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A propósito dos meus posts sobre as heranças (aqui e aqui), um jurista anónimo deixou o seguinte comentário:
Numa perspectiva estritamente legal (que é a minha área), digo-lhe que foi a nossa estrutura de direito sucessório que permitiu que o Douro vinhateiro esteja hoje todo ele entregue às mãos do monopólio inglês.
É que nós fomos (e somos) obrigados a deixar património aos nossos herdeiros legais, o que implica que estes o partilhem entre si e, mais tarde, com os seus herdeiros. Consequentemente, em duas ou três gerações, uma vinha de razoável dimensão acabou espartilhada por uma vintena de pessoas. É manifesto que o mais rentável para todos foi vender a sua parte (o seu quinhão), até porque muitos nem sabiam do labor nem sequer conheciam o parente que lhes deixou tal bem, não tendo qualquer ligação à terra.
Já os ingleses deixaram a vinha a um único herdeiro - e nem sequer necessariamente ao filho mais velho mas a quem entenderam que dela melhor tratava - o que lhes permitiu crescer.
Não é só na sociedade americana, tão diferente da nossa, que o direito sucessório tem implicações económicas às quais devíamos prestar mais atenção, se é que efectivamente queremos corrigir alguns dos erros do passado.
Eu desconheço a história do Douro vinhateiro, e não sei se terá sido esta, ou não, a principal razão para o vinho do Porto ter ficado nas mãos dos ingleses. Mas o argumento parece-me plausível e é absolutamente verdade que a questão do direito sucessório merecia muito mais atenção - é um tema que nunca vejo discutido no espaço público -, devido a uma série de limitações que me parecem abstrusas e típicas de um Estado que insiste em regular todos os aspectos da nossa vida - e da nossa morte.
A Fundação Francisco Manuel dos Santos tem um óptimo site chamado Direitos e Deveres dos Cidadãos que responde em linguagem compreensível a inúmeras perguntas do nosso dia a dia, e onde a questão das sucessões é abordada. E aí se aprendem factos tão curiosos como a quase impossibilidade de em Portugal um pai deserdar um filho (a não ser que ele seja um criminoso) ou a dificuldade de verdadeiramente diferenciar os filhos nas heranças.
É que se eu ou o caro leitor batermos a bota, e a partir do momento em que temos mais do que um filho, só um terço da herança está verdadeiramente nas nossas mãos - só com esse terço é que podemos fazer o que nos apetecer. Os restantes dois terços têm de ser obrigatoriamente divididos em partes iguais pelos filhos. Ainda que um tenha cuidado de mim até à morte, e o outro já não me veja desde 1983.
Porquê? Porque o Estado Todo Poderoso, como sempre, é que sabe o que é melhor para nós e para as nossas famílias.
Deixem-me então regressar ao fascinante tema das heranças, para tentar explicar por que me parece que ele tem tanto a ver connosco, apesar de não sermos milionários. Todos temos ou tivemos pais, muitos de nós têm filhos, e portanto a questão daquilo que podemos receber de uns ou que iremos deixar aos outros é um tema importante. E sobre isso eu sou muito Buffett-gatiano: as heranças deveriam ser encaradas por cada um de nós como uma dádiva, e não como um direito.
Não me refiro a questões legais, obviamente. Refiro-me a questões morais. Quer dizer: não sei por que raio tanto filho está convencido que tem um direito inalienável ao património dos pais, para o qual, regra geral, nada contribuiu. Os nossos pais têm a obrigação de nos oferecer a melhor educação possível, com certeza, mas a partir daí não têm obrigação de nos deixar mais nada.
O património é deles. Se quiserem enfiá-lo numa fundação para combater a malária, como os Gates, estão no seu direito. Se quiserem oferecê-lo à igreja, estão no seu direito. Se quiserem fazer um testamento em que os filhos não são tratados por igual, também estão no seu direito. Aquilo é deles. Não é nosso.
Infelizmente, não deve haver quem não tenha assistido, na sua família ou em famílias próximas, a conflitos enormes em torno de heranças. Não precisam de ser latifúndios - às vezes basta ser a partilha das colchas da avó. Esses conflitos atingem frequentemente níveis de violência absurdos - há irmãos, sobrinhos, primos que nunca mais se voltam a falar.
Tenho um amigo que acha que as heranças são apenas o gatilho que faz disparar conflitos que estavam latentes, e que encontram ali um campo fértil para serem finalmente verbalizados. Ele terá alguma razão. Mas não acho que tenha a razão toda - há gente que efectivamente enlouquece perante a visão de um serviço de cozinha com 60 anos. Há quem antes das partilhas se desse muito bem e deixe de se dar.
Eu também assisti a isso quando era novo, e jurei a mim próprio que jamais aconteceria comigo - ainda que eu tivesse que oferecer tudo ao meu irmão e me limitasse a manter na minha posse a meia-dúzia de livros de banda desenhada que já lhe roubei entretanto. Nada justifica aquele género de discussões - não foi pelo nosso mérito que a casa, o carro ou os talheres de prata foram conquistados. E se uma coisa não tem o nosso mérito, nem o nosso esforço, nem a nossa dedicação, não pode ser, moralmente, uma exigência nossa.
Ah, e tal, a lei diz que sim. Esqueçam a lei. É evidente que mais vale o património ficar para os filhos do que para o Estado. Os meus pais têm uma relação melhor comigo do que com a Maria Luís Albuquerque. Mas quando a minha atitude deixa de ser de dádiva para passar a ser de dever, invocando para mim o direito a certas coisas que eu não conquistei, cada desacordo com um familiar produz um sentimento semelhante ao de me estarem a assaltar a casa.
Não, não, não. Não faz sentido. A partir do momento que os meus filhos deixarem de ser menores de idade e abandonarem a minha dependência, o que pretendo ensinar-lhes é que aquilo que de melhor tinha para lhes oferecer - a sua educação - já está oferecido. A partir daí, desemerdem-se. Façam-se à vida. Conquistem as coisas pelo seu próprio mérito.
De resto, pretendo fazer com o meu património o que muito bem me apetecer. E se algum dia, depois de bater a bota, os vir discutir acerca de loiças ou pratas ou livros (enfim, acerca de livros ainda perdoo), hei-de reerguer-me da tumba para lhes azucrinar a vida. Vão trabalhar, malandros. Cada um tem a sua vida para viver. A obsessão com as heranças é uma canibalização da vida dos nossos pais. Deixem-nos em paz e vão dar dentadas para outro lado.
Um dos textos mais interessantes que li durante as férias foi este artigo do Washington Post que o Público traduziu no passado domingo: "Por que os muito ricos não estão a dar as suas fortunas aos filhos".
A perspectiva do artigo é americana e diz respeito, em primeiro lugar, a multimilionários, mas a ideia contida em todo o texto é algo com que me identifico muito, e que está resumida na perfeição numa frase famosa de Warren Buffett, sobre o montante ideal para deixar aos filhos:
"Enough money so that they would feel they could do anything, but not so much that they could do nothing."
Em português não é tão bonito:
"O dinheiro suficiente para que possam fazer qualquer coisa, mas não o suficiente para que possam não fazer nada."
Sendo a América um país onde o Estado é olhado com desconfiança e onde as pessoas sentem que têm obrigações para com a sociedade, a questão do que fazer com as quantidades astronómicas de dinheiro que um Warren Buffett ou um Bill Gates têm à sua disposição ultrapassa largamente qualquer dever de reserva sobre as suas vidas privadas.
Até porque um livro tão badalado quanto O Capital no Século XXI, do francês Thomas Piketty, que muito consideram o livro económico da década, alerta para as perversões do capitalismo actual: se os rendimentos do património (a taxa de remuneração da riqueza) estão efectivamente a crescer, como ele defende, a um ritmo superior ao PIB de uma nação (aos rendimentos do trabalho, para simplificar), isso significa que a simples gestão de riqueza acumulada é mais vantajosa do que uma vida inteira dedicada ao empreendedorismo - o que levanta questões morais muito sérias e coloca em causa o conceito de meritocracia, que é um dos pilares de qualquer sociedade democrática.
Não se preocupem, que eu não me enganei no blogue, nem vos vou estar a aborrecer com o Piketty. Mas isto, a bem dizer, é pura telenovela e romance do século XIX: significa que casar bem é preferível a arranjar um bom emprego, e que mais vale nascer rico e não fazer nada do que ser remediado e criar uma grande empresa. Os rendimentos do rico, diz Piketty, estão a crescer mais, em média, do que os da grande empresa.
O problema, visto já não da perspectiva económica mas da perspectiva paternal e filial, é que não fazer nada "sucks". Não fazer nada não é bom para ninguém - sobretudo, não é bom para os filhos. Regresso ao magnífico artigo de Roxanne Roberts para o Washington Post, onde a famosa Nigella Lawson, uma das mais apetecíveis mamãs do planeta, afirma não ter qualquer intenção de deixar uma grande fortuna aos herdeiros:
"Estou determinada a que os meus filhos não tenham segurança financeira. Não precisar de ganhar dinheiro arruina as pessoas."
Nigella com a mão na massa. Hummm...
É verdade. Arruina mesmo. E por isso, somos informados que Bill e Melinda Gates planeiam deixar a cada um dos seus três filhos 10 milhões de dólares, o que dá cerca de 7,5 milhões de euros por cabeça. Sim, eu sei que se cada um de nós recebesse 7,5 milhões de euros em herança era capaz de não ficar particularmente zangado. Mas convém esclarecer que a fortuna dos Gates ascende a... 76 mil milhões de dólares, mais de 57 mil milhões de euros. É um terço do PIB inteiro de Portugal em 2013. Portanto, 30 milhões é para aí 0,04% da fortuna deles.
E o que é que esta conversa de multimilionários tem a ver connosco, meros remediados? Tem tudo a ver, como tentarei explicar já a seguir.