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Queria terminar a minha resposta aos leitores do post sobre a educação para o desprazer procurando clarificar uma passagem do meu texto, que dizia o seguinte:
Estou com [os meus filhos], em média, seis horas por dia (excepto aos fins-de-semana, claro), e as nove em que não estou com eles são muito mais calmas, repousadas e self-fulfilling. Eu sou, de facto, um pai de quatro criançofóbico (...). Daí a importância da tal educação para o desprazer.
Por favor, não confundam este "desprazer" com a tradicional cultura católica do "sacrifício". O sacrifício, dito de forma bruta, lembra-me sempre gente que coloca o cilício numa perna para se mortificar, e a sua prática cai muitas vezes no lado oposto ao que aqui me quero colocar - uma espécie de recalcamento do "eu" que só serve para causar frustrações e não dá proveito a ninguém, incluindo ao próprio. Não é a isso que me refiro.
A Teresa Power, de quem eu já aqui falei anteriormente, respondeu a esta passagem do meu post (comentário de 23.04.2014 às 14:07), argumentando o seguinte:
O que é self-fulfilling? O que é o prazer pessoal? E já agora, a noção de sacrifício... A que tu avanças no teu post não é a noção católica, mas a noção popular tradicional, ok? Porque sacrifício é tornar sagrado, libertar da escravidão do... prazer! Aprender o desprazer, como tu dizes, é de facto essencial - mas não para aprendermos a aguentar! É essencial para aprendermos a encontrar felicidade e verdadeira realização pessoal naquilo "que tem de ser", naquilo que é a nossa vida real, e não idealizada. A educação para o desprazer é verdadeiramente a educação para a felicidade.
Cuidar de seis filhos é a maior fonte de felicidade que encontro na minha vida. Há muitos anos que deixei de sentir genuíno prazer em coisas que antes me davam prazer, e descobri prazer em gestos rotineiros e sem graça... No meu caso, e por muito lamechas que isto soe, o saldo é francamente positivo. E não trocava os momentos que passamos juntos por nada deste mundo!
O Carlos Duarte entrou no debate da seguinte forma:
Realmente a descrição do sacríficio que o JMT fez não é nada "católica". O sacríficio não é masoquismo (i.e. tentar retirar prazer da dor ou ir atrás de dores e penas), mas sim aprender a vivermos e a pacificarmo-nos com os nossos problemas e incómodos. O resto do post (sobre o dever de "aturar" as crianças - nossas e dos outros - e da noção que o ganho final superará todas as perdas no passado) é que é uma excelente descrição do sacríficio cristão. A ideia (Mt 10:38) é aceitar a nossa cruz, não propriamente ir atrás de uma.
E a Teresa acrescentou, de seguida, mais um ponto:
Sim, mas há aqui outra coisa... Os santos não foram infelizes, nem se limitaram a "aguentar" a sua cruz, não é verdade? O sacrifício cristão traz verdadeiro prazer... São coisas que não se explicam, só se podem viver. Disse S. Paulo que, por Cristo, tudo considerava "esterco"... Não são palavras vãs, é a verdade: quando aprendemos a aceitar a nossa vida, a fantasia deixa de nos dar prazer, e encontramos verdadeiro gozo na nossa pobre rotina. É por isso que não consigo aceitar a ideia de que criar os filhos é uma maçada, por muito necessária que seja... Mas podemos discutir estas ideias no meu blogue (umafamiliacatolica.blogs.sapo.pt), que sobre cristianismo está mais apropriado!
Mesmo estando o blogue da Teresa mais apropriado para discutir ideias sobre cristianismo (e vale a pena visitá-lo também pelos testemunhos de vida em família que ela dá diariamente), ainda assim permitam-me o atrevimento de tentar aprofundar este ponto do sacrifício e do seu prazer.
Se repararem, eu tive o cuidado de colocar "tradicional cultura" antes da palavra "católica", e de seguida até exemplifiquei com o caso do cilício, que como bem sabem muito boa gente católica defende com argumentos bastante convictos (no Opus Dei, por exemplo). Evidentemente, para quem está de fora é algo difícil de compreender, tal como era difícil de compreender as imagens antigas de gente a arrastar-se em Fátima com os joelhos em sangue (isto na era pré-pedra polida e almofadas nos joelhos). Bem ou mal, eu diria que essa imagem de "sacrifício"ainda está marcada na mente de muitas pessoas, até porque a cada Páscoa continuamos a ver gente nas Filipinas a ser pregada a uma cruz.
Portanto, não só percebo o ponto da Teresa e do Carlos Duarte, como concordo com ele: existe uma diferença significativa entre o conceito "popular tradicional" de sacrifício e aquilo que um catolicismo instruído considera ser o verdadeiro sacrifício - que nunca é uma inutilidade, mas um dom.
Onde eu me afasto da Teresa, e daí este post, é no ponto seguinte: o de transformar o sacrifício em prazer. Deixem-me regressar aos seus argumentos:
Aprender o desprazer, como tu dizes, é de facto essencial - mas não para aprendermos a aguentar! É essencial para aprendermos a encontrar felicidade e verdadeira realização pessoal naquilo "que tem de ser".
A verdade é que eu sou um grande adepto do "ai aguenta, aguenta!" imortalizado pelo Fernando Ulrich (embora não pelas razões de Fernando Ulrich). O que a Teresa pede é um passo à frente: é encontrar o prazer no desprazer. Não é tanto libertarmo-nos das correntes que nos oprimem, para utilizar a linguagem marxista, mas passarmos a ter prazer nessas correntes, até porque elas se transfiguram e deixam de ser correntes. Ora, para mim, isso é mais ou menos o mesmo que para um budista encontrar o nirvana, esse estado de total comunhão e transparência - seria fantástico chegar lá, com certeza, mas não é para todos, e uma vida só não costuma ser suficiente.
E, portanto, a pregação entusiasmada dessa possibilidade pode, a meu ver, ser até contraproducente, ao dar a impressão de que se nos esforçarmos muito todos poderemos alcançá-la. E isto pela simples razão de que o processo é contranatura: se prazer e desprazer fossem a mesma coisa uma só palavra bastaria. Juntar os contrários e unificá-los é uma coisa muito bonita, mas 99% das pessoa falharão sempre. Eu falho, com certeza.
É por isso que a educação para o desprazer, de facto, advém, para mim, mais do estoicismo do que do cristianismo. É um aguenta, aguenta e não uma promessa de redenção, e muito menos uma promessa de redenção terrestre - coisa que a fé católica está, aliás, longe de dar como garantida. Na verdade, a Teresa sugere que há um caminho para a felicidade terrestre se nós nos entregarmos suficientemente a Cristo; como que um seguro de consolação já aqui, no planeta azul. Eu estaria disposto a rebater isso entusiasmada e biblicamente. A única consolação segura que os Evangelhos pregam advém da esperança de uma vida celeste - a felicidade desta vida é um bónus, e não uma garantia.
Daí eu entender que o "aguenta, aguenta" é muito mais útil, ao ajudar a uma gestão da frustração, que é aquilo que nós mais precisamos (eu preciso, pelo menos). Garantir a uma pessoa que ela consegue de certeza tirar a felicidade no que "tem de ser", tirar prazer no desprazer, é, aos meus olhos, demasiado ambicioso - quem o consegue fazer (e há quem consiga, com certeza) é um Cristiano Ronaldo da vida familiar. E, como todos sabemos, não é Cristiano Ronaldo quem quer. Só quem pode.
A educação para o desprazer, segundo esta minha teoria mal-amanhada, não é um caminho para a felicidade. É apenas um tampão contra a infelicidade constante. Não é sorrir na tempestade, não é dançar à chuva sobre o mastro partido. É apenas conseguir aguentar o barco na borrasca para poder sorrir quando os raios de sol aparecerem (porque aparecem sempre, graças a Deus).
É um projecto modesto de vida, é um pensamento débil, é uma gestão da dor, e não a promessa de uma epifania. É estar na cruz a cantar "always look at the bright side of life".
Não porque não custe, mas porque, dado o contexto, é a melhor das opções.
Perante o meu acumular de queixinhas, escreve uma leitora do blogue, já sem grande paciência para mim:
Com todo o respeito tenho de dizer... que sim, é difícil educar crianças, e sim, a vida muda radicalmente... Mas com certeza que ninguém o obrigou a ter quatro crianças... foi uma opção sua! Elas não pediram para nascer...
Com certeza que não pediram, embora, a bem dizer, a Rita tenha sido intensamente pedida pela Carolina. Espero, no entanto, que ninguém olhe para os meus queixumes, por vezes excessivos, e veja neles alguma espécie de arrependimento por me ter metido nesta coisa de ser pai de uma família numerosa.
Quando eu falo numa "educação para o desprazer", e faço questão de a distinguir da noção mais comum de sacrifício, é exactamente para estarmos preparados para aguentar o embate do stress quotidiano sem sermos esmagados por ele, tendo em conta que o fazemos em nome de um bem maior, que são os nossos filhos.
Todos nós, crianças, adultos e outros animais domésticos, necessitamos de ser treinados para aquilo a que tecnicamente se chama "adiamento da gratificação". A "educação para o desprazer" é apenas um nome mais bonito para esse adiamento da gratificação, que no caso dos filhos pode significar penar durante muitos anos até eles deixarem de ser lagartas e se transformarem em lindas borboletas.
Simplesmente, quando muita gente gasta o seu tempo a fingir que tudo na paternidade é borboleta, os momentos-lagarta (que são imensos) podem ser devastadores. Eu gosto, de facto, de alertar para isso, porque numa certa fase da minha vida esse embate foi realmente difícil para mim, e cheguei a achar-me o pior pai do mundo por não conseguir retirar maior prazer da paternidade.
Agora, saltar daí para o argumento "as crianças não pediram para nascer" é um pulo argumentativo capaz de bater o recorde mundial do salto em comprimento. Não preciso, com certeza, de o dizer, mas digo na mesma: tenho o maior orgulho nos meus filhos e não estou a pensar vendê-los para ampliar a minha biblioteca, ok?
Uma pessoa tem filhos por inúmeras razões, e suponho que todas elas se misturem, desde as menos românticas - o relógio biológico que faz tic-tac - às mais românticas - um grande amor que deseja completar-se em forma de família. Todas elas são verdadeiras, acho eu.
Mas há uma coisa que me parece extremamente importante: a capacidade de nos projectarmos no futuro. Há uma espécie de teleologia familiar e amorosa que sempre me pareceu essencial, tanto para avaliar a firmeza de uma relação (será que eu quero ficar com esta pessoa até ao dia em que ambos tivermos dentaduras postiças enfiadas num copo da casa de banho?), como para avaliar a necessidade de uma família (será que se eu chegar aos 70 anos sem filhos sentir-me-ei realizado?).
E embora eu tenha sempre inúmeras dúvidas quanto ao presente, quando me projecto no futuro consigo responder com surpreendente facilidade àquelas questões. É até possível que me venha a enganar. É claro que tudo pode sempre desabar. É óbvio que ninguém deve dizer "desta água não beberei". Mas neste momento tenho suficientes certezas nas respostas àquelas perguntas, o que, sendo eu um filho da suspeita, não é coisa pouca.
Em resumo, não se confunda cansaço, frustração ou sofrimento com alguma espécie de arrependimento. Eu adoro estar sem eles, mas não consigo imaginar o que seria ficar sem eles.
O António Variações já explicou tudo há 30 anos: