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Da última vez que fomos aos Montes da Senhora, o Gui apercebeu-se que a Memi e a Zezinha não tinham um bloco de notas disponível para pequenos apontamentos na cozinha.
Vai daí, agarrou num bloquinho de folhas de papel e em vez de o pôr simplesmente em cima de uma bancada com um lápis ao lado, muniu-se de um rolo de fita-cola e desconstruiu o bloco de notas. Depois, colou-o à parede da cozinha, folha por folha, para que elas não tivessem o trabalho de ter que as separar.
Finalmente, cunhou cada uma das folhas com o seu nome e encabeçou o seu novo bloco com um desenho da família Mendonça Tavares, para que a Memi e a Zé nunca se esqueçam de nós. E nem a caneta faltou, que encaixou num buraquinho do seu novelo de fita-cola. Muito útil, como se imagina.
Os miúdos, dotados de uma memória selectiva e, aos nossos olhos, bastante aleatória, recordam-se das coisas mais bizarras. Ontem à noite, o Gui não se calava com o aniversário do seu Leãozinho (um dos seus peluches favoritos):
- O Leãozinho faz hoje anos! Temos de lhe cantar os parabéns!
Eu não estava a perceber nada daquela conversa. Por que raio é que o Leãozinho fazia anos? Afinal, quem ontem fazia anos era a minha mãe. O que é que o peluche tinha a ver com isso? O Gui explicou:
- O Leãozinho faz anos no mesmo dia da avó Orquídea! Temos de lhe cantar os parabéns!
E, de repente, aquilo lembrou-me qualquer coisa. Decidi, então, ir aos arquivos do blogue investigar o que tinha acontecido no dia 8 de Janeiro de 2013. E não é que o puto tinha razão? Lá estava um post escrito pela Teresa, com o Gui a soprar as velas ao Leãozinho, na altura a comemorar o seu "quarto aniversário".
Aqui está a foto de há um ano para o provar:
Assim sendo, havia que cumprir a tradição que essa cabeça de vento chamada Guilherme Mendonça Tavares estranhamente preservara na memória. E assim foi: vestido, por mais um acaso do destino, exactamente com o mesmo pijama e o mesmo robe de 2013, acabámos a noite a cantar os parabéns e a soprar as velas ao Leãozinho.
Foi um quinto aniversário bonito e bem festejado, até porque as velas eram daquelas irritantes, que só se apagavam ao fim de 58 sopros. Suponho que para o ano haja mais.
Depois de ir deitar o Gui, fiquei a pensar em Italo Calvino e num conto de As Cidades Invisíveis sobre uma cidade cheia de fios, que assinalavam as relações entre os seus habitantes e que se enredavam das mais diversas formas, causando acidentes que acabavam por revelar sentidos surprendentes e lembranças inesperadas. Como - quem sabe? - o aniversário de um leãozinho.
Obriguei o Gui a fixar quatro regras da casa:
1. Levantar a tampa e o assento da sanita quando faz chichi.
2. Puxar o autoclismo.
3. Apagar as luzes ao sair de uma divisão.
4. Fechar a porta.
Eu consegui que ele fixasse as quatro regras. Talvez daqui a uns anos consiga que ele as cumpra.
Estava no quarto muito entretido a ver um filme de João César Monteiro dos anos 70, Que Farei Eu Com Esta Espada?, filmado a preto e branco, quando o Gui entra e põe-se a olhar muito espantado para o ecrã.
- Porque é que aquilo está cinzento?
Hum... acho que o vou pôr a dieta de Chaplin na próxima semana. O rapaz está claramente a padecer de um défice de cinefilia.
Vai a família pela rua, os pais e as meninas mais atrás, os dois rapazes lá mais para a frente, quando de repente o Gui começa a chorar:
- [Choradeira]
- O que é que se passa, Gui?
- [Continua a choradeira]
- Acalma-te, Gui, o que é que se passa?
- Foi o Tomás! [Mais um bocadinho de choradeira]
- O que é que o Tomás te fez?
- O Tomás está sempre a dizer que eu sou sexy!
E pronto, são assim os meus dias. Os meus filhos n.º 2 e n.º 3 acham que "ser sexy" é um insulto. Dá Deus nozes a quem não tem dentes.
O Gui entrou-me pelo quarto adentro anunciando que tinha feito "um filho":
É um filho capitalista, como se pode verificar, feito com um folheto do Media Markt que estava na caixa do correio (se o Gui está ao meu lado quando abro a caixa do correio, nunca consigo deitar folhetos para o lixo - ele quere-os todos).
E pouco depois, "o filho" já era pai de quatro, com a sua família abstracta toda espalhadinha pelo chão do meu quarto.
São assim os meus dias, com dificuldade em distinguir a produção de criatividade da produção de lixo.
Ontem, enquanto recolhia a loiça depois do jantar, deparei-me com uns estranhos apêndices na mesa da cozinha.
Ainda pensei que o João se tivesse lembrado de instalar ali uns novos botões para comandar a televisão ou o leitor de CDs, mas vendo mais de perto percebi que não se pareciam com um dispositivo electrónico.
Será que a mesa tinha começado a padecer de politelia (presença de mamilos supranumerários) ou de uma apresentação de acne severo?
Nada disso. Dada a estranha patologia da mesa ter surgido precisamente no lugar onde o Gui se havia sentado, um olhar mais atento desvendou o segredo:
a ementa do jantar foi polvo e o artista cá de casa resolveu usar as ventosas dos braços do bicho para ornamentar a nossa mesa, na qual terá detectado um défice de criatividade.
Não admira que durante a refeição o pai se tenha zangado várias vezes com ele por estar a mexer com as mãos na comida. Muito caladinho, nunca se descoseu. Afinal, o Gui não estava apenas a portar-se mal - estava a criar. Confesso que tive pena de desmanchar um trabalho tão imaginativo, mas tendo em conta que já havia uma mistura de azeite e molusco a escorrer pela mesa, achei que a higiene tinha de se sobrepor à criação.
A boa notícia é que se confirma que temos um artista em potência cá em casa. Um artista pouco asseado, mas um artista ainda assim.