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[Esta conversa entre o Tomás e o Gui passa-se no banco de trás do carro, a caminho da catequese.]
Gui – Este dente já está quase a cair [NR: aponta para um incisivo lateral superior mesmo ao lado da grande janela que o Gui exibe desde a semana passada, quando ficou sem os dois incisivos centrais ao mesmo tempo]. Já sei o que vou pedir à fada dos dentes.
Tomás – O quê?
Gui – [A sussurrar ao ouvido do Tomás.] O pirata e o barco de remos que me faltam na colecção.
Tomás – Isso é caro demais para a fada dos dentes. Acho que tens de o pedir ao Pai Natal.
Gui – E o Pai Natal tem dinheiro para isso?
Tomás – Não vês que são os papás que dão o dinheiro ao Pai Natal para eles comprarem as prendas, se tu te portares bem.
Gui – E como é que os pais sabem que é o Pai Natal que vai às compras?
Tomás – Ele deve pedir factura e põe lá o símbolo do Pai Natal.
E já agora, ainda a propósito da fada dos dentes, posso assegurar-vos que qualquer coisa que a gente faça para surpreender os nossos filhos ficará sempre muito aquém disto. Há malucos para tudo:
O grande dia, o mais esperado, o mais aguardado, o mais sonhado, finalmente chegou: ontem caiu o primeiro dente de leite ao Gui. Ele andava desesperado para aí desde os três anos de idade. Via os dentes dos irmãos saltarem, via as prendas que a fadinha dos dentes lhes trazia, e ele, coitado, com quase seis anos, nada.
Mas ontem, quando o fui buscar à escola, ele veio a correr na minha direcção como um doido, a explodir de felicidade, só para me exibir o seu maxilar inferior com uma janelinha aberta no teclado branco. Depois, entregou-me um guardanapo muito bem selado com fita-cola, onde repousava o seu troféu.
Eu liguei à Teresa para a informar do que tinha acontecido e para ela se pôr em campo: era necessário arranjar-lhe uma prendinha especial, para ele receber no dia seguinte ao acordar. E todos sabíamos o que é que o Gui queria: um dos dois piratas da colecção da Djeco que lhe faltavam.
Um dia destes ainda tenho de falar da Djeco, que é tudo aquilo que eu acho que uma marca de brinquedos para crianças deve ser, mas o que importa agora para aqui é que o Gui adora a sua colecção de piratas, tal como o pai do Gui e a mãe do Gui.
E como a mãe do Gui partilha a sua paixão flibusteira, basta juntar a isso o seu instinto de coleccionista e a sua paixão assolapada pelos filhos para a tornar uma cliente deveras conhecida na loja da Edicare da Avenida de Roma, onde segundo sei os meus queridos rebentos fazem investidas regulares, sobretudo quando o pai não está a ver. O problema é que os dois piratas que faltam ao Gui, embora estejam há muito encomendados, exactamente para nos valerem em situações como esta, não há meio de chegarem.
A boa notícia é que a Teresa sabia que na montra da loja existia um dos piratas que o Gui não tinha. A má notícia é que esse pirata não podia ser vendido, já que estava fora da caixa e a caixa cessara de existir, como diriam os Monty Python (ver o melhor sketch de todos os tempos). A excelente notícia é que a senhora da loja, após lhe ter sido explicada a situação, foi um amor: decidiu por sua iniciativa oferecer o pirata ao Gui.
Infelizmente, nem tudo foram notícias tão boas quanto esta. O Gui depois da escola foi ao dentista (mera coincidência - já estava marcado), que perante a notícia da queda do dente lhe resolveu oferecer uma caixa giríssima em forma de dente para ele o guardar, mais um fio para colocar a caixa ao pescoço. O Gui ficou ainda mais contente e orgulhoso, mas como é um destravado, quando regressava a casa com o avô acabou por partir o fio e a caixa voou literalmente pelos ares quando ia a atravessar uma passadeira. A caixa encontrou-se. O dente, não.
Eles ainda andaram lá imenso tempo à procura do dente, mas nada. Quando a Teresa soube, foi para o local com a Carolina voltar a procurar o dente, mas nada. Só faltou mesmo chamarem a peritagem da Polícia Judiciária (se a excelentíssima esposa tivesse o número no telemóvel, era mulher para isso).
Perdidas as esperanças de recuperar o dente, a solução encontrada teve de ser uma que já havia sido posta em prática muitos dentes atrás, com o Tomás, quando um dos seus dentes de leite se enfiou pelo ralo do lavatório - fazer o desenho de um dente e colocá-lo dentro da caixinha. "Quando não há dentes verdadeiros", expliquei eu, "a fadinha leva um de papel". Para isso, bastava desenhá-lo, recortá-lo e pô-lo no lugar do outro, assegurei.
E aí o Gui teve uma reacção tão querida que só me apeteceu dar-lhe beijinhos:
- Papá, não vamos enganar a fadinha dos dentes...
Eu expliquei-lhe que não se tratava de enganar a fadinha dos dentes. Claro que um dente de papel não era o mesmo que um dente verdadeiro, mas nessa ocasião o que a fada fazia era, em vez de deixar uma prenda toda bem embrulhadinha e vistosa, penalizar a falta de cuidado do menino e a sua cabeça no ar não fazendo o embrulho. A prenda ficava fora da caixa e ela ia-se embora.
E assim se fez.
Hoje de manhã o Gui lá tinha o pirata que ele tanto queria, e andou a mostrá-lo a todos os manos. A Carolina, que tinha ido com a mãe à loja, também foi super-simpática: perguntou-lhe o que é que tinha recebido e fez um ar muito espantado quando ele lhe contou. Depois, o Gui veio agradecer-me muito por lhe ter feito o desenho do dente.
É curioso como há males que vêm por bem: o azar que o Gui teve ao perder o dente acabou por revelar um menino com um coração e uma honestidade enormes. Não estava nada à espera daquele "papá, não vamos enganar a fadinha dos dentes", que nos encheu de orgulho. De certa forma, eu e a Teresa acabámos por receber uma prenda muito melhor do que a dele. E nem sequer foi preciso um dos nossos incisivos sair do sítio.
Eu ontem coloquei aqui um diálogo em família sobre a questão da fada dos dentes e sobre os miúdos que, dado o avançar da idade, deixam de acreditar nela. É que é precisamente esse o estado em que se encontra a minha filha Carolina: já não acredita na fada mas quer prenda na mesma quando lhe cai um dente. Pior: já percebeu que os dentes de leite praticamente não têm raiz e que, por isso, são facílimos de arrancar assim que começam a abanar um bocadinho.
Donde, ontem de manhã descobriu que o dente ao lado daquele que tinha caído também já estava tremido - e quando no final do dia chegou a casa já o trazia orgulhosamente embrulhado num lenço de papel. O raio do dente da Carolina, que em circunstâncias normais ainda demoraria uma semana a cair, ao fim de oito horas de escavação linguística (duvido que ela tenha aprendido alguma coisa durante as aulas de ontem) já estava cá fora.
Eu ainda tentei convencê-la de que a fada dos dentes não aparecia em dois dias consecutivos, porque o seu sindicato decretara greve às horas extraordinárias. Mas a minha filha é uma perigosa neoliberal - não há greves para ninguém, e a fada tem mesmo de aparecer, até porque não existe (não sei se estão a ver a lógica da coisa). Eu, nestes casos, tento sempre fazer de homem de esquerda e impor regras laborais. Só que, tristemente, a Carolina tem a cumplicidade da primeira-ministra cá de casa, cuja perigosa agenda é assim como a da Alemanha: total insensibilidade ao superávit de brinquedos.
E a pobre da fada - forçada, oprimida e explorada - lá teve de aparecer novamente. Conclusão: é necessária uma rápida mudança de estratégia da minha parte, antes que os dentes lhe comecem a cair da boca como folhas outonais.
Então pensei neste Plano B: esta noite, mesmo antes de deitar, vou mostrar à Carolina a imagem em anexo e dizer-lhe que ela foi captada por um extraordinário documentário da National Geographic sobre fadas dos dentes. Após anos e anos de investigação, quilómetros e quilómetros de viagens, e horas e horas de filmagens, o documentário The Wonderful Horrible Life of the Tooth Fairy revelou que, afinal, elas não eram nada daquilo que se pensava...
É que a Carolina já não acredita em fadas. Mas monstros é um tema inteiramente diferente...
- Vou pôr o meu dente debaixo da almofada, papá.
- Ó Carolina, mas se tu dizes que já não acreditas na fadinha dos dentes...
- Não se trata de não acreditar. Eu tenho provas de que ela não existe.
- Então sabes como é: quando se deixa de acreditar na fada dos dentes, ela também deixa de acreditar em nós, e já não aparece à noite.
- Papá, é o meu primeiro pré-molar!
- E então?
- Então, a mamã disse que ela aparecia na mesma.
- Ai sim?
- Sim. Eu ainda sou uma criança, papá.
- Ok, e então quando é que na tua opinião a fada pode deixar de aparecer?
- Quando eu fizer 18 anos e me tornar independente.