece a delicadeza da sua fé e a dificuldade da oração (presumindo que isto signifique dificuldade na relação com Deus), acho que a Igreja, com a qual já tem uma longa relação, lhe merecia mais prudência. Isto sem por em causa a seriedade e o quanto já pensou sobre o tema.
Ou seja, sem o querer ofender, neste campo eu não olho da mesma forma para uma discordância sua como olharia se fosse da Teresa Power (só para usar um exemplo próximo e que o JMT conhece o suficiente para perceber a diferença a que me refiro), na prática é como se não tivessem a mesma "informação".
Muito brevemente: a minha relação com a fé sempre foi conturbada. Não tive propriamente uma educação católica, os meus pais não eram católicos praticantes na minha juventude, e devo ter tido para aí uma ou duas aulas de catequese. Mas o tema de Deus sempre me interessou, desde muito cedo, e discuti-o com fervor a partir dos meus 13 anos. Nessa altura eu afirmava-me como ateu, e suponho que ainda hoje me considere estruturalmente como tal, no sentido em que sou como Tomé mas não tenho um mão furada onde meter o dedo.
A partir do nono ou décimo ano tive um professor de moral que me marcou muito, passei a ler bastante sobre temas religiosos, descobri Taizé, que continua a ser uma referência espiritual para mim, envolvi-me em grupos de jovens, aprendi a tocar guitarra, comecei a participar nos Convívios Fraternos por causa de um padre de Proença-a-Nova que é muito importante nas nossas vida (na minha, na da Teresa e também na da Teresa Power), e aos poucos iniciou-se um processo de conversão. Fiz a primeira comunhão e o crisma já adulto, comecei a dar testemunho nos Convívios, construímos uma CVX (um grupo de reflexão que segue a espiritualidade inaciana) em Lisboa.
As dúvidas regressaram pouco tempo depois de começar a trabalhar - na verdade, nunca deixaram de lá estar. Abandonei os Convívios, porque me sentia hipócrita a apelar à conversão de outros quando a minha própria fé não tinha a convicção que eu julgava necessária para isso. Com o final da CVX deixei de ter uma comunidade de reflexão, e o final do papado de João Paulo II, mais os subsequentes escândalos de pedofilia, foram também pondo em causa a minha relação com a Igreja, da qual me fui sentindo cada vez mais afastado.
No entanto, o fascínio pelos Evangelhos sempre permaneceu intocado, desde o primeiro dia. Na verdade, é um fascínio sempre renovado, e acho que o nascimento dos filhos também ajudou a isso. A minha primeira aproximação à fé foi feita pelo lado da estética - aquilo era tão belo que deveria ter alguma verdade. Mas, com o envelhecimento e a paternidade, a dimensão ética tem vindo a ganhar peso - há ali tanta bondade que aquilo deve ter alguma verdade.
Mesmo que as dúvidas nunca diminuam, e a existência de um Ser Superior me pareça frequentemente inconcebível, desconfio que eu vá passar a vida toda neste bailado de aproximação e afastamento. Um bailado que é próprio de quem procura ser fiel a si próprio e à sua consciência, que lhe diz "Ele não existe", mas eternamente fascinado, como as mariposas (e as melgas), por uma misteriosa luz que lhe diz "anda cá".
Já me auto-intitulei, meio a sério, meio a brincar, como um "católico ateu". Depois descobri que Graham Greene chamou-se exactamente o mesmo a si próprio. O que significa que estou em excelente companhia.
Assim sendo, e voltando ao comentário do João Miranda Santos, mesmo imerso na minha titubeante fé, sempre senti a Igreja como minha, e entre os numerosos defeitos da Igreja Católica há esta extraordinária qualidade: na prática, ela é um lugar de acolhimento, e não de expulsão. Os seus braços estão lá para abraçar, e não para empurrar - e graças a Deus hoje em dia está lá um papa que diz isso mesmo.
Daí eu nunca questionar a minha legitimidade para opinar sobre teologia ou encíclicas. Para mais estando a falar de uma religião que se formou, e propagou, junto dos gentios. Para mais estando a falar de um homem que disse ao ladrão que tinha ao seu lado, momentos antes de expirar, "ainda hoje estarás comigo no Paraíso" - o que significa que há a esperança da redenção até ao último suspiro. Para mais estando a falar de um homem, filho de Deus, que gritou na cruz: "meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?", o que ainda hoje me comove e me fortalece - se ele próprio sentiu o abandono e ficou, por que não hei-de eu senti-lo e ficar?
Por isso, vou ficando.
E por isso, também, vou opinando. Quando o João diz que "os católicos acreditam que quando um sucessor de Pedro se pronuncia numa encíclica, o que ali se diz é mais do que uma conversa de café", eu faço notar que, para mim, a Humanae Vitae é muito mais do que uma conversa de café, e nunca a tratei como tal. Se fosse apenas conversa de café ela não seria tão grave.
O que já me parece indefensável é esta conclusão: "classificar a Humanae Vitae como um momento muito infeliz da história da Igreja é de uma grande arrogância, se se assumir como católico". Certamente que o João não precisa que eu lhe comece a fazer uma lista das coisas que foram defendidas em documentos ao longo da história da Igreja, e que nós hoje consideramos uma barbaridade, pois não? Se a encíclica tiver 200 anos podemos dizer "realmente, que estupidez!", mas se tiver 45 anos já não?
Aquilo que não é nada católico, e muitas vezes os católicos parecem esquecer-se disso, é colocar os textos do Vaticano ao nível da Bíblia, numa quase equivalência sagrada. Do género: "se acreditas nisto, então obviamente também tens de acreditar naquilo". Não, não tenho. É por isso que a Bíblia permanece como está há tantos séculos e os catecismos vão mudando de tempos a tempos.
Qualquer encíclica deve ser olhada com a mesma seriedade com que foi escrita, certamente, mas não devemos fazer dela um bezerro de ouro, ou forçar a nossa consciência e a nossa inteligência a aderir a um documento que, para nós, não faz qualquer sentido. O papa não é Deus, e os últimos papas até têm tido a simpatia de não invocar o problemático dom da infalibilidade.
É evidente que o João tem todo o direito de não olhar da mesma forma para uma discordância minha como olharia "se fosse da Teresa Power". Se se sente mais identificado com o que ela escreve, isso faz todo o sentido. O que não faz sentido, a meu ver, é sugerir a ideia de que sobre este assunto os meus argumentos valem pouco porque não sou católico (ou sou um pobre católico, vá). Em primeiro lugar, porque a Igreja tem uma ambição universal - ela fala para todos, e não para uma seita de fiéis. E, em segundo lugar, porque a qualidade dos argumentos deve valer por si, e não por quem os profere.
Quando assim não é, a esses argumentos chamam-se "argumentos de autoridade". E os argumentos de autoridade não costumam valer grande coisa. Nem dentro da Igreja Católica, nem fora dela.
Bom, vamos cá ver se me despacho com este post, porque eu não consigo escrever tão depressa quanto as novas questões que vão surgindo e me dão vontade de contra-argumentar.
Os argumentos da Teresa, já citados aqui, vão a itálico e a negro, e aquilo que eu tenho para dizer vai a redondo.
Podes usar as pílulas e os preservativos que quiseres, desde que não estejas a chamar à tua relação um espelho da relação entre Cristo e a Igreja, ou seja, um sacramento.
Esta é uma entrada da Teresa a pé juntos, mas eu não sou queixinhas. A única coisa que posso garantir é que tenho infinitas falhas no meu casamento, bem mais graves do que o uso de preservativos, até porque nem os uso. Se o espelho está partido, e muitas vezes cai, parte-se, e volta-se a colar, duvido que seja por causa das minhas actividades entre lençóis. Esse é o primeiro problema grave desta questão, que marcou estupidamente a história da Igreja durante toda a metade do século XX: uma obsessão com a moral sexual que a desviou de tanta, mas tanta, coisa mais importante. O papa Francisco parece estar finalmente a corrigir isso e a recentrar prioridades. Abençoado seja ele.
Na sua belíssima encíclica, que classificaste de infeliz, a Igreja condena a contraceção porque ela afasta o amor humano da "imagem e semelhança" do amor divino, que é um amor sem limite, abundante, aberto à vida, verdadeiro. Um católico, ao "casar pela Igreja", isto é, ao receber o sacramento, recebe também a responsabilidade de tornar a sua relação semelhante à relação esponsal entre Cristo e a Igreja. O amor de Cristo não é nunca um amor contraceptivo. Não há volta a dar!
Segundo problema: eu não quero entrar nas questões teológicas acerca da "relação semelhante à relação esponsal entre Cristo e a Igreja" porque se trata, no meu entender, da mera construção de uma arquitectura argumentativa em cima de um preconceito. Pecado, aliás, que atravessa a Igreja ao longo de séculos. Tipo: "eu acho mal o uso de contraceptivos (até porque o sexo nunca foi coisa bem vista, como é óbvio), agora deixa-me cá encontrar um argumentação que justifique isto".
Aos meus olhos, a Humanae Vitae tem essa atitude, do princípio ao fim, daí a ter considerado um momento muito infeliz na história da Igreja - é uma encíclica que tenta justificar um preconceito com uma argumentação com base na Lei Natural, que é aquela coisa que dá absolutamente para tudo. Desde que espremas um bocado a Lei Natural, ela confessa o que quiseres. Afinal, os contraceptivos são uma consequência dessa maravilha natural que é o cérebro humano, que Deus Nosso Senhor nos convida a usar. E os preservativos, quando eram feitos de pele de carneiro, eram super-naturais. Na verdade, não tem fim o cortejo de barbaridades que ao longo da História se apoiou em cima do argumento da "Lei Natural".
Mas olhemos mais em detalhe para a encíclica. A Humanae Vitae deriva do velho ensinamento que "qualquer acto matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida", não cabendo ao homem separar o "significado unitivo" do "significado criador". E quando nós perguntamos: porquê? A resposta é: "porque está em contradição com o desígnio constitutivo do casamento e com a vontade do Autor da Vida". Que é uma espécide de "porque sim". Porque Deus assim ordena. Mas eu, que sou teimoso, gosto de compreender aquilo que Deus me ordena. Porque, em geral, não tenho quaisquer problemas de compreensão com aquilo que me é ensinado nos Evangelhos. Apenas como algumas coisas que me são ensinadas no Catecismo.
O resultado deste posicionamento unitivo-criador é que a Igreja não se limitou a condenar os contraceptivos na encíclica. As notas pastorais dela derivadas condenam também a fecundação in vitro, e não só por se desperdiçarem potencialmente vidas já geradas (uma preocupação legítima). Tal como condena a laqueação de trompas em qualquer caso, mesmo que uma mulher tenha feito várias cesarianas e uma próxima a coloque em risco de vida. Porque Deus lá sabe o que é melhor para nós.
Só que, ao mesmo tempo, como nenhuma espécie de planeamento era impensável em 1968, permite os "métodos naturais", aos quais o Carlos Duarte já chamou nos comentários, e muito bem, uma "batota canonicamente legalizada". Porque a única diferença entre uns métodos e outros é, precisamente, serem "naturais" e convidarem à "castidade". Ora, se há coisa a que um pai de quatro (já para não falar de seis ou sete) não precisa de ser convidado é a praticar a castidade - com a falta de tempo, o stress e o cansaço não fazemos nós outra coisa, não é?
E deixa-me dizer-te, para encerrar o comentário - não comentarei mais sobre este tema - que mesmo que a Igreja dissesse outra coisa, eu nunca voltaria atrás na minha decisão de não tomar medicação para fazer amor.
Mas ninguém te pede para voltares atrás. Para mim, é como a castidade dos padres: deveria ser uma opção. Daí eu falar num post anterior "que a Igreja deve reduzir as suas imposições àquilo que é o centro irredutível da fé cristã". Naquilo que não é absolutamente central e não tem uma deriva óbvia dos Evangelhos, como é manifestamente o caso, a atitude da Igreja deveria ser de convite, e não de imposição. Tu podes convidar as pessoas a utilizar os métodos naturais, por entenderes que esse é um caminho mais perfeito, mas não deves condená-las por não o fazerem.
Ou seja, eu não tenho qualquer problema com quem utiliza os métodos naturais, se isso os faz mais feliz na sua cama e realizados na sua fé. Mas tenho tudo contra dizerem a um católico que ele não pode chamar ao seu casamento um sacramento só porque utiliza a pílula ou o preservativo. Sorry.
Acho triste um marido permitir à sua esposa tomar medicamentos - a pílula é um medicamento, sabias? - para que ela esteja sempre disponível para o sexo. O ciclo natural da mulher é uma das maiores maravilhas da natureza, e conhecê-lo e respeitá-lo em casal é uma das grandes graças que nós tivemos desde que nos casámos.
Aqui parece-me que cais no velho preconceito de colocares o marido na posição de quem quer sempre o truca-truca e a mulher na posição do "ok, se tu queres, lá tem de ser". Admito perfeitamente que possa ter sido uma formulação que te saiu mal. Só que, infelizmente, é uma formulação derivada da própria encíclica, que tem passagens como esta: "É ainda de recear que o homem, habituando-se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e psicológico dela, chegue a considerá-la como simples instrumento de prazer egoísta e não mais como a sua companheira, respeitada e amanda." É esta a linguagem empoeirada que tu chamas "belíssima", Teresa?
Mais: penso que, 46 anos depois da Humanae Vitae, podemos dizer que o papa Paulo VI se enganou rendondamente: a pílula fez muito mais pela libertação sexual das mulheres - ou, se quiseres, pela sua "licenciosidade" - do que pela libertação sexual dos homens, que sempre estiveram, aliás, bastante libertos.
A fertilidade feminina não é uma doença, não precisamos de medicação para viver uma vida sexual plena e feliz. Planeando naturalmente a nossa família, os dias deixam de ser todos iguais... Graças a Deus, a minha vida sexual é plena e abundante, os meus filhos também são numerosos, mas ainda não engravidei sem o desejar.
O argumento farmacêutico, de que isto é tudo um complô da indústria, não vou sequer rebater. Mas noto que o preservativo não é um medicamento, e portanto se o problema fosse a medicação, ele tornar-se-ia legítimo. Não é isso que tu defendes. Quanto a nunca teres engravidado sem desejares, fico muito feliz por isso. Como bem sabes, milhões de mulheres em todo o mundo não podem dizer o mesmo. Mas também não vale a pena entrarmos aqui na questão de saber quantos abortos poderiam ter sido evitados se os ensinamentos da Igreja fossem outros.
Embora a Igreja ensine que há males menores que devem ser tolerados para evitar males maiores, o importante neste tema é que eu, e milhões de pessoas como eu, por mais que abram o seu coração e tentem estudar os argumentos da Igreja, não encontram a menor lógica na sua posição em relação aos métodos contraceptivos. Não se trata de ser um mal menor. Trata-se de não ser um mal. E de, muitas vezes, ser até um bem.
Eu bem disse que haveria de chegar o dia em que falaria de Deus e de fé. A Teresa Power está justamente aborrecida por alguns comentários, que atingiram níveis de intolerância que eu não gosto de ver praticados neste blogue. O PD4 sempre se orgulhou de não ter moderação (embora já o tenha tido de moderar a espaços, porque de vez em quando passam por cá uns malucos - como em todo o lado, suponho eu) e gostaria que continuasse assim. Por isso, peço a todos que discutam com músculo e entusiasmo, mas também com moderação e bom-senso.
Esta discussão sobre métodos naturais versus métodos artificiais não serve para convencer a Teresa, ou o João, ou eu próprio, ou o Carlos Duarte, a mudar de opinião. Todos nós já pensámos abundamente sobre este tema. Mas as discussões fortalecem os argumentos e convidam a uma reflexão conjunta, porque se nós já pensámos sobre isto, há muita gente que nunca pensou. Também já há alguns exemplos desses nas caixas de comentários, e portanto esta troca de argumentos já serviu para alguma coisa.
Diz a Teresa Power:
Na verdade, JMT, enquanto as questões da fé não forem travadas na intimidade da oração, como referiu o João Miranda, não as iremos nunca compreender. A Deus chega-se pelo coração, e só depois de se chegar pelo coração, se "entende" pela razão. Toda esta argumentação é inútil, perfeita perda de tempo - a não ser, e é isso que me mantém aqui, que ajude alguém a abrir o coração...
Mais uma vez (voltamos a concordar para a semana, ok, Teresa?) não posso estar mais em desacordo. Como bem ensina a tradição, os caminhos do senhor são misteriosos, e aquilo que não falta ao longo da História são pessoas que chegaram a Deus de forma inteiramente racional. Primeiro entrou pela cabeça, e só depois foi ao coração. Eu sei, obviamente, que não é esse o carisma da Teresa, mas uma das grandes qualidades de Deus é não caber nas caixinhas que insistimos em criar para Ele. Não há um só caminho. Nunca houve um só caminho.
Deixem-me citar o belíssimo Eclesiastes, e rezar com Salomão, na tradução de João Ferreira de Almeida:
Assim com tu não sabes qual o caminho do vento,
nem como se formam os ossos no ventre da que está grávida,
assim, também, não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas.
Pela manhã, semeia a tua semente,
e à tarde, não retires a tua mão,
porque tu não sabes qual prosperará:
se esta, se aquela,
ou se ambas serão boas.
Eu acho que é isto que todos estamos a fazer, Teresa. Cada um está a semear a sua semente com o coração aberto, e não há porque retirar a mão só porque certos terrenos nos parecem demasiado duros.
A minha argumentação virá (finalmente!) a seguir.
Queria terminar a minha resposta aos leitores do post sobre a educação para o desprazer procurando clarificar uma passagem do meu texto, que dizia o seguinte:
Estou com [os meus filhos], em média, seis horas por dia (excepto aos fins-de-semana, claro), e as nove em que não estou com eles são muito mais calmas, repousadas e self-fulfilling. Eu sou, de facto, um pai de quatro criançofóbico (...). Daí a importância da tal educação para o desprazer.
Por favor, não confundam este "desprazer" com a tradicional cultura católica do "sacrifício". O sacrifício, dito de forma bruta, lembra-me sempre gente que coloca o cilício numa perna para se mortificar, e a sua prática cai muitas vezes no lado oposto ao que aqui me quero colocar - uma espécie de recalcamento do "eu" que só serve para causar frustrações e não dá proveito a ninguém, incluindo ao próprio. Não é a isso que me refiro.
A Teresa Power, de quem eu já aqui falei anteriormente, respondeu a esta passagem do meu post (comentário de 23.04.2014 às 14:07), argumentando o seguinte:
O que é self-fulfilling? O que é o prazer pessoal? E já agora, a noção de sacrifício... A que tu avanças no teu post não é a noção católica, mas a noção popular tradicional, ok? Porque sacrifício é tornar sagrado, libertar da escravidão do... prazer! Aprender o desprazer, como tu dizes, é de facto essencial - mas não para aprendermos a aguentar! É essencial para aprendermos a encontrar felicidade e verdadeira realização pessoal naquilo "que tem de ser", naquilo que é a nossa vida real, e não idealizada. A educação para o desprazer é verdadeiramente a educação para a felicidade.
Cuidar de seis filhos é a maior fonte de felicidade que encontro na minha vida. Há muitos anos que deixei de sentir genuíno prazer em coisas que antes me davam prazer, e descobri prazer em gestos rotineiros e sem graça... No meu caso, e por muito lamechas que isto soe, o saldo é francamente positivo. E não trocava os momentos que passamos juntos por nada deste mundo!
O Carlos Duarte entrou no debate da seguinte forma:
Realmente a descrição do sacríficio que o JMT fez não é nada "católica". O sacríficio não é masoquismo (i.e. tentar retirar prazer da dor ou ir atrás de dores e penas), mas sim aprender a vivermos e a pacificarmo-nos com os nossos problemas e incómodos. O resto do post (sobre o dever de "aturar" as crianças - nossas e dos outros - e da noção que o ganho final superará todas as perdas no passado) é que é uma excelente descrição do sacríficio cristão. A ideia (Mt 10:38) é aceitar a nossa cruz, não propriamente ir atrás de uma.
E a Teresa acrescentou, de seguida, mais um ponto:
Sim, mas há aqui outra coisa... Os santos não foram infelizes, nem se limitaram a "aguentar" a sua cruz, não é verdade? O sacrifício cristão traz verdadeiro prazer... São coisas que não se explicam, só se podem viver. Disse S. Paulo que, por Cristo, tudo considerava "esterco"... Não são palavras vãs, é a verdade: quando aprendemos a aceitar a nossa vida, a fantasia deixa de nos dar prazer, e encontramos verdadeiro gozo na nossa pobre rotina. É por isso que não consigo aceitar a ideia de que criar os filhos é uma maçada, por muito necessária que seja... Mas podemos discutir estas ideias no meu blogue (umafamiliacatolica.blogs.sapo.pt), que sobre cristianismo está mais apropriado!
Mesmo estando o blogue da Teresa mais apropriado para discutir ideias sobre cristianismo (e vale a pena visitá-lo também pelos testemunhos de vida em família que ela dá diariamente), ainda assim permitam-me o atrevimento de tentar aprofundar este ponto do sacrifício e do seu prazer.
Se repararem, eu tive o cuidado de colocar "tradicional cultura" antes da palavra "católica", e de seguida até exemplifiquei com o caso do cilício, que como bem sabem muito boa gente católica defende com argumentos bastante convictos (no Opus Dei, por exemplo). Evidentemente, para quem está de fora é algo difícil de compreender, tal como era difícil de compreender as imagens antigas de gente a arrastar-se em Fátima com os joelhos em sangue (isto na era pré-pedra polida e almofadas nos joelhos). Bem ou mal, eu diria que essa imagem de "sacrifício"ainda está marcada na mente de muitas pessoas, até porque a cada Páscoa continuamos a ver gente nas Filipinas a ser pregada a uma cruz.
Portanto, não só percebo o ponto da Teresa e do Carlos Duarte, como concordo com ele: existe uma diferença significativa entre o conceito "popular tradicional" de sacrifício e aquilo que um catolicismo instruído considera ser o verdadeiro sacrifício - que nunca é uma inutilidade, mas um dom.
Onde eu me afasto da Teresa, e daí este post, é no ponto seguinte: o de transformar o sacrifício em prazer. Deixem-me regressar aos seus argumentos:
Aprender o desprazer, como tu dizes, é de facto essencial - mas não para aprendermos a aguentar! É essencial para aprendermos a encontrar felicidade e verdadeira realização pessoal naquilo "que tem de ser".
A verdade é que eu sou um grande adepto do "ai aguenta, aguenta!" imortalizado pelo Fernando Ulrich (embora não pelas razões de Fernando Ulrich). O que a Teresa pede é um passo à frente: é encontrar o prazer no desprazer. Não é tanto libertarmo-nos das correntes que nos oprimem, para utilizar a linguagem marxista, mas passarmos a ter prazer nessas correntes, até porque elas se transfiguram e deixam de ser correntes. Ora, para mim, isso é mais ou menos o mesmo que para um budista encontrar o nirvana, esse estado de total comunhão e transparência - seria fantástico chegar lá, com certeza, mas não é para todos, e uma vida só não costuma ser suficiente.
E, portanto, a pregação entusiasmada dessa possibilidade pode, a meu ver, ser até contraproducente, ao dar a impressão de que se nos esforçarmos muito todos poderemos alcançá-la. E isto pela simples razão de que o processo é contranatura: se prazer e desprazer fossem a mesma coisa uma só palavra bastaria. Juntar os contrários e unificá-los é uma coisa muito bonita, mas 99% das pessoa falharão sempre. Eu falho, com certeza.
É por isso que a educação para o desprazer, de facto, advém, para mim, mais do estoicismo do que do cristianismo. É um aguenta, aguenta e não uma promessa de redenção, e muito menos uma promessa de redenção terrestre - coisa que a fé católica está, aliás, longe de dar como garantida. Na verdade, a Teresa sugere que há um caminho para a felicidade terrestre se nós nos entregarmos suficientemente a Cristo; como que um seguro de consolação já aqui, no planeta azul. Eu estaria disposto a rebater isso entusiasmada e biblicamente. A única consolação segura que os Evangelhos pregam advém da esperança de uma vida celeste - a felicidade desta vida é um bónus, e não uma garantia.
Daí eu entender que o "aguenta, aguenta" é muito mais útil, ao ajudar a uma gestão da frustração, que é aquilo que nós mais precisamos (eu preciso, pelo menos). Garantir a uma pessoa que ela consegue de certeza tirar a felicidade no que "tem de ser", tirar prazer no desprazer, é, aos meus olhos, demasiado ambicioso - quem o consegue fazer (e há quem consiga, com certeza) é um Cristiano Ronaldo da vida familiar. E, como todos sabemos, não é Cristiano Ronaldo quem quer. Só quem pode.
A educação para o desprazer, segundo esta minha teoria mal-amanhada, não é um caminho para a felicidade. É apenas um tampão contra a infelicidade constante. Não é sorrir na tempestade, não é dançar à chuva sobre o mastro partido. É apenas conseguir aguentar o barco na borrasca para poder sorrir quando os raios de sol aparecerem (porque aparecem sempre, graças a Deus).
É um projecto modesto de vida, é um pensamento débil, é uma gestão da dor, e não a promessa de uma epifania. É estar na cruz a cantar "always look at the bright side of life".
Não porque não custe, mas porque, dado o contexto, é a melhor das opções.
A propósito deste meu post, sobre como sair de casa é muitas vezes apenas uma óptima forma de estarmos mais próximos uns dos outros, a Teresa Power deixou o seguinte comentário:
Não é, realmente, preciso ir à Disneylândia - e nos tempos que vivemos, quantos portugueses se podem dar ao luxo de viajar para fora do país? Umas mini-férias de carnaval com seis crianças meio engripadas em casa, a chover lá fora, muitas histórias para contar, muitas batalhas de índios e cowboys para gerir, muitos desenhos para pintar, muitos abraços para dar, misturados com benurons e brufens... Que maravilha!
A noção de cultura também é relativa... Subir à Torre Eiffel não é um acto cultural mais importante do que aprender a distinguir espinafres de agriões - e eu só aprendi esta diferença ao decidir vir viver para o campo, depois de uma vida inteira na cidade, e plantar uma horta no meu quintal! A cultura, afinal, pode estar também no nosso jardim...
Eu conheço a Teresa Castel-Branco Power há tantos anos como a Teresa (ambas cresceram em Castelo Branco), até porque nos encontrámos precisamente no mesmo sítio: num retiro de três dias de um movimento católico chamado Convívios Fraternos, tinha eu acabado de fazer 17 anos. As nossas vidas seguiram depois rumos diferentes, mas fomo-nos encontrando aqui e ali, e a Teresa tem hoje uma família invejável com o Niall (daí o apelido Power - ele é irlandês), a crescer ali para os lados de Aveiro: são seis crianças impecáveis dos quinze anos ao um ano de idade.
Sempre conheci a Teresa Castel-Branco (ainda antes de ser Power) como alguém que vive a sua fé muito profundamente, e as suas convicções religiosas, ao contrário das minhas, nunca vacilaram, mesmo nas alturas mais difíceis (e houve várias, e muito difíceis). Ela tem um blogue onde fala da vivência católica da sua família, chamado precisamente Uma Família Católica. Vale a pena passar por lá.
Eu ando há imensos meses para escrever aqui sobre a questão da fé na nossa família, pelo menos desde os tempos em que algumas leitoras se meteram comigo sobre a frequência da missa nos comentários a este post. Mas, por uma razão ou por outra, incluindo o facto de o assunto ser bastante complexo para mim, fui sempre adiando. E hoje vou adiar mais uma vez - mas, pelo menos, fica já publicamente prometido vir a postar sobre fé e família um dia destes.
Este enquadramento serve para que se compreenda melhor o comentário da Teresa Power e a sua defesa das coisas simples da vida, pois é nelas que encontramos com maior facilidade as graças de Deus. De facto, nessa perspectiva, subir à Torre Eiffel não é mais importante do que saber distinguir espinafres de agriões. Até porque o mais importante, no entender da Teresa, está sempre ao nosso lado e nunca nos abandona.
Infelizmente, a minha fé nunca foi tão grande quanto a dela e os anos não me têm tornado mais crente. Nesse sentido, não me considerando eu detentor das chaves de uma qualquer revelação ou de um caminho único para propor aos meus filhos, a experiência da viagem é, para mim, fundamental - porque é, por excelência, a experiência do Outro. Daquele que é diferente de mim, daquele que não fala a mesma língua, que não pensa como eu, que tem outros hábitos e uma cultura distinta, e que por isso me pode enriquecer na sua imensa diversidade.
Possivelmente por eu ser uma pessoa muito pouco contemplativa, porque para mim rezar sempre foi embater no silêncio, e porque a minha fé tem a espessura de um fio de cabelo, eu fraquejo sempre quando se trata de propor caminhos muito claros e muito certos para os meus filhos, daqueles que vão bastante além da chamada regra de ouro (aqui em português, aqui em inglês), praticamente transversal a todas as religiões.
O meu pensamento é um "pensamento débil", tal como ele foi definido por Gianni Vattimo, numa tentativa de encontrar um meio caminho entre as verdades absolutas de metafísica e a futilidade (e impraticabilidade) do puro relativismo. As primeiras tendem historicamente para a violência, o segundo não serve de nada quando se trata de definir um agir (e muito menos um educar).
Daí que a minha tendência seja sempre para privilegiar a Torre Eiffel em vez dos agriões, a diversidade cultural em vez da natureza pura, o contacto com as verdades dos outros em vez do cultivo da minha própria e singular Verdade - até porque não a tenho com suficiente convicção.
Eu acredito profundamente no conceito de família como uma força estruturante da humanidade. Mas tenho muito poucas soluções para oferecer aos outros. O máximo que posso dizer é: "reparem, eu sou assim"; "olhem, nós fazemos assim". E, de seguida: "digam-me também como vocês fazem". Porque eu quero muito aprender com os outros - bem vistas as coisas, acho que não tenho feito outra coisa neste blogue.
É por isso que, embora saiba que a minha casa é aquilo que de mais precioso tenho, acredito que a boa educação dos meus filhos passa por os empurrar frequentemente para fora dela. Não tendo eu um caminho único para lhes propor, gosto que contactem com a diversidade dos caminhos à sua disposição. Eu tenho imensa inveja de quem consegue realizar-se com muito pouco, de quem consegue ver Deus no grão de trigo (ou no espinafre, ou no agrião), como a Teresa consegue.
Mas os míopes da fé, como eu, têm de se aproximar de tudo, têm de pôr a mão em tudo, como São Tomé, e para isso é imprescindível ir, ver, estar, mexer e duvidar. Disse que não ia falar de fé, e reparo agora que não falei eu de outra coisa.