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A quantidade de reacções aos postos dos beijos na boca tem sido muito supreendente - olhem ali para baixo, à direita, para a contagem dos posts mais comentados de sempre deste blogue: estão lá os dois -, e é impossível trazer para aqui todos os comentários interessantes já feitos pelos leitores.
Queria, no entanto, chamar a atenção para um acrescento do Dr. Mário Cordeiro, explicando porque é que o beijo na boca é tão diferente de outras manifestações de carinho:
O dar a mão, como se escreveu aqui abaixo, é um argumento que não colhe. Repare: se vir duas pessoas (não interessa agora se são homem e mulher, dois homens ou duas mulheres) de mão dada ou a dar um beijo na face ou um aperto de mão, fica sem saber a sua relação. Podem ser - imagine agora dois homens a beijarem-se na face, para ir buscar um exemplo que, no nosso país, não é tão comum - familiares, pai e filho ou até velhos amigos.
Não consegue descobrir a sua relação - no sul de França e em muitos outros locais os homens beijam-se em público, quando dois amigos se encontram. Agora, aqui ou na China, se vir duas pessoas a dar um beijo na boca, a relação só pode ser uma - a de amantes - porque se entrou numa intimidade que só tem um significado (salvo se for no ecrã de um cinema ou num teatro!). É essa a razão.
E queria também dar conta da partilha da C.S., não porque corrobore a opinião do Dr. Mário, que ele não precisa de guarda-costas, mas por demonstrar a impressionante complexidade das cabeças dos seres humanos.
Sou filha, não mãe, por isso o meu comentário vale o que vale. Sempre fui educada com regras q.b., palmadas no rabo e na cara q.b., puxões de orelha q.b., 'nãos', beijinhos na testa, na cara, na barriga, no "pescocinho delicioso" como dizia o meu pai, levei ataques de cócegas, tomei banhos familiares, recebi massagens para adormecer ou acalmar em pequenina e sempre andei de mão dada com a minha mãe pela rua.
Aos 20 anos encontrei o meu 'príncipe encantado' e sofri e fiz sofrer porque não lhe sabia 'demonstrar carinho e amor'. Após uma ida a um psicólogo/sexólogo percebemos, duas horas depois, que a proximação excessiva, já pouco nítida por causa da adolescência, entre mim e os meus pais (e não sou filha única, se é que a educação difere sendo um ou dois filhos) me estaria a bloquear a maneira de sentir e demonstrar os sentimentos.
Houve um afastamento q.b. dos meus pais para que pudesse dar lugar à minha relação. E agora estou bem amorosamente e amo muito mas mesmo muito os meus pais, e se alguma vez forem para um lar não será porque não os amo, apenas porque quero que tenham um resto de vida confortável e feliz, mas comigo e com a minha irmã sempre por perto :-)
Devem estar a pensar "o que tem a ver isso com o assunto?". Serviu-me de experiência para agora, 4 anos depois, poder 'ajudar' os pais de uma amiga que teve uma depressão assustadora (com risco de suicídio) aos 17 anos. Em tempos foi gozada por dar beijos na boca aos pais, acabou por se mostrar ao mundo cedo demais e agora não entende o sentido da vida.
Acredito a 100% que educar uma criança a quem queremos todo o bem do mundo e mais algum seja difícil, mas pela minha pouquíssima experiência de vida atrevo-me a dizer que "Tudo o que é demais, faz mal". A nós, filhos, e aos que nos querem bem.
O Dr. Mário Cordeiro, que até costuma dar uma ampla liberdade às idiossincrasias dos pais, é absolutamente contra os pais beijarem os filhos na boca. Eis a sua argumentação:
Nããããão! É dar a ilusão de que a relação parento-filial se pode tornar numa relação conjugal, que é um interdito entre pais e filhos porque corresponde à fantasia dos dois anos de idade. As pessoas cumprimentam-se de todas as maneiras, e os homens com 3 beijos nos países árabes ou no sul de França, ou na Rússia.
Todavia, um beijo na boca é como dormir na cama dos pais - um sinal de inversão do triângulo pai-mãe-filho, e uma intrusão do filho na relação conjugal dos pais, com perturbação da sua futura relação conjugal (seja com o Noddy ou a Ursa Teresa, com o João ou a Teresa do Infantário, ou mais tarde com o Príncipe ou Princesa encantados).
Portanto, JMT: nãããããão !!!!! A menos que gostem de lançar bombas atómicas ou deixar o percurso de vida dos vossos filhos cheios de minas!
Antes que comecem a acusar-me, após a mega-polémica da amamentação, de me estar a transformar no Bloco de Esquerda da vida familiar - por aqui, é só temas fracturantes -, devo dizer-vos que a pergunta não é minha, mas da leitora Ana, que me desafia a opinar sobre dar beijos na boca dos filhos. E acrescenta:
Não acho nojo, mas incomoda-me.
Este "não acho nojo" é uma resposta directa ao conteúdo deste post da Joana Paixão Brás, no blogue A Mãe É que Sabe.
Eu não só não acho nojo como até acho fofinho de ver, pelo menos nos filmes de Hollywood. Mas pessoalmente não pratico. Até porque não saberia em que altura da vida parar. Se em 2020 alguém me apanhasse na rua a dar chochos a uma miúda de 16 anos corria o risco de acharem que não era minha filha - o que daria problemas em casa.
Mas parece que a questão começa a discutir-se em muito lado, incluindo nos países onde beijar na boca é habitual.
Em relação ao meu post anterior sobre várias decisões de tribunais espanhóis que obrigaram pais a pagar a educação dos filhos mesmo sendo maiores de idade (alguns com 30 anos), há dois comentários de leitores que eu gostava de destacar.
Um deles, da simples e nice, já levou pancada com fartura na caixa de comentários, e não é minha atenção fazer o mesmo - só que aquilo que ele diz é importante para aquilo que eu quero dizer:
É a primeira vez, desde que leio este blogue, que não concordo nada com a sua opinião, mas respeito, claro. A diferença entre pais e filhos é que os filhos não escolheram nascer, mas os pais escolheram ter os filhos. Por isso, que remédio têm os pais se não levar com os filhos até ao resto da vida deles. Se não querem isso, simplesmente não façam filhos. Problema resolvido. Se os filhos na idade adulta se tornaram umas bestas, a culpa é dos pais que não souberam dar-lhes a educação que eles mereciam.
O outro comentário é da Teresa A., que alerta para um problema semelhante de dependência, mas no outro extremo da vida:
[Na Alemanha], os filhos são obrigados a pagar os lares de terceira idade ou afins se os pais não tiverem condições para isso. Soa bem, mas, se imaginarem um filho que não tem contacto com o pai/mãe há anos, e que nunca teve ajuda deste(s) - do género de ter de financiar os estudos ele próprio, ter sido deserdado ou posto fora de casa, nunca ter tido ajuda financeira ou outra (por exemplo, tomando conta dos netos) durante a vida, ter construído alguma coisa por si próprio e/ou com ajuda de outras pessoas -, e que é obrigado a usar o seu dinheiro para sustentar a(s) pessoa(s) que nunca o sustentaram a ele, será que cham justo?
O problema do comentário da primeira leitora, para além da desresponsabilização de pessoas maiores de idade, já criticada por outros leitores, é que me parece confundir leis com afectos. E os afectos não se legislam. Nem todos os deveres morais devem traduzir-se em obrigações jurídicas, porque quando assim é estaríamos a permitir uma intromissão absolutamente excessiva na nossa esfera de liberdade individual. Por exemplo, enquanto homem comprometido numa relação amorosa, eu tenho o dever moral de ser fiel à minha companheira - mas os tribunais não me multam se eu for pinar com a vizinha.
Da mesma forma, é óbvio que eu sinto o dever moral (e afectivo) de cuidar dos meus filhos, e às tantas lá terei mesmo (espero que não, espero que não) de lhes estar a dar mesadas até aos 35 anos. Hoje em dia, qualquer pai normal quer que um filho tire um curso, portanto, pelo menos até aos 23 ou 24 anos estará condenado a patrociná-lo. Aliás, os meus pais fizeram isso comigo - eu só comecei a trabalhar depois de terminar o curso, e quando o terminei já tinha 25 anos, porque antes de mudar para Ciências da Comunicação ainda andei dois anos e meio perdido em Engenharia Química.
Mas uma coisa é os pais fazerem isso porque querem - outra, muito diferente, é fazerem isso porque são obrigados. No meu entender, se alguém é maior de idade, é maior de idade para tudo - inclusivamente para se fazer à vida. Ou seja, a um pai não deve ser negado o direito de dizer "já não sustento mais este gajo", mesmo que tenha sido ele a pô-lo no mundo. Essa decisão pode fazer dele um pulha, um pai nojento e um fdp - mas não um alvo de acção judicial, pela simples razão que um tribunal não serve para nos obrigar a ser fixes.
E quanto aos pais idosos e aos lares de terceira idade que a Teresa A. refere? A regra é a mesma. Mas mais sobre isso já a seguir.
E depois de um longo intervalo para falar de métodos naturais, preservativos e fé, eis a prometida conclusão da resposta à leitora Ines (partes anteriores aqui e aqui), acerca da minha relação com a paternidade. A última questão por ela colocada era esta:
Teve filhos só porque a Teresa queria? E vive uma vida completamente contrariado? Vezes quatro?
E, de certa maneira, quase não precisava de responder, porque a Mara se encarregou de o fazer num dos comentários, contando a sua própria história de vida:
Quando conheci o meu marido disse-lhe logo que queria ter filhos cedo (bem antes dos 30) e que queria ter "muitos" (sendo que muitos era, no mínimo, três). Ele nunca quis especialmente ter filhos. Sempre disse, como o João, que é muito feliz apenas com livros, música e internet. Curiosamente, eu também, mas sempre senti que viveria uma vida incompleta se não tivesse filhos.
Por isso, na realidade, ele teve filhos porque eu quis. E teve quatro! Adora-os de paixão, mas sei que concordou com tê-los, antes de mais nada, para me fazer feliz a mim. Por isso, cada um deles é uma prova de amor.
Não percebo a dificuldade em compreender isto, que acho que é o que o João também tem dito nos últimos posts. Quando se ama, faz-se cedências em nome do outro. Da vida do outro, da sua felicidade. Eu também não vivo na cidade que escolheria sozinha, nem na casa com quintal nos arredores que adoraria, porque sei que ele é mais feliz num apartamento central, com café e quiosque ao virar da esquina. A vida que construímos a dois não pode ser igual à que teríamos sozinhos. Por isso agora somos 6, e somos muito felizes. Daqui a uns anos seremos outra vez só dois, e ainda teremos várias décadas para gozar isso.
É muito isso, e fico feliz por alguém o perceber. Embora eu e a Teresa sempre tevéssemos dito, deste o princípio da nossa relação, que queríamos ter três filhos, eu sempre achei que não era uma daquelas conversas para levar demasiado a sério. Eu, porque se não os tivesse não os tinha; ela, porque se não fossem três eram quatro. Já perceberam quem ganhou, claro.
Eu não tive filhos só porque a Teresa os queria. Mas acabei por os ir tendo porque a Teresa os foi querendo e eu nunca quis não os ter. É uma daquelas atitudes de passividade activa muito típicas dos homens. Não estava contra. Nem a favor. Votava em branco - e fui acatando as decisões do governo caseiro, mesmo que o governo caseiro argumente que nunca quis decidir nada e que as coisas foram simplesmente acontecendo.
Quanto a levar uma vida completamente contrariado, questão sempre sensível e complexa, isso é capaz de ter um certo fundo de verdade, desde que retiremos o "completamente". Eu sou um grande fã do "Estou Além" do António Variações:
Isto sou eu. Na verdade, somos quase todos nós:
Esta insatisfação
Não consigo compreender
Sempre esta sensação
Que estou a perder
Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P'ra outro lugar
Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar
Porque até aqui eu só
Estou bem
Aonde não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou
E já que estamos em maré musical, levem também com uma das mais belas canções da história da música portuguesa. Chama-se "Inquietação", é de José Mário Branco, e também me parece perfeita neste contexto:
Isto sou eu. Na verdade, somos quase todos nós:
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que está para acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda.
O facto de eu me considerar uma pessoa muito feliz e com imensa sorte não significa que seja uma pessoa satisfeita ou completamente realizada. Tenho a certeza que a excelentíssima esposa sente o mesmo, ainda que possa ter mais dificuldades em admiti-lo. E por isso, quando os filhos ocupam uma fatia tão grande das nossas vidas, é normal que sintamos que a inquietação e a vontade de estar além esteja intimamente ligada a eles.
Eu acho que vivemos tempos desequilibrados, em que estamos todos a viver demasiado em função dos miúdos - o que potencia a angústia nos momentos de cansaço. Mas, para voltar à questão inicial que deu origem a esta sequência de posts, os meus filhos são o fruto de um amor, e não os consigo conceber sem a Teresa. Sinto de tal forma essa comunhão que detesto quando na escola lhes chamam Carolina Tavares ou Tomás Tavares. Não, não, não. É Carolina Mendonça Tavares e Tomás Mendonça Tavares. Sem nós - eu, ela, os dois - eles não existiam. E sem a Teresa nada disto faria sentido.
E para não acabar em tom demasiado melancólico, aqui vai uma samba de Zeca Pagodinho, num resumo perfeito da atitude que desejo ter perante a vida. No final do dia, quero acreditar que tudo se resume a isto, até porque o sotaque brasileiro vem sempre com um suplemento festivo que nos faz muito bem à alma. Chama-se "Deixa a Vida Me Levar":
Nisto acredito eu. Na verdade, nisto acreditamos quase todos nós:
Só posso levantar as mãos pro céu
Agradecer e ser fiel
Ao destino que Deus me deu
Se não tenho tudo que preciso
Com o que tenho, vivo
De mansinho lá vou eu
Se a coisa não sai do jeito que eu quero
Também não me desespero
O negócio é deixar rolar
E aos trancos e barrancos, lá vou eu!
E sou feliz e agradeço
Por tudo que Deus me deu
E deixa a vida me levar (vida leva eu!)
Deixa a vida me levar (vida leva eu!)
Deixa a vida me levar (vida leva eu!)
Sou feliz e agradeço
Por tudo que Deus me deu
Voltemos, então, à questão que a Ines coloca nos comentários a este post:
O amor seria menos intenso se não houvesse crianças? Poderiam ser um casal sem filhos muito feliz!
Como já disse no post anterior, acho até que poderia ser mais intenso, se encararmos o conceito de "intensidade" num sentido próximo da paixão e da multiplicação de gestos de amor. Os filhos atrapalham muito as relações à filme romântico de Hollywood - e as famílias que se vêem nos anúncios de televisão nunca são parecidas com as nossas.
Já o disse várias vezes a amigos, e penso que também aqui no blogue: os filhos podem perfeitamente dar cabo de um casamento. Convém que estas coisas sejam verbalizadas com a devida secura, porque eu detesto discursos cor-de-rosa que não preparam as pessoas para os desafios que têm pela frente.
Portanto, é evidente que não só poderíamos ser um casal muito feliz sem filhos, como diz a Ines, como os filhos se fartam de atrapalhar a felicidade do casal. Essas são alturas, de esgotamento e falta de paciência, em que somos convidados a olhar para a frente e suportar a suspensão das gratificações imediatas, em nome de um futuro mais solarengo que, convenhamos, nem sempre é fácil vislumbrar, tão cinzento está o céu.
Já falei abundamente sobre isso há um ano e meio, num post chamado Dilema dos amantes, que até tem grande música a acompanhar. Vão lá e leiam, se vos apetecer.
Claro que o martelo pneumático filial tem esta vantagem: quando ele pára e se faz silêncio, parece que estamos no céu. Falei sobre isso aqui, a propósito da minha última viagem a Nova Iorque com a Teresa. Uma citação desse texto:
É curioso quando tanta gente opõe o amor à paixão. Vocês já ouviram de certeza essa história: a paixão é aquela coisa que se tem no início de uma relação mas que nunca mais volta, comida pelas traças do tempo. Com sorte, resta o amor, coisa saborosa mas devidamente pacificada. Pois bem, eu proponho-vos esta experiência: escolham bem o marido ou a mulher, arranjem uma catrefada de filhos, misturem tudo num quotidiano frenético, e ao fim de muitos anos tirem de repente do caminho, por poucos dias que seja, todo o frenesim, todo o trabalho, todos os filhos, todo o stress. Eu garanto-vos - vão parecer novamente adolescentes de 18 anos. Com a vantagem de terem a experiência de 40.
Ora, sendo tão divertido o tempo em que estou apenas com a excelentíssima esposa, e parecendo eu tantas vezes contrariado na minha paternidade sofrida, é natural que a Ines pergunte:
Ou então, teve filhos só porque a Teresa queria? E vive uma vida completamente contrariado? Vezes quatro?
São excelentes questões. Tão boas que não tenho tempo para lhes responder agora. Voltarei a elas amanhã.
Escreveu a leitora Ines nos comentários a este post, que por sua vez comentava este post:
Não entendi a parte em que diz que os seus filhos são fruto do amor do casal. O amor seria menos intenso se não houvesse crianças? Poderiam ser um casal sem filhos muito feliz! Ou então, teve filhos só porque a Teresa queria? E vive uma vida completamente contrariado? Vezes quatro?
Eu admito que o meu post anterior era meio opaco, e estas objecções dão-me oportunidade para esclarecer a minha posição sobre o tema. Vamos, então, por partes.
Não entendi a parte em que diz que os seus filhos são fruto do amor do casal.
Estou convencido que o sociólogos e antropólogos do futuro considerarão a invenção da contracepção, e da pílula em particular, como um momento fundador na história da humanidade, em que a relação dos casais com a paternidade muda de forma radical. Por vezes nós não temos essa noção, porque estamos imersos no momento, mas a nossa geração está a viver uma revolução naquilo que são as relações familiares, e a invenção da contracepção feminina é um facto absolutamente estruturante.
Claro que há sempre azares e pessoas que têm filhos acidentalmente, mas mesmo os católicos ignoram olimpicamente as directrizes da Igreja em relação aos anticoncepcionais, e eu não tenho dúvidas em classificar a famosa encíclica Humanae Vitae (1968) e a sua visão da regulação da natalidade como um momento muito infeliz na história da Igreja. Espero que essa visão venha a mudar brevemente, porque nove em dez católicos não conseguem sequer perceber - porque, simplesmente, não se percebe - por que raio a utilização de um preservativo interfere na sua relação com Deus.
Diante destes factos, ter um filho a partir do último quartel do século XX é, sobretudo, ter o fruto de uma relação amorosa. Os "acidentes" diminuíram drasticamente, ou então são acidentes relativamente consentidos (é o meu caso e da Teresa, já que nenhum dos quatro foi planeado), e a partir daí aconteceu algo muito natural: o número de filhos por casal diminuiu e eles tornaram-se cada vez mais preciosos e desejados. Toda esta mariquice com os filhos, de que este blogue é uma belíssima prova, seria impensável antes da criação de uma cultura contraceptiva.
(O que não significa, atenção - antes que me apareça aí alguém que recusa a pílula e o preservativo por fidelidade à Igreja -, que quem usa os métodos naturais não adore os seus filhos tantos como os outros. Contudo, ter muitos filhos será, nesses casos, uma opção assumida, quando antigamente era uma coisa que simplesmente acontecia, e estava dependente sobretudo da fertilidade do homem e da mulher.)
É por isso que os filhos raramente são, nos dias de hoje, algo que não o fruto do amor do casal - donde, existe, de facto, para quem os tem, uma espécie de sentimento de completude, em que a relação a dois passa a ser a base de uma relação a três, quatro, cinco, seis (o meu caso) ou mais, que compõem aquilo a que se chama "família".
Retomando a questão da Ines (suponho que seja Inês, mas eu respeito o nome inscrito no comentário):
O amor seria menos intenso se não houvesse crianças?
Não, não seria. Acho até que poderia ser mais intenso (tomando "intensidade" num sentido mais próximo da paixão e da multiplicação de gestos de amor quotidianos).
Mas isso, se não se importam, fica para o próximo post, que este já vai longo.
Escreve a Maria F nos comentários a este post:
Não querendo aqui fazer apologia do só, também não acho que quem gosta ou opta por viver sozinha seja necessariamente caso de psiquiatra. Eu gosto de viver sozinha, na minha casinha com as minhas coisinhas, gosto de receber amigos, fazer programas, etc., etc. Mas sei que é tudo limitado no tempo porque logo, logo, o meu espaço vai voltar a ser meu.
Adoro crianças, passar uma tarde ou um dia com eles, a estragá-los com mimos, a fazer bolachinhas ou crepes ou o que eles quiserem. Mas à noite, os meninos vão para os paizinhos e a Tia regressa ao seu tão abençoado sossego. Felizmente, somos poucos a pensar assim, crianças precisam-se... alguém tem que pagar a minha reforma, que eu já ando há 40 anos a pagar a reforma de alguém... Mas eu acho que é tão bom viver sozinha e ainda assim nunca me sentir só.
Fogo, ó Maria F, vá fazer inveja para outro lado. Acho mesmo que são "poucos a pensar assim"? Eu também penso assim, e tenho quatro filhos. Como eu costumo dizer, para ser um gajo feliz bastar-me-ia uma biblioteca e internet de banda larga. A paternidade é um absurdo lógico: em que outra actividade estaríamos dispostos a trabalhar sete dias por semana e, ainda por cima, a pagar por isso?
Quando os filhos trabalhavam nos campos, a coisa ainda fazia algum sentido, era um investimento. Aos seis ou sete anos já havia mais uns braços para cavar e apanhar batatas. Hoje em dia, eles só saem de casa aos 23 anos (com sorte), e muitas vezes temos de os sustentar até batermos a bota.
Devo dizer-lhe que eu também tenho uma incrível vocação para tio: ver apenas as criancinhas quando me apetecesse, brincar muito com elas, e depois fechar a porta. O meu problema é que eu tive o que a pobre Grace Gelder não teve: embora eu próprio me ache encantador, e seja muito narcisista e solipsista e egoísta, apaixonei-me por uma mulher completamente doida - e, em vez de me casar comigo, casei-me com ela.
O resultado é o que se vê: quatro filhos que deram cabo de todos os meus planos de vida. Não há nisto qualquer espécie de racionalidade, e à medida que a sociedade ocidental vai percebendo isso, cada vez tem menos filhos. Pudera. Hoje em dia é tão fácil ser-se feliz sem sair de casa.
Serve tudo isto para me solidarizar consigo e dizer que compreendo muito bem a sua posição. Se não fosse uma paixão iniciada em 1992, estou convencido que eu hoje seria um magnífico solteirão, com muito cuidado para manter o património genético só para mim. A culpa é toda da Teresa - e devo dizer que quando os miúdos rebentam com a minha paciência (acontece com frequência), chego a aborrecer-me de gostar imenso dela. Só que - que hei-de eu fazer? - é mais forte do que eu.
Em conclusão, eu não tive filhos por desejo de perpetuar os meus pobres genes. Os filhos são o fruto do amor de duas pessoas. Donde, sem essa outra pessoa - sem o Outro, filosoficamente falando -, nada disto existiria. Nem eu teria particular interesse em que existisse. E eu seria como a Maria F: só e feliz.
Foto de Nuno Ferreira Santos para o Público
A propósito dos meus posts sobre as heranças (aqui e aqui), um jurista anónimo deixou o seguinte comentário:
Numa perspectiva estritamente legal (que é a minha área), digo-lhe que foi a nossa estrutura de direito sucessório que permitiu que o Douro vinhateiro esteja hoje todo ele entregue às mãos do monopólio inglês.
É que nós fomos (e somos) obrigados a deixar património aos nossos herdeiros legais, o que implica que estes o partilhem entre si e, mais tarde, com os seus herdeiros. Consequentemente, em duas ou três gerações, uma vinha de razoável dimensão acabou espartilhada por uma vintena de pessoas. É manifesto que o mais rentável para todos foi vender a sua parte (o seu quinhão), até porque muitos nem sabiam do labor nem sequer conheciam o parente que lhes deixou tal bem, não tendo qualquer ligação à terra.
Já os ingleses deixaram a vinha a um único herdeiro - e nem sequer necessariamente ao filho mais velho mas a quem entenderam que dela melhor tratava - o que lhes permitiu crescer.
Não é só na sociedade americana, tão diferente da nossa, que o direito sucessório tem implicações económicas às quais devíamos prestar mais atenção, se é que efectivamente queremos corrigir alguns dos erros do passado.
Eu desconheço a história do Douro vinhateiro, e não sei se terá sido esta, ou não, a principal razão para o vinho do Porto ter ficado nas mãos dos ingleses. Mas o argumento parece-me plausível e é absolutamente verdade que a questão do direito sucessório merecia muito mais atenção - é um tema que nunca vejo discutido no espaço público -, devido a uma série de limitações que me parecem abstrusas e típicas de um Estado que insiste em regular todos os aspectos da nossa vida - e da nossa morte.
A Fundação Francisco Manuel dos Santos tem um óptimo site chamado Direitos e Deveres dos Cidadãos que responde em linguagem compreensível a inúmeras perguntas do nosso dia a dia, e onde a questão das sucessões é abordada. E aí se aprendem factos tão curiosos como a quase impossibilidade de em Portugal um pai deserdar um filho (a não ser que ele seja um criminoso) ou a dificuldade de verdadeiramente diferenciar os filhos nas heranças.
É que se eu ou o caro leitor batermos a bota, e a partir do momento em que temos mais do que um filho, só um terço da herança está verdadeiramente nas nossas mãos - só com esse terço é que podemos fazer o que nos apetecer. Os restantes dois terços têm de ser obrigatoriamente divididos em partes iguais pelos filhos. Ainda que um tenha cuidado de mim até à morte, e o outro já não me veja desde 1983.
Porquê? Porque o Estado Todo Poderoso, como sempre, é que sabe o que é melhor para nós e para as nossas famílias.
Deixem-me então regressar ao fascinante tema das heranças, para tentar explicar por que me parece que ele tem tanto a ver connosco, apesar de não sermos milionários. Todos temos ou tivemos pais, muitos de nós têm filhos, e portanto a questão daquilo que podemos receber de uns ou que iremos deixar aos outros é um tema importante. E sobre isso eu sou muito Buffett-gatiano: as heranças deveriam ser encaradas por cada um de nós como uma dádiva, e não como um direito.
Não me refiro a questões legais, obviamente. Refiro-me a questões morais. Quer dizer: não sei por que raio tanto filho está convencido que tem um direito inalienável ao património dos pais, para o qual, regra geral, nada contribuiu. Os nossos pais têm a obrigação de nos oferecer a melhor educação possível, com certeza, mas a partir daí não têm obrigação de nos deixar mais nada.
O património é deles. Se quiserem enfiá-lo numa fundação para combater a malária, como os Gates, estão no seu direito. Se quiserem oferecê-lo à igreja, estão no seu direito. Se quiserem fazer um testamento em que os filhos não são tratados por igual, também estão no seu direito. Aquilo é deles. Não é nosso.
Infelizmente, não deve haver quem não tenha assistido, na sua família ou em famílias próximas, a conflitos enormes em torno de heranças. Não precisam de ser latifúndios - às vezes basta ser a partilha das colchas da avó. Esses conflitos atingem frequentemente níveis de violência absurdos - há irmãos, sobrinhos, primos que nunca mais se voltam a falar.
Tenho um amigo que acha que as heranças são apenas o gatilho que faz disparar conflitos que estavam latentes, e que encontram ali um campo fértil para serem finalmente verbalizados. Ele terá alguma razão. Mas não acho que tenha a razão toda - há gente que efectivamente enlouquece perante a visão de um serviço de cozinha com 60 anos. Há quem antes das partilhas se desse muito bem e deixe de se dar.
Eu também assisti a isso quando era novo, e jurei a mim próprio que jamais aconteceria comigo - ainda que eu tivesse que oferecer tudo ao meu irmão e me limitasse a manter na minha posse a meia-dúzia de livros de banda desenhada que já lhe roubei entretanto. Nada justifica aquele género de discussões - não foi pelo nosso mérito que a casa, o carro ou os talheres de prata foram conquistados. E se uma coisa não tem o nosso mérito, nem o nosso esforço, nem a nossa dedicação, não pode ser, moralmente, uma exigência nossa.
Ah, e tal, a lei diz que sim. Esqueçam a lei. É evidente que mais vale o património ficar para os filhos do que para o Estado. Os meus pais têm uma relação melhor comigo do que com a Maria Luís Albuquerque. Mas quando a minha atitude deixa de ser de dádiva para passar a ser de dever, invocando para mim o direito a certas coisas que eu não conquistei, cada desacordo com um familiar produz um sentimento semelhante ao de me estarem a assaltar a casa.
Não, não, não. Não faz sentido. A partir do momento que os meus filhos deixarem de ser menores de idade e abandonarem a minha dependência, o que pretendo ensinar-lhes é que aquilo que de melhor tinha para lhes oferecer - a sua educação - já está oferecido. A partir daí, desemerdem-se. Façam-se à vida. Conquistem as coisas pelo seu próprio mérito.
De resto, pretendo fazer com o meu património o que muito bem me apetecer. E se algum dia, depois de bater a bota, os vir discutir acerca de loiças ou pratas ou livros (enfim, acerca de livros ainda perdoo), hei-de reerguer-me da tumba para lhes azucrinar a vida. Vão trabalhar, malandros. Cada um tem a sua vida para viver. A obsessão com as heranças é uma canibalização da vida dos nossos pais. Deixem-nos em paz e vão dar dentadas para outro lado.